Daqui a dois dias, fará quatro meses que eu perdi Aritanã [falecido em 11 de janeiro de 2013]. Aritanã Guarani Machado Dantas que era como ele se colocava na internet, como uma manifestação de solidariedade às lutas dos indígenas no Brasil. Meu filho foi vítima de uma doença, contra a qual lutou durante seis anos. Chegou um momento em que era impossível continuar sofrendo do jeito que estava. Ele morreu calmamente, cercado por nós, no meio da noite. Ele estava tentando retomar sua vida profissional, que tinha sido muito bonita.
Meu filho era finalizador de filmes, foi responsável pela finalização do documentário da Revolução de 1932 [A Guerra Civil – 1932], foi responsável pela edição de som e mixagem do documentário do Prestes O Velho, a história de Luiz Carlos Prestes – de Toni Venturi, foi responsável pela finalização do som do documentário sobre a vida de Ulisses Guimarães, de Eduardo Escorel, além de participar de outras produções e de muitas campanhas publicitárias. Tinha uma imensa capacidade de trabalho.
Nossa primeira prisão ocorreu em 13 de maio de 1971, em casa. Vale lembrar que meu sogro era um general e que eu era de uma família de comunistas, fui e sou, e que os policiais do DOPS me conheciam muito bem. A ditadura de Getúlio [Vargas] não me deixou chamar Lenina. Fez com que meu pai mudasse o nome na hora para Lenira, dentro do cartório. Quem sabe a minha vida de filha de militantes na ditadura de Getúlio me ajudou a preparar meu filho, criança, para nos acompanhar na militância da ditadura militar pós 1964.
Uma coisa que nós sempre discutimos muito e sobre a qual o Aritanã tinha muita clareza é sobre minha opção de ter um filho e ir para a clandestinidade. Eu sempre disse e ele sempre aceitou que, para mim, na qualidade de militante de esquerda, seria impossível pensar em tentar mobilizar a classe operária, em tentar mobilizar camponeses que tinham filhos se, um militante de esquerda, com obrigações frente ao país não fosse capaz também de criar um filho na clandestinidade. Essa foi uma opção muito clara que fizemos e ele tinha isso muito claro. Nunca houve sentimento de culpa entre nós em função da opção que os pais fizeram naquele momento drástico da política brasileira.
Ele aprendeu muito cedo que ele não podia falar o nome Lenira, nem Altino [Rodrigues Dantas Junior, pai de Aritanã], e que os nossos nomes mudavam de acordo com o local em que nós estávamos. Passou a nos chamar de “Querida” e “Meu bem”. Quando alguém perguntava: “Como chama seu pai?”, ele respondia: “Meu bem”. “Como chama sua mãe?” “Querida”. Soube conviver com isso e soube conviver também com a vida no presídio feminino, com Camila, com Paulo [filhos de Rita Sipahi e Antonio Othon Pires Rolim], com Daniel Pimenta, filho de Telinha Maristela S. Pimenta, com meu sobrinho Ernesto, filho de minha irmã, nas visitas que faziam para a gente dentro do presídio. Ele me contava dos passeios nos finais de semana que fazia com a tia Elza Lobo, companheira de longa data, recém-libertada do Tiradentes e que ia buscá-lo na casa dos avós paternos para passear. Ele dizia que não tinha só duas avós, que ele também tinha uma avó chamada Ana, mãe de Elza. Ele manteve esse relacionamento até o falecimento da maravilhosa dona Ana.
Eu acho que o meu filho viveu bem essa primeira fase da nossa prisão até minha soltura, em 1972. Eu tenho uma carta da Lúcia Coelho [ex-presa política e psicóloga]. Como eu estava muito preocupada com a situação do Aritanã, eu pedi a ela, como psicóloga, que o encaminhasse para uma análise psicológica para eu saber como estava meu filho e a resposta da avaliação foi muito boa.
Ele era uma criança que sabia distinguir as coisas. O avô dele, em função de denunciar as nossas prisões e torturas, ficou preso no QG do 2º Exército. Então, na primeira visita que ele nos fez no nosso presídio, o Tiradentes, ele disse: “Prefiro a prisão do meu avô. Lá tem morango, tem geladeira e tem sorvete”.
Em abril de 1974, quando da minha segunda prisão, foi instaurado neste país, pela primeira vez, um processo de destituição de pátrio poder por questão ideológica. Eu acho que as pessoas ainda hoje não se dão conta do que significou a nossa luta por reaver o Aritanã. O processo, que durou dois anos doloridos e sofridos, se restringiu ao Aritanã. Só foi ganho graças ao escritório do advogado Iberê Bandeira de Melo, quando Dr. Nahum e toda equipe empenharam-se em nossa defesa e pela solidariedade de companheiros como a do jornalista Fernando Morais nós pudemos, enfim, receber de novo meu filho em casa.
Foram dois anos de luta, não só para mim, para ele também e para todas as pessoas que naquele momento conviveram e participaram daquele processo. Durante seis meses, eu fui proibida de entrar no apartamento dos meus ex-sogros, porque eu era tida como uma terrorista e colocava a vida da família em risco.
Para ver meu filho, a porta do apartamento era aberta, ele era sentado próximo à porta e eu ficava ao lado do elevador. Eu levava papel, lápis, tinta, e ficávamos os dois sentados por uma hora no chão brincando naquele hall de elevador. Em diversos momentos meu filho prestou depoimento a assistentes sociais para saber como a mãe terrorista o tratava.
Quando da nossa primeira prisão, eu consegui levar Aritanã para a casa dos meus sogros e implorei que o levassem para escola no outro dia. Isso foi feito. Aritanã chegou à escola Lourenço Castanho, que teve uma importância enorme na vida do meu filho. A solidariedade que eu tive da direção daquela escola é imensa. Meu filho entrou na classe e, aos 4 anos, fez o relato da nossa prisão, “Meu pai e minha mãe foram presos. Meu pai começou a apanhar dentro de casa, minha mãe conseguiu me deixar na casa do meu avô e da minha avó, mas o carro que fomos não tinha chapa branca de polícia”. Esse foi o depoimento que ele deu na escola com 4 anos.
Em 1974, quando ele foi tirado de casa, saiu do Lourenço Castanho, e foi matriculado no grupo escolar Rodrigues Alves, na Avenida Paulista. Quando eu soube o que estava acontecendo nessa escola pública (a direção foi orientada a impedir contato meu com o Aritanã e ele era apresentado aos colegas como filho de terroristas), fui conversar com a diretora. Na hora que entrei na escola, que parecia mais um presídio, esta mulher começou a gritar “Socorro, terrorista! Socorro terrorista!” e não quis me escutar. Depois, meu filho foi levado para um colégio de padres, no Morumbi, o Santo Américo. Depois de dois anos do processo de destituição do pátrio poder, quando ganhamos o processo em segunda instância, voltamos a ter uma vida normal e nova matrícula no Lourenço Castanho.
Voltar à antiga escola foi uma glória para ele. Em um dos seus últimos aniversários, fez questão de convidar todos colegas de Lourenço Castanho para participarem da comemoração. Fomos aconselhados por psicólogos a voltar a ter uma casa mais restrita, eu com meu novo companheiro e com Aritanã. Meu filho havia perdido a noção de utilização do espaço.
Essa volta foi muito complicada para todos. Eu só via uma saída naquele momento para tentar recuperar meu filho, que foi sair do Brasil. Ir à África como cooperante do governo Moçambicano. Lá ele se encontrou novamente com a esperança, a solidariedade, a fraternidade. Também foi lá que encontrou sua profissão, menino de 14 anos, trabalhando na empresa de cinema e audiovisual que Ruy Guerra havia criado em Moçambique. Foi com a equipe do Ruy Guerra que Aritanã se formou na área de cinema.
Nós vivemos um grande amor, muitas vezes com muitos conflitos, tapas e beijos, mas, também, com muito amor. E ele plantou uma semente que se chama Ivan, um filho que tem hoje 21 anos, músico, faz faculdade de música e que é de uma integridade, de uma sensibilidade, de uma afetividade que só Aritanã foi capaz de construir em alguém tão jovem. Mesmo na doença, mesmo fazendo uma cirurgia de cérebro, mesmo se internando uma vez por mês no Hospital das Clínicas ele conseguiu ser pai e mãe de uma pessoa maravilhosa. Essa é a grande herança que meu filho me deixa.
O testemunho acima é de Lenira Machado, sobre seu filho Aritanã.
Em 3 de abril de 1974 foi presa pela segunda vez em São Paulo. Aritanã tinha 9 anos. Quando foi solta, constatou que havia perdido o pátrio poder e guarda de seu filho para o sogro. Foi o único processo de Destituição de Pátrio Poder movido devido à ideologia dos pais. Conseguiu reaver a guarda apenas em 1976. Saíram do Brasil e foram para Moçambique onde Aritanã, aos 14 anos, começou a trabalhar com cinema, integrando a equipe técnica de Ruy Guerra. Após seis anos de luta por sua saúde, Aritanã Machado Dantas faleceu em 11 de janeiro de 2013. Lenira trabalha como consultora em projetos urbanos e avaliação de projetos.