A ideologia dominante continha claramente uma perspectiva homofóbica, que relacionava a homossexualidade às esquerdas e à subversão
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A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” foi pioneira na proposta de apurar as violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura brasileira contra a população de lésbicas, gays, transexuais e transgêneros (LGBT), bem como na tentativa de compreender as formas de resistência que a organização ainda incipiente do movimento LGBT empreendeu nesse momento.
Com efeito, a atuação desta Comissão sempre esteve orientada para a visibilização política de setores marginalizados nas narrativas oficiais da história recente de nosso país. Mesmo na historiografia dedicada à ditadura, nota-se que havia uma lacuna de trabalhos mais sistemáticos e aprofundados com um recorte específico de gênero e sexualidade.
Investigar e discutir as complexas relações entre a ditadura militar e as “homossexualidades” no plural, como se dizia à época para dar conta de todas as formas de orientação sexual e identidade de gênero, foi uma contribuição fundamental para o aprofundamento democrático dado por esta Comissão.
O passo inicial foi dado quando da realização da 98º audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, com o tema "Ditadura e homossexualidade: resistência do movimento LGBT", ocorrida no dia 26 de novembro de 2013, às 14h, no auditório Teotônio Vilela.
Para compor a mesa, foram convidados dois militantes reconhecidos e históricos do movimento LGBT e da luta contra a ditadura, James N. Green e Marisa Fernandes. Ambos deram importantes relatos, em primeira pessoa e como pesquisadores, sobre as formas de operar de um poder repressor que perseguiu as sexualidades dissidentes.
São Paulo, por ser o Estado mais importante do ponto de vista econômico, foi um alvo privilegiado da repressão e, também, um palco destacado da resistência.
Com efeito, concentraram-se em território paulista diversos aparatos de repressão, como a Operação Bandeirante iniciada em 1969 posteriormente transformada no DOI-CODI, além do DOPS que já existia. Aqui, também, foi o epicentro de diversos grupos de guerrilha urbana e de movimentos sociais durante a redemocratização.
Durante todo o período da ditadura, as políticas de controle social e de repressão política adotaram, em muitos casos, um viés conservador em termos morais. O padrão de policiamento que ocorreu no centro da cidade de São Paulo, entre 1976 e 1982, nos governos estaduais de Paulo Egídio Martins e Paulo Salim Maluf, é exemplar do ponto de vista de como operou a repressão a setores LGBT. As polícias civis e militares estruturaram-se para tais operações, com respaldo da Secretaria de Segurança Pública sob comando do coronel Erasmo Dias. Além disso, o delegado Guido Fonseca elaborou estudos criminológicos de centenas de travestis, recomendando a contravenção penal de vadiagem como instrumento para o combate à homossexualidade. Ainda, durante o governo de Paulo Maluf (1979-1982), rondas de policiamento ostensivo intensificaram-se na área central da cidade, região sob o comando do delegado José Wilson Richetti, perseguindo claramente grupos vulneráveis e estigmatizados.
Essas “rondas” comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Seccional de Polícia da Zona Centro desde maio de 1980, tinham por objetivo “limpar” a área central da presença de prostitutas, travestis e homossexuais. O método utilizado pelas forças de segurança era o de realizar batidas policiais em locais frequentados pelas pessoas LGBT, especialmente as travestis, que eram levadas “para averiguação” às dependências policiais, tendo por fundamentos legais a contravenção penal de vadiagem e a prisão cautelar prevista no Código de Processo Penal de 1941, então em vigor. Segundo consta de declaração do delegado à imprensa, de 300 a 500 pessoas eram levadas por dia para delegacias.
Na noite do sábado 23 de julho de 1983, algumas ativistas estavam vendendo o Boletim Chana com Chana dentro do Ferro’s e, em certo momento, o proprietário, os seguranças e o porteiro quiseram expulsá-las à força. Disseram que elas estavam proibidas de entrar ali e vender os boletins. Graças à resistência das presentes, as militantes puderem permanecer ali. Mas, nos próximos dois meses que se seguiram, enfrentavam resistência e ameaça por parte do porteiro que as tentava retirar dali. Assim, as lésbicas decidiram pela retomada do Ferro’s Bar e marcaram essa ação política para a noite de 19 de agosto do mesmo ano. Para tanto, articularam-se com a imprensa, ativistas gays e lésbicas, feministas, ativistas dos direitos humanos e com a Vereadora Irede Cardoso, os deputados Ruth Escobar e Eduardo Suplicy, sob organização da militante lésbica Rosely Roth.
Hoje em dia, com a ausência de censura do Estado sobre a imprensa e a internet que oferece uma variedade de fontes de informação ao público, é difícil entender o significado e os efeitos da censura nas vidas de jovens gays e lésbicas, que viviam a experiência política de uma ditadura e que, pessoalmente, estavam descobrindo a sua sexualidade. No entanto, a falta de modelos positivos na mídia para contrapor os preconceitos e os estereótipos tradicionais foi um legado da ditadura para a homolesbotransfobia ainda atual em nosso país. Justamente quando na Europa e nos Estados Unidos novos discursos e imagens da homossexualidade circulavam e também quando movimentos surgiram para contestar conceitos conservadores – para não dizer reacionários - sobre gênero e sexualidade, a censura bloqueava o acesso do público brasileiro a essas novas ideias. Os precursores desse movimento que tinham a coragem de enfrentar a ideologia homofóbica da ditadura tinham de encarar um aparelho do Estado consolidado por meio da censura e do sistema de justiça, criminalizando desejos, perspectivas e opiniões sobre a homossexualidade. Quantos jovens se mataram por não terem entendido a sua sexualidade e por não terem tido acesso a informações sobre essa questão? É uma pergunta de difícil resposta, mas resta claro que a censura serviu como instrumento para a prática de violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
Criminalização da homolesbotransfobia
Aprovação de lei garantindo a livre identidade de gênero
Construção de lugares de memória dos segmentos LGBT ligados à repressão e à resistência durante a ditadura (ex. Delegacia Seccional do Centro na Rua Aurora, Departamento Jurídico XI de Agosto, Teatro Ruth Escobar, Presídio do Hipódromo; Ferro’s Bar; escadaria do Teatro Municipal etc)
Pedidos de desculpas oficiais do Estado pelas violências, cassações e expurgos cometidos contra homossexuais em ato público construído junto ao movimento LGBT
Reparação às pessoas LGBT perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado
Convocação dos agentes públicos mencionados para prestarem esclarecimentos sobre os fatos narrados no presente relatório
Revogação da denominação de “Dr José Wilson Richetti” dada à Delegacia Seccional de Polícia Centro, do departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo pela Lei 7076 de 30/04/1991
Suprimir, nas leis, referências discriminatórias das homossexualidades: um exemplo é o artigo 235 do Código Penal Militar, de 1969, do qual se deve excluir a referência à homossexualidade no dispositivo que estabelece ser crime "praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar"