Mãos firmes a revistavam…tinha apenas
9 anos. Pode abaixar as calças? Afasta as pernas! Muito bem! Levante os braços, abra a boca, cabelos…(tudo numa agilidade troglodita e sem pausa).
Pode vestir… a saída é por ali…
Por ali era um portão verde de ferro que dava para outro portão de grade, que dava para um pátio enorme que tinha chão de concreto quebrado. Ia feliz, sem entender.
Para o seu tamanho, aqueles dois pavilhões que rodeavam o pátio eram verdadeiros monumentos, cheios de janelinhas gradeadas e com mãos acenando.
Quem seriam aqueles?
Passeava num passo de dança… dois pra cá, dois pra lá… até chegar noutro portão onde a escuridão do lado de dentro lembrava os medos de dormir.
Homens fardados barravam a entrada de um dos prédios grandes e curiosa que era se enfiava entre os vãos das pernas enormes… Posso ver? Perguntava.
Lá vinha ele… um homem baixo, loiro, rosto bonito,músculos fortes… e com aquele sorriso… um sorriso conhecido e querido, olhos muito claros que a fitavam com saudades.
O coração ia aos pulos, quase tropeçava entre aquelas fardas… tentando se aproximar. Mas, o que era aquilo? Porque ele tinha aquelas argolas rodeando seus punhos?
Já muito próxima, a menina atônita já não era feliz, por tentar entender.
Pai!!!! Abraçava, pulava no colo, puxava sua mão… quase o amassava.
– Pai, o que era aquilo? Porque aqueles homens prenderam seus braços?
– São algemas e servem pra que a gente não tente fugir.
– O senhor quer fugir?
– Não. Mas eles pensam que sim.
– Pai, aprendi um novo passo… quer ver? Aposto que não sabe fazer… quer tentar? Dança comigo?
Imagem surreal de alegria, num retângulo de vidas cortadas.
– Gostou?
Nem percebeu que das janelas com mãos desconhecidas lhes jogavam colares, pulseiras… coisas bonitas.
– É pra mim?
– Claro que sim! Pode dançar mais pequena bailarina?
Lá ia ela fazendo rodas, cantarolando, fazendo estrela e sendo a própria.
– Quem são eles pai?
– São presos “comuns”… é como são chamados.
– O senhor também é um preso comum? Pois eu não acho… acho que é um preso importante, o mais importante de todos!
– Neste prédio que estou são só presos políticos… somos divididos.
– Preso político? É alguma coisa ruim?
– Não é não… e sorriu aquele sorriso calmante.
– Mas pai, por que tá preso?
– Ainda é pequena pra entender.
– Mas não tô feliz agora… queria que voltasse pra casa.
– Quando for embora, vai parar lá na Av.
Tiradentes, sabe qual é?
– Sei. Essa que fica em volta do prédio…
– Então, vai contar três andares, de baixo para cima e olhar pra janelinha da direita. Vou acenar pra você, com uma toalha branca. Vai imaginar um pássaro, que vai voar até seus ombros… e o levará sempre junto pra onde quiser.
– Puxa! Verdade?
(silêncio)
– Já sei porque tá aqui, pai, e nem preciso crescer tanto. Está preso porque sonha bonito. Eles quiseram trancar suas palavras assim. Mas isso não é roubo?

– Tenho um pai passarinho poeta preso – mas não conta pra ninguém.
– O quê?
– Que ele tem asas.
“O portão do Tiradentes ainda existe, a menina também… e o pássaro continua voando”

Rosa Maria Martinelli, “Anos Setenta”, in: Entrelinhas: Antologia de Contos e Microcontos, Andross Editora, São Paulo, 2008, pp. 123-125.


Maria Augusta Martins Martinelli, caçula de seis irmãos, nasceu em Jundiaí (SP), em 1925. Filha de Amélia e João Martins, ambos portugueses. Casou-se com Raphael Martinelli em 1947.
Faleceu em novembro de 2003, aos 78 anos, quando ia completar 56 anos de casamento com Martinelli. De acordo com Rosa, sua filha, era uma “cozinheira maravilhosa. Quem compartilhou da sua mesa, sabe. Fazia o melhor capeletti in brodo que se tem notícia. O fazia artesanalmente. Sua felicidade era nos ver repetir o prato. Todas as noites, até mesmo quando estava doente, esperava meu pai para colocar a conversa em dia. Ela nasceu para ser mãe, era muito presente e afetiva”. De acordo com Martinelli, a parceria da esposa “foi essencial para minha história como revolucionário”.


Raphael Martinelli nasceu em São Paulo (SP), em 16 de outubro de 1924. Filho de Maximino Martinelli e Yoli Pistorezzi Martinelli.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa empresa de anilina (Produtos Químicos Sucuri), depois numa vidraria (Santa Marina) e em seguida como ajudante de ferreiro, na empresa de produtos de aço Tupi.
Em 1941, entrou para a Estrada de Ferro São Paulo Railway. Apaixonado por futebol e bom de bola, jogou em times da várzea paulistana até que a ferrovia e a militância ocuparam a maior parte de seu tempo. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde a adolescência, seguindo os passos de seu pai, filia-se ao sindicato dos ferroviários.
Foi dirigente da Federação Nacional dos Ferroviários e um dos mais importantes líderes sindicais do Brasil até 1964. Quando houve o golpe, foi cassado por dez anos. Foi para a clandestinidade e entrou na luta armada.
Junto com Carlos Marighella, foi um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 1970 foi levado à Operação Bandeirantes (OBAN).
Ficou preso durante três anos, três meses e 10 dias.
Hoje é advogado e presidente fundador do Fórum dos Ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo. Tem quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos.

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