Somos filhas de Raimundo Gonçalves de Figueiredo e Maria Regina Lobo de Figueiredo, torturados e mortos pela ditadura nos anos de 1971 e 1972, em Recife e no Rio de Janeiro, respectivamente. Sempre é muito difícil lidar com a morte de nossos pais. É um assunto muito delicado para nós, que mexe com sentimentos muito profundos.
Mais do que conhecer os responsáveis pela morte de nossos pais, queremos que, nesse processo desencadeado pela instalação da Comissão da Verdade, as imagens de nossos pais sejam respeitadas, principalmente a do nosso pai.
Nosso pai foi apontado como um dos responsáveis por um ato no aeroporto de Guararapes (PE), com o objetivo de atingir o general Costa e Silva, e que, não dando certo, causou a morte de duas pessoas. Não nos cabe e não podemos julgar tal ato e muito menos nosso pai. Sentimos muito a morte dessas pessoas e de alguma forma sabemos que estamos ligadas a elas.
Ocorre, porém, que o referido ato foi uma ação planejada por um grupo de pessoas, que, com a exceção de um padre, aproveitaram que nosso pai estava morto e jogaram a responsabilidade toda sobre ele. Para isso, denegriram a imagem de nosso pai, algumas vezes publicamente. Não se importaram com o fato desse homem ter dado sua vida pelo ideal que acreditavam e que, segundo relatos, tenha salvado a vida de vários de seus companheiros em diversas ocasiões.
Temos conhecimento que um dos envolvidos no ato, que muitos anos depois responsabilizou nosso pai, foi quem o entregou à polícia, o que resultou em sua morte. Outro, bastante tempo depois, ao ser interpelado por nós por queimar a imagem de nosso pai, desmentiu as afirmações feitas por ele na imprensa, mas não teve o trabalho de desmentir também publicamente. Outro, ao ser procurado por nós muito tempo depois, quando de uma série de reportagens falando sobre o caso de Guararapes, que o apontava também como autor, contou-nos que ele propriamente não estava envolvido, mas que nosso pai e um grupo sim.
Esse senhor pediu-nos para xerocar um material particular que tínhamos em mãos, alegando que era para guardar em seu arquivo particular. Depois de dois dias, esse material foi publicado na imprensa, em resposta às referidas reportagens, tentando inculpar somente nosso pai pela ação.
Sabemos que não é papel da Comissão Nacional da Verdade investigar a ação da esquerda, mas, realmente, no nosso caso, tivemos que lidar muito cedo com questões muito além do bem e do mal, dos bons e dos ruins. Foi muito difícil ver esses homens se aproveitando tanto da morte do nosso pai, como da nossa fragilidade.
Da mesma forma que concordamos que a impunidade dos militares envolvidos com os crimes da ditadura tem repercussões nos dias de hoje em várias esferas da sociedade, acreditamos que a covardia com que nosso pai foi tratado por seus “companheiros” tem reflexos até hoje na cultura de nossa esquerda.
Vimos com bons olhos a instauração da Comissão da Verdade, principalmente no governo da presidenta Dilma, que sentiu na pele o sofrimento daquela época. Faz bem ver alguns estudantes hoje protestarem com autêntica emoção, como também é bom ver a deputada Erundina, nos seus 80 anos, tão verdadeiramente empenhada em garantir justiça às mortes ocorridas no regime militar. Faz bem sim, principalmente em um país com uma cultura como a nossa. É muito ruim perceber o “deixa disso”, sem ao menos as pessoas se colocarem em nossos lugares e pensarem o que sentiriam com a impunidade e com o descaso se fossem seus familiares.
Porém, além da morte de nossos pais de forma tão violenta, quando éramos muito pequenas, e de toda a falta que eles fizeram, tivemos que nos deparar com a atitude desses senhores. No entanto, toda essa vivência foi o que nos impeliu muito fortemente, cada uma da sua maneira, a buscar uma superação, um conforto, muito embora isso seja trabalho para todas as nossas vidas.
Gostaríamos que neste processo em curso houvesse um pouco da profundidade e transcendência que estamos buscando na elaboração da morte de nossos pais. Não se trata de não se buscar justiça, mas de ver além disso. Só assim acreditamos que o processo possa contribuir de fato para as vítimas, estejam elas mortas ou vivas.
Gostaríamos que esse processo pudesse contribuir de alguma forma, por exemplo, para que os parentes dos mortos no episódio de Guararapes tivessem um olhar compassivo para com nosso pai, que tivessem um entendimento de que os que lutaram naquela época foram os que mais captaram toda a necessidade de liberdade e justiça social que havia na época. Que soubessem que nosso pai era, sobretudo, um homem muito caridoso, um homem simples, filho de um seleiro e uma parteira de uma cidade de Minas. Fazia o que podia para ajudar quem precisava.
Segundo nossa avó, mais de uma vez, quando rapaz, chegou em casa sem a camisa e os sapatos, pois os havia dado na rua.Temos posições diferentes quanto à necessidade de responsabilização pela morte dos nossos pais, mas, ambas necessitamos que o processo em curso trate a história de nossos pais de uma forma muito cuidadosa. Não gostaríamos, por exemplo, de ver fotos de nossos pais mortos espalhadas pela internet. Nossas lembranças são por demais tênues e preciosas.
Ter a lembrança de água entrando em nossa casa por causa de uma cheia do rio Capiberibe, nós em cima da cama de casal de nossos pais e só conseguir recordar de uma grande alegria: andar na casa, só de barco. Depois no cangote de nosso pai correndo da cheia e sentir-se segura. Reconhecer em breves momentos o cheiro da mulher mais linda do mundo. Lembrar de como ela conseguia fazer da poltrona de ônibus um lugar cheiroso, gostoso e quentinho. Reconhecer em alguém algo que lembra nossa mãe. As recordações tristes existem muitas, mas essas são as que preservamos com maior cuidado.
Gostaríamos de ter os restos mortais de nosso pai, muito em consideração à mãe dele, já falecida, que um ano antes da morte de nosso pai, perdeu sua outra filha afogada. Nossa avó fez uma promessa de não sair mais de casa, caso o corpo dela fosse achado. O corpo de nossa tia foi encontrado, mas um ano depois seu único outro filho morreu e ela nunca pode enterrá-lo. Nossa mãe foi enterrada por seus familiares.
Enfim, gostaríamos que o processo em curso, mais que mexer nessas feridas tão grandes, aplique os remédios e os cuidados necessários para que elas possam cicatrizar.
Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (atual UFRJ). Desenvolveu um trabalho na cidade de Marcos (MA), pelo Movimento de Educação de Base (MEB), apoiado pela Igreja Católica. Ali permaneceu cerca de três anos, dirigindo-se depois para o Recife (PE). Era casada com Raimundo Gonçalves Figueiredo, assassinado em 28 de abril de 1971, com quem teve duas filhas, Isabel e Iara, as quais tinham 3 e 4 anos quando ocorreu sua morte.
A prisão e morte de Maria Regina e outros três companheiros de organização – Antônio Marcos Pinto de Oliveira, Wilton Ferreira e Ligia Maria Salgado Nóbrega, ocorreu no episódio que ficou conhecido como Chacina de Quintino, quando a casa em que moravam, no Rio de Janeiro, foi invadida por agentes do DOI-CODI/RJ, em 29 de março de 1972.
Era bancário em Sete Lagoas (MG), onde participou da Juventude Operária Católica (JOC). Logo foi transferido para Belo Horizonte (MG). Estudou em um seminário na mesma cidade, onde participou de mobilizações estudantis e mutirões em favelas. Nesta época, iniciou sua militância na Ação Popular (AP). Após romper com essa organização, participou da Ala Vermelha – uma dissidência do PCdoB – e, mais tarde, ingressou na VAR-Palmares. Esteve preso no DOPS/GB entre outubro e novembro de 1968, de onde foi solto por meio de um habeas corpus. Morreu aos 33 anos e vivia em Jaboatão dos Guararapes (PE). Foi baleado e preso em uma casa do bairro de Sucupira, em Recife (PE), por agentes do DOPS pernambucano, em 27 de abril de 1971, morrendo no dia seguinte.