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TOMO I

Tomo I

Ditadura e homossexualidades:
iniciativas da Comissão da Verdade
do Estado de São Paulo Rubens Paiva
Passeata em 1˚ de maio de 1980. Foto: James N. Green

A ideologia dominante continha claramente uma perspectiva homofóbica, que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subversão

Esta página é um resumo. faça o download do capítulo completo A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” foi pioneira na proposta de apurar as violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura brasileira contra a população de lésbicas, gays, transexuais e transgêneros (LGBT), bem como na tentativa de compreender as formas de resistência que a organização ainda incipiente do movimento LGBT empreendeu nesse momento.

Com efeito, a atuação desta Comissão sempre esteve orientada para a visibilização política de setores marginalizados nas narrativas oficiais da história recente de nosso país. Mesmo na historiografia dedicada à ditadura, nota-se que havia uma lacuna de trabalhos mais sistemáticos e aprofundados com um recorte específico de gênero e sexualidade.

Investigar e discutir as complexas relações entre a ditadura militar e as “homossexualidades” no plural, como se dizia à época para dar conta de todas as formas de orientação sexual e identidade de gênero, foi uma contribuição fundamental para o aprofundamento democrático dado por esta Comissão.

O passo inicial foi dado quando da realização da 98º audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, com o tema "Ditadura e homossexualidade: resistência do movimento LGBT", ocorrida no dia 26 de novembro de 2013, às 14h, no auditório Teotônio Vilela.

Para compor a mesa, foram convidados dois militantes reconhecidos e históricos do movimento LGBT e da luta contra a ditadura, James N. Green e Marisa Fernandes. Ambos deram importantes relatos, em primeira pessoa e como pesquisadores, sobre as formas de operar de um poder repressor que perseguiu as sexualidades dissidentes.

Audiência Pública | Ditadura e homossexualidade
Historiador James Green fala sobre os impactos da ditadura na sociedade

São Paulo, por ser o Estado mais importante do ponto de vista econômico, foi um alvo privilegiado da repressão e, também, um palco destacado da resistência.

Com efeito, concentraram-se em território paulista diversos aparatos de repressão, como a Operação Bandeirante iniciada em 1969 posteriormente transformada no DOI-CODI, além do DOPS que já existia. Aqui, também, foi o epicentro de diversos grupos de guerrilha urbana e de movimentos sociais durante a redemocratização.

Durante todo o período da ditadura, as políticas de controle social e de repressão política adotaram, em muitos casos, um viés conservador em termos morais. O padrão de policiamento que ocorreu no centro da cidade de São Paulo, entre 1976 e 1982, nos governos estaduais de Paulo Egídio Martins e Paulo Salim Maluf, é exemplar do ponto de vista de como operou a repressão a setores LGBT. As polícias civis e militares estruturaram-se para tais operações, com respaldo da Secretaria de Segurança Pública sob comando do coronel Erasmo Dias. Além disso, o delegado Guido Fonseca elaborou estudos criminológicos de centenas de travestis, recomendando a contravenção penal de vadiagem como instrumento para o combate à homossexualidade. Ainda, durante o governo de Paulo Maluf (1979-1982), rondas de policiamento ostensivo intensificaram-se na área central da cidade, região sob o comando do delegado José Wilson Richetti, perseguindo claramente grupos vulneráveis e estigmatizados.

Documentário | Temporada de Caça (1988)
Vídeo premiado de Rita Moreira relata a caça aos gays empreendida pelo governo de Jânio Quadros, principalmente na figura do delegado José Wilson Richetti, que passava de camburão prendendo travestis na “boca do lixo", no Centro de São Paulo.

Essas “rondas” comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Seccional de Polícia da Zona Centro desde maio de 1980, tinham por objetivo “limpar” a área central da presença de prostitutas, travestis e homossexuais. O método utilizado pelas forças de segurança era o de realizar batidas policiais em locais frequentados pelas pessoas LGBT, especialmente as travestis, que eram levadas “para averiguação” às dependências policiais, tendo por fundamentos legais a contravenção penal de vadiagem e a prisão cautelar prevista no Código de Processo Penal de 1941, então em vigor. Segundo consta de declaração do delegado à imprensa, de 300 a 500 pessoas eram levadas por dia para delegacias.

Os primeiros protestos LGBT do Brasil
À esquerda, passeata contra a repressão policial do delegado José Wilson Richetti, evento lembrado como a primeira mobilização pública do movimento LGBT no Brasil, em 14 de junho de 1980.
À direita, o jornal Lampião da Esquina denuncia as operações nos bares Ferro’s, Bixiguinha e Cachação. A chamada Operação Sapatão, montada por Richetti, deteve todas as lésbicas frequentadoras destes estabelecimentos, no feriado de 15 de novembro de 1980, sob o argumento “você é sapatão"

Na noite do sábado 23 de julho de 1983, algumas ativistas estavam vendendo o Boletim Chana com Chana dentro do Ferro’s e, em certo momento, o proprietário, os seguranças e o porteiro quiseram expulsá-las à força. Disseram que elas estavam proibidas de entrar ali e vender os boletins. Graças à resistência das presentes, as militantes puderem permanecer ali. Mas, nos próximos dois meses que se seguiram, enfrentavam resistência e ameaça por parte do porteiro que as tentava retirar dali. Assim, as lésbicas decidiram pela retomada do Ferro’s Bar e marcaram essa ação política para a noite de 19 de agosto do mesmo ano. Para tanto, articularam-se com a imprensa, ativistas gays e lésbicas, feministas, ativistas dos direitos humanos e com a Vereadora Irede Cardoso, os deputados Ruth Escobar e Eduardo Suplicy, sob organização da militante lésbica Rosely Roth.

Comissão Nacional da Verdade | Ditadura e homossexualidade
Pesquisadora Marisa Fernandes aborda a situação das lésbicas no período do regime militar e dentro do movimento LGBT como um todo

Hoje em dia, com a ausência de censura do Estado sobre a imprensa e a internet que oferece uma variedade de fontes de informação ao público, é difícil entender o significado e os efeitos da censura nas vidas de jovens gays e lésbicas, que viviam a experiência política de uma ditadura e que, pessoalmente, estavam descobrindo a sua sexualidade. No entanto, a falta de modelos positivos na mídia para contrapor os preconceitos e os estereótipos tradicionais foi um legado da ditadura para a homolesbotransfobia ainda atual em nosso país. Justamente quando na Europa e nos Estados Unidos novos discursos e imagens da homossexualidade circulavam e também quando movimentos surgiram para contestar conceitos conservadores – para não dizer reacionários - sobre gênero e sexualidade, a censura bloqueava o acesso do público brasileiro a essas novas ideias. Os precursores desse movimento que tinham a coragem de enfrentar a ideologia homofóbica da ditadura tinham de encarar um aparelho do Estado consolidado por meio da censura e do sistema de justiça, criminalizando desejos, perspectivas e opiniões sobre a homossexualidade. Quantos jovens se mataram por não terem entendido a sua sexualidade e por não terem tido acesso a informações sobre essa questão? É uma pergunta de difícil resposta, mas resta claro que a censura serviu como instrumento para a prática de violações de direitos humanos durante a ditadura militar.

Recomendações

1

Criminalização da homolesbotransfobia

2

Aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero

3

Construção de lugares de memória dos segmentos LGBT ligados à repressão e à resistência durante a ditadura (ex. Delegacia Seccional do Centro na Rua Aurora, Departamento Jurídico XI de Agosto, Teatro Ruth Escobar, Presídio do Hipódromo; Ferro’s Bar; escadaria do Teatro Municipal etc)

4

Pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído junto ao movimento LGBT

5

Reparação às pessoas LGBT perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado

6

Convocação dos agentes públicos mencionados para prestarem esclarecimentos sobre os fatos narrados no presente relatório

7

Revogação da denominação de “Dr José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, do departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo pela Lei 7076 de 30/04/1991

8

Suprimir, nas leis, referências discriminatórias das homossexualidades: um exemplo é o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime "praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar"

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