Eu sou o mais velho dos irmãos, portanto o que não sofreu o que eles sofreram. Eu fui mais cobrador do meu pai, tinha 15 anos em 1964. Depois do golpe, fomos distribuídos na casa de estranhos, depois parentes ficaram com cada um dos irmãos, até que meu avô nos reuniu numa casa de aluguel. E só quando ele [o pai, Raphael Martinelli] apareceu voltamos a conviver.
Ele era um líder sindical conhecido nacionalmente. Eu, na época, era só o colecionador de fotos da revista O Cruzeiro, do homem que parava o Brasil com um telefonema. E não tinha noção do tamanho da grandeza do meu pai. Logo nós percebemos que eu tinha que arrumar meu primeiro emprego. E assim aconteceu. Ele, por ser uma pessoa que sempre lutou contra a ditadura foi preso na sede do Inocoop. E eu já estava trabalhando.
Ele não foi preso e localizado, ele foi preso e sumido. A história é meio longa, mas foi através de uma tia que conhecia uma pessoa de alta patente do Exército que morava na rua que ela morava que conseguimos localizar onde ele estava. Ela pediu para a família ir até a porta da OBAN levando roupa, para ficarem sabendo que o tínhamos localizado. E assim a vida foi, para mim, um pouco difícil porque eu passei a ser arrimo de família e comecei a controlar os meus irmãos, que em seguida foram tendo funções também na empresa que eles começaram a trabalhar. E aquela velha história de pegar os envelopes de pagamento, põe tudo aqui na mesa, passei a ser o pai deles.
A gente tem um rompimento de amor por causa dessas coisas de inversão de papeis. Tem uma carta, inclusive, que a Rosa me passou, há pouco tempo, que eu escrevi ao meu pai dizendo isso, que ele precisava, na visita que o Edson fizesse lá, conversar com ele e dizer que não fosse rebelde, porque eu controlava o dinheiro. [Ele] tinha uma namorada, que é a esposa dele hoje, mas o dinheiro, quem separava para ele ir ao cinema era eu, o Jaime. Era eu que fazia as funções ruins da família.
E comecei a ser um questionador do meu pai. Eu ia visitá-lo, mas não tantas vezes. Comecei a ter revolta pelo fato de ele ter sido líder político, cassado, procurado. E passada aquela fase, ele se envolveu com a luta armada e acho que ele não pensou tanto na família. Nós não sabíamos o que ele fazia. Eu não sei se isso foi uma defesa para a família. Se nós tivéssemos sido pegos, torturados, não teríamos o que falar do meu pai. Nem a mãe e nenhum dos filhos sabíamos o que ele estava fazendo.
Fomos descobrindo tudo com o processo, sobre as torturas, eu questionava muito que ele não devia ter se metido novamente naquilo. Eu acho que um idealista não devia ser pai. Mas como ser humano, como alguém que o conheça, que conversa, vira fã do velho. Ele é uma pessoa rara que passou por altos cargos e não teve um tostão na vida. A casa que ele teve foi graças aos filhos pagarem as mensalidades do Inocoop, ele iniciou, mas nós que pagamos o carnezinho. Imagine, uma pessoa que foi amigo do Presidente da República, amigo do João Goulart, nessa situação.
Ele nunca quis nada para ele, sempre lutou pelo bem do povo brasileiro e hoje isso parece uma utopia. Hoje, a gente vê tudo que acontece aí, uma pessoa que nem o próprio Lula, que sai de uma condição de nada e hoje é um milionário. Não que a gente quisesse isso para nós, mas meu pai merecia um reconhecimento, meu pai merecia.
E o que eu acho é que é uma pessoa que graças a Deus temos tempo para consertar todos esses erros de não entendê-lo. Nós passávamos Natais com todos os irmãos dele, aquela farra de família italiana, que ele adorava e nós não conseguimos ter essa união pela falta dele.
Eu tive sorte que meu nome não tem a ver com a política dele ainda, pois os outros todos tiveram. O meu irmão é Edson Lenin Martinelli e carregou isso na escola. Eu acho que meu pai deveria ter tirado esse carimbo dos filhos. A gente não merecia isso, mas ele era um idealista, e paciência. E comigo e meus irmão ele teve, o que adora, que são os netos. Junto dos netos a gente vê isso. Ele é um moleque junto dos netos, tem uma saúde de ferro para brincar, e eu passei por isso como filho.
Fui filho único por quatro anos e pouco e depois ele já [estava] metido em política. Meus outros irmãos sofreram, não conheceram esse pai que eu conheci. Eu tenho certeza que o maior cobrador dele de tudo, fui eu. Hoje nós já tiramos algumas barreiras da frente, mas ele sabe que eu fui o filho mais incompreensível.
Uma coisa que eu queria deixar claro, e eu acho que a Comissão da Verdade está batendo muito nessa tecla, é Tortura Nunca Mais. Meu pai foi torturado de maneira bárbara. Ele era treinado para isso também, não podemos dizer que era nenhum bobinho. Ele foi treinado para tudo isso, mas ele esteve em um programa agora, recentemente, do Antônio Abujamra,
Provocações, onde falou uma coisa que eu ouvi pela primeira vez e que marcou muito. Foi perguntado por que ele era da linha stalinista, que para mim sempre foi um criminoso dos maiores que teve nessa humanidade. Ele foi questionado pelo Abujamra: “Mas, stalinista?” E ele falou: “Sim, porque Stalin matava, mas não torturava”. Tortura é a coisa mais absurda que existe no mundo. E eu acredito que só quem tenha passado, e ele passou, pode dizer isso com todas as letras. É muito mais fácil matar do que torturar. Então, essa coisa horrível que algumas pessoas estão passando aqui pela Comissão da Verdade tentando se defender, as pessoas não podem ser humanas fazendo torturas com seres humanos.
Não pode ter uma inteligência, por exemplo, de uma ditadura colocada naquele momento que tenha que se fazer dessa coisa absurda, dessa coisa abominável para que se possa vencer uma mentalidade contra o atual regime da época. Então, é isso que eu queria deixar gravado. A Comissão da Verdade eu tenho acompanhado e espero que tenha bastante frutos. Tem algumas pessoas aí com a idade do meu pai, que podem dar depoimentos e dizer quem realmente são torturadores, quem realmente fizeram essas coisas horríveis.
Acho que a nossa [vida] ainda foi privilegiada. A nossa não teve nascimento em cela de tortura, mães dando a luz em cárceres, a nossa ainda foi privilegiada. Graças a Deus estamos todos com saúde, com netos, e aí tocando a vida.
Espero maior sucesso para a Comissão da Verdade e que realmente vocês prestem atenção, esse homem não vai estar mais muito tempo entre nós, apesar de ter uma saúde melhor que a minha, mas é uma figura rara, na política brasileira é uma figura rara.
O meu compadre, que nas ausências dos meus irmãos é um irmão também, falou uma coisa sobre a minha mãe, uma coisa que me marcou pelo resto da minha vida. Ele diz que ela tinha que ser canonizada viva. Ele conheceu ela como frequentador da nossa casa, e ela não era uma pessoa que por ser apolítica, não era sem vida. Eu tenho certeza absoluta que ela era uma mãe galinha.
Tanto é que dois de nós, três se divorciaram, voltaram para casa adulto, pai de filhos. E a maior alegria dela foi nos receber, as ex-noras ficaram horrorizadas ao verem que ela podia cuidar de nós de novo. Que foi o que ela soube fazer a vida inteira. Ela não queria nenhuma outra coisa que não cuidar dos filhos. Sobre nós, os quatro irmãos se formaram, trabalhando e pagando seus cursos superiores. E pudemos fazer o inverso com os nossos filhos, graças a Deus.
Sobre o meu pai, ele deve ser uma pessoa muito decepcionada com amizades, o que criou para mim um problema seríssimo. Eu tenho um amigo só, que é meu compadre. Não tenho mais porque hoje em dia é uma dificuldade ter amigos. Eu lembro do meu pai falando bem de Lula em casa, quando era líder sindical e estava viajando o mundo, sendo acusado por isso. E meu pai defendendo, dizendo que ele tinha feito a mesma coisa para os filhos lá em casa. “Eu fiz a mesma coisa (quando líder sindical), conheci o mundo sendo convidado sem ter um dinheiro no bolso, sendo chamado, e o Lula está fazendo a mesma coisa”. E não era.
Eu fico imaginando a decepção dele com o José Dirceu, com o Genoíno, com o Luiz Eduardo Greenhalgh. Quando eu estava divorciado, [morando] na minha mãe, atendia telefonema dessas pessoas procurando pelo meu pai. Devem ter usado todo o conhecimento que ele teve como líder sindical, como tudo que ele conhecia de ferrovia e conhece até hoje, e está sempre atualizado. E essas pessoas estão usando isso até hoje.
Ele, como idealista, uma pessoa com capacidade enorme sem ter feito nenhuma fortuna alheia, não pegando nada que não era do nosso país, e esses sem vergonha dessa bandidagem toda que ele considerava como pessoas dignas, e esse papelão. Então, imagine meu pai, nunca perguntei isso para ele porque a gente não tem essa liberdade, mas a decepção que ele tem com pessoas que ele confiava. É uma coisa terrível.
Eu comprovei que o João Goulart era amigo do meu pai, porque quando ele esteve na lista para ser trocado pelo cônsul, ele se recusou a ir porque queria cumprir o que devesse e ele devia mesmo, porque na ocasião ele lutava contra a ditadura. Então ele quis pagar no Brasil o que estava fazendo de errado, quis cumprir a pena dele aqui como cumpriu. A gente estava naquela situação muito ruim na Lapa de Baixo [Em São Paulo], morando de aluguel, sendo ajudado por parentes. E aí um amigo do João Goulart veio em casa conversar com minha mãe para falar que o João Goulart estava chamando para a gente viver no Uruguai, ter emprego para o meu pai lá, para a gente largar tudo e ir embora. E ele logicamente como é, não aceitou. Mas, teve esse único amigo que reconheceu mesmo e sabia que meu pai estava passando as necessidades. E essa pessoa subiu na Lapa de Cima, porque viu a situação que a gente vivia, que não tinha nada, comprou uma máquina de lavar e mandou entregar em casa.
Nós nos amamos, mas temos problemas entre irmãos. Hoje contei para o Edson uma passagem de como a gente saiu do Rio de Janeiro e ele não lembrava, porque era bem menor que eu.
Então, tem algumas coisas que eu conheço e eles não conhecem. É falta da convivência de irmãos. Mas o que eu queria dizer é isso, que tenho dificuldades para amizades.
Outra coisa que meus irmãos talvez não saibam é do meu pensamento. Com dificuldades eu trabalhei em multinacionais, vivi, cresci, comprei minha casa própria, meu carro, eduquei meus filhos, tudo, e a gente assistiu que esse mundo não é para pessoas que nem meu pai, honesto. A gente teve na nossa frente um monte de caminhos errados para seguir para ficar muito bem de vida. Eu recusei todos. E tenho certeza que por algumas conversas que eu tive com o Edson, ele igualmente. Nós tivemos esse problema de não triar, se for em benefício próprio, fazer alguma coisa contrária à lei, conforme a honestidade que meu pai nos criou é uma herança fantástica para nós, a gente não triou. Não lamento nem um pouco isso e graças a deus estou como o Edson falou, estou feliz com a minha vida. Podendo abraçar meu pai, tendo tempo de falar aqui, eu te amo, pai. Ainda está em tempo de falarmos isso.
Faleceu em novembro de 2003, aos 78 anos, quando ia completar 56 anos de casamento com Martinelli. De acordo com Rosa, sua filha, era uma “cozinheira maravilhosa. Quem compartilhou da sua mesa, sabe. Fazia o melhor capeletti in brodo que se tem notícia. O fazia artesanalmente. Sua felicidade era nos ver repetir o prato. Todas as noites, até mesmo quando estava doente, esperava meu pai para colocar a conversa em dia. Ela nasceu para ser mãe, era muito presente e afetiva”. De acordo com Martinelli, a parceria da esposa “foi essencial para minha história como revolucionário”.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa empresa de anilina (Produtos Químicos Sucuri), depois numa vidraria (Santa Marina) e em seguida como ajudante de ferreiro, na empresa de produtos de aço Tupi.
Em 1941, entrou para a Estrada de Ferro São Paulo Railway. Apaixonado por futebol e bom de bola, jogou em times da várzea paulistana até que a ferrovia e a militância ocuparam a maior parte de seu tempo. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde a adolescência, seguindo os passos de seu pai, filia-se ao sindicato dos ferroviários.
Foi dirigente da Federação Nacional dos Ferroviários e um dos mais importantes líderes sindicais do Brasil até 1964. Quando houve o golpe, foi cassado por dez anos. Foi para a clandestinidade e entrou na luta armada.
Junto com Carlos Marighella, foi um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 1970 foi levado à Operação Bandeirantes (OBAN).
Ficou preso durante três anos, três meses e 10 dias.
Hoje é advogado e presidente fundador do Fórum dos Ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo. Tem quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos.