Na infância, o que eu ouvia sobre meu pai era que ele era um ladrão, que eu era filho de um ladrão e que meu sangue não prestava. Essa história vinha à tona em brigas familiares que ocorriam em casa. Depois que meu pai morreu, minha mãe virou dependente do álcool e minha avó virou a mantenedora da casa. E eu, pequeno, ouvia coisas como: “Você é um ladrão, você não presta”.
A história da minha família é essa: minha avó veio da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Minha mãe também nasceu na Alemanha. Logo depois do golpe de 1964, meu pai conseguiu fugir por ter sido condenado a cinco anos e oito meses de prisão. Ele seguiu para Guarulhos, cidade satélite ainda muito pequena, e conheceu minha mãe. Eles tiveram um romance, ficaram juntos e então eu nasci em 1968.
Eu tinha quatro anos quando ele morreu. A única lembrança que eu tenho até hoje é de uma casa onde morávamos eu, minha mãe e meu pai. E um dia, na frente da lareira dessa casa, ele me deu um brinquedo, passou a mão na minha cabeça e foi embora. O brinquedo era um carrinho tipo cegonheira. Mas eu não me lembro da fisionomia dele. Para mim, esse episódio do brinquedo foi como uma despedida, mas é a única lembrança que eu tenho dele. E a partir daí não tenho mais nenhuma lembrança.
Não lembro, por exemplo, da chegada da notícia da morte dele. As publicações da época divulgaram informações do sequestro do avião [que ele fez] e da morte. Até a minha foto, com o título “Naldinho, filho do sequestrador”, divulgaram na imprensa. Fiquei muito chocado quando descobri uma foto minha no jornal O Globo. Só fui descobrir isso depois, com 34, 35 anos de idade.
Durante a minha infância, sempre que se tocava no nome do meu pai era através de uma briga. Foi assim na infância, adolescência e começo da vida adulta. O que eu ouvia era sempre: “Você é filho de ladrão, você não presta, você não tem sangue bom”. Além de ladrão, a história era que depois do sequestro do avião, ele havia se suicidado.
Essas brigas envolviam a mim, minha mãe, avó e meu tio, irmão da minha mãe. Minha mãe tinha uma personalidade forte, assim como minha avó, que era alemã da gema e tinha tido uma educação muito rígida. Sempre que havia desentendimentos na minha família, isso era jogado na cara da minha mãe e consequentemente vinha para cima de mim também.
A maior vítima disso tudo foi a minha mãe. Imagine ela, uma mulher analfabeta, dona de casa, se vendo numa situação em que o marido diz que a comida não está boa e simplesmente vai embora? Imagine para ela, o marido se despedir assim e a notícia seguinte ser a do sequestro?
Hoje, fico imaginando como foi para ele ter que abandonar a esposa e um filho de 4 anos e ter que lutar pela sobrevivência. E como foi para a minha mãe, analfabeta, descobrir a morte dele dessa maneira, nessa situação, com todo mundo em cima dela. Foi muito para a cabeça dela. Eu acho que ela não sabia da militância do meu pai.
Quando tudo isso veio à tona, minha mãe mudou completamente a maneira dela de ser. Virou uma alcoólatra, dependente do cigarro. E eu só fui perceber isso aos 34 anos, idade em que comecei a juntar todas as peças.
Minha mãe nunca falou nada do meu pai. Sempre disse que ele tinha morrido num avião, só isso. Ela bebia muito, ficava muito bêbada, a ponto de brigar e quebrar as coisas dentro de casa. Quando bebia, ela mudava totalmente, escutava umas músicas do Evaldo Braga, Aguinaldo Timóteo. Eu não conseguia perceber que minha mãe entrava literalmente na fossa. Ela acendia um cigarro, pegava um copo de conhaque que gostava muito e ficava escutando aquela música que colocava para dormir.
Nessa época, comecei a perceber as tristezas dela. Nós morávamos no terceiro andar de uma quitinete no centro de Guarulhos. Lá, quase não tinha água. Todos os dias tínhamos que ir buscar água para tomar banho no banheiro coletivo. Minha mãe ficava lá bebendo, tomando as dela e eu ficava deitado no sofá cama.
Depois que meu pai morreu, nosso padrão de vida mudou totalmente. A casa onde morávamos era muito boa, o local também era bom, um bairro de classe média operária.
Minha avó tinha uma casa no centro de Guarulhos. Era uma pensão que foi crescendo. Minha mãe trabalhava como empregada nessa casa, ajudando na limpeza. Por conta das divergências, por conta do álcool, minha avó e minha mãe se desentendiam bastante. E eu, com sete, 8 anos também não entendia minha mãe. Só fui entender depois, quando descobri toda a história.
Eu não perguntava sobre a morte do meu pai, era um assunto tabu. Porque eu fui criado pensando que era filho de ladrão. Não queria tocar nesse assunto, era muito complicado. Era um assunto que não podia ser falado.
Quando eu tinha 9 anos, minha mãe teve um AVC e perdeu todas faculdades mentais. Não andava mais, praticamente virou um bebê. E, para piorar, eu tinha um padrasto. Esse
relacionamento dela foi uma das tentativas de mudar de vida. Nessa quitinete morávamos eu, minha mãe e padrasto. Ele descobriu toda a história do meu pai, porque também trabalhou na Camargo Corrêa, onde meu pai foi vigia por alguns anos. E a história que também chegou para ele era de que meu pai era ladrão, terrorista. E ele usava muito da força física contra mim, me chamando de filho de ladrão. Ele reforçava muito essa história. Ele batia na minha mãe, batia em mim. E quando minha mãe teve o AVC, ele segurou a onda por um tempo, mas quando viu que a mulher com quem ele vivia não ia mais voltar, foi embora.
Nós moramos nesse lugar até meus doze anos. Minha avó levava umas coisas para nós comermos ou eu ia até a casa dela buscar. Era eu quem cuidava da minha mãe, desde higiene pessoal, tudo. E quantas vezes eu também fugi para jogar bola, brincar. Aí ele dizia: “Você deixou sua mãe!”, e batia em mim. Ele achava que eu tinha a obrigação de estar lá a todo momento, resolver todos os problemas. Eu sempre fui um cara grande em comparação com a população da época. Mas o fato de eu ser grande não significava que eu tivesse que ter tanta responsabilidade.
Às vezes eu chegava em casa meia hora antes dele. Eu conhecia o barulho do ônibus da Zefir, empresa que a Camargo Corrêa usava. Ele entrava na avenida e desacelerava, fazia um barulho muito peculiar de ônibus antigo. Ele chegava por volta das 18 horas, então eu voltava vinte minutos antes, limpava a casa, fazia tudo correndo. Tinha que estar tudo limpo e ela de banho tomado. Se não, o couro comia.
Foi muito sofrimento para minha mãe. Toda a situação da morte, essa tentativa de ter uma pessoa, talvez para ocupar um espaço. E assim ele nos deixou de vez. Antes disso, eu apanhei muito, fui muito destratado.
Como todas as crianças, eu gostava de fazer traquinagens, jogar bola. Hoje, sou professor de educação física. Eu descia a rua, tinha umas quadras, a gente jogava, brincava. Até hoje me lembro o nome dele. Ele batia em mim e na minha mãe. É complicado porque depois de tudo isso comecei a entender a minha mãe. Quando meu pai nos abandonou, minha avó, muito dura, simplesmente jogava na minha cara: “Seu filho de ladrão”. E minha mãe, já mal daquele jeito, não reagia.
Minha mãe faleceu quando eu tinha 18 anos de idade. Depois que comecei entender a história do meu pai, quando eu tinha 34 anos, veio um monte de coisas na minha cabeça, para conseguir elaborar, fazer uma linha do tempo e conseguir desenvolver. Porque até então, como filho de ladrão eu nunca pensei em ir atrás de nada, porque essa era a minha história verdadeira e eu também não queria saber. Como era a história do ladrão? Eu era o filho de um ladrão, ele foi, roubou um avião e só, ponto.
Eu não indagava, simplesmente escutava e ficava quieto. A primeira vez que eu indaguei sobre isso, ainda pequeno, ela já tinha tido o AVC e não conseguia me falar nada. Conseguia falar, mas as ideias não batiam.
Quando eu indaguei minha avó, ela disse: “Ah, tinha uns jornais aí, mas sumiram”. Meu tio, que era seis anos mais velho que eu, começou a falar algumas coisas, mas também com hostilidade. Quando eu tinha 13 anos, meu tio, que para mim era como se fosse meu irmão mais velho, seguiu pelo caminho das drogas, ficava muito louco.
As pessoas que se relacionavam comigo, meus amigos que estão comigo até hoje não tocavam nesse assunto. Nem eu falava da minha vida nesse sentido, de chegar e falar: “Pô, meu pai é ladrão”. Eu não falava do meu pai nem da minha mãe.
Com 11 para 12 anos, saímos da quitinete e nos mudamos numa Kombi para a casa da minha avó. Eu e minha mãe com as sequelas todas dormíamos na sala da pensão e minha avó no quarto dela.
Minha avó, que há muitos anos era mascate, administrava tudo isso. De manhã ela ia trabalhar, mascateava, vendia coisas, panos, de cozinha. No período que vivíamos todos juntos na pensão, isso de filho de ladrão foi batido muito na minha cabeça, pelo meu tio e pela minha avó. Nessa época, meu tio virou usuário de drogas, dependente de álcool. Foi então que eu percebi que o homem que eu achava que era meu ídolo, meu irmão, virou praticamente um monstro. Tive essa decepção com quem eu achei que fosse “o cara”, mas não era nada.
Quando eu tinha 15 anos, minha avó faleceu dentro de casa, depois de uma briga que teve com meu tio. Eu e minha mãe ficamos morando lá na pensão com meu tio. Aí eu conheci quem ele era. Batia em mim e na minha mãe. Ele era usuário de cocaína, que colocava em cima da mesa e chamava os maloqueiros da rua. Ficavam lá, traficantes, tudo dentro da minha casa, cheirando, com minha mãe do lado, sem entender nada. Eu passava, olhava e nunca me ofereceram.
Eu era atleta, jogava bola, tive dois professores de educação física espetaculares, isso me ajudou muito. Participava das atividades de uma instituição que ajuda menores que precisam de apoio. Passei um bom tempo lá. Essa era minha fuga. Quando o bicho estava pegando, eu ia para lá. Meus amigos de infância também me ajudaram muito. Me chamavam para sair, para ir à praia.
Era muito complicado, porque eu era office boy, levantava cedo, ia trabalhar. E tinha vontade de fugir de tudo aquilo, mas minha mãe estava lá. Não se passava uma, duas semanas sem que houvesse a mesma explosão, a mesma briga, coisa, aquela coisa de fugir e voltar.
E a história do meu pai virou um tabu mesmo, eu fechei qualquer tipo de porta que pudesse trazer qualquer história dele à tona. Eu tinha medo de me decepcionar ainda mais. Assim, coloquei na minha cabeça que não era filho de ladrão e que se meu pai realmente tivesse sido um ladrão, não poderia fazer nada. Pensei: “sei que posso fazer minha vida ser diferente e ela vai ser diferente, não sei quando, mas vai, vou correr atrás da minha vida”.
Quem também me ajudou muito foi meu professor de educação física. Eu ia disputar jogos, treinava, competia. Eu jogava bem, no time da região. Aos domingos, tinha jogo às oito da manhã e à noite havia brigas. Parecia que era assim, passou a ser normal. Eu achava que no dia seguinte ia ser melhor.
Quando eu tinha 18 anos, minha mãe morreu. Numa das brigas com meu tio, ela apanhou. Eu intervi, ele saiu de casa e eu fiquei só com ela. Ela passou mal, desmaiou e eu a levei de táxi, sem um tostão, para o hospital. Chegando lá, ela não tinha documento, porque numa briga de anos antes, ele tinha queimado todos os documentos dela. Depois de uns dias hospitalizada, ela morreu.
Eu me culpo um pouco com essa situação, porque eu pensei: “Minha mãe morreu, mas não foi ruim. É um pouco bom até”. E segui minha vida, ainda morando com meu tio. Parei de jogar, fui servir na Aeronáutica, de onde saí como soldado de primeira categoria, em 1987.
Eu não sabia nem o que foi a ditadura militar. Fui tolhido de qualquer informação na minha vida escolar. Na escola, tive OSPB, história, geografia, ciências e meus professores nunca abriram a boca, nunca falaram nada a respeito, até o terceiro ano de ensino médio. Não lembro de nada significativo que um professor tenha falado sobre a ditadura. Veja só o terror e lavagem cerebral em três, quatro, cinco gerações. Eu não tinha a menor ideia de nada. Achava que meu pai era um ladrão comum. Entrei na faculdade de esporte, aquela coisa toda que também tem uma doutrina.
Até eu descobrir a verdadeira história, eu tinha desencanado de saber mais. Mas alguma coisa me dizia que tinha algo a ver com a ditadura. Quando começou a haver uma abertura maior e a ditadura começou a aparecer mais eu falei: “Acho que meu pai tem a ver com essa coisa de ditadura”. Pensei em ir a um jornal pesquisar porque sabia que aqueles jornais antigos tinham sido rasgados.
A maneira por meio da qual eu descobri minha história foi muito linda. Foi através da jornalista Eliane Brum, que soube que meu pai não era ladrão. Em 2001, uma cunhada minha viu o nome do meu pai relacionado a uma história da ditadura. Ela ligou para minha mulher, Leila, que tinha recém operado o joelho. Ela estava em casa e recebeu a ligação da minha cunhada, que morava em São José dos Campos: “Vi uma revista na dentista e tinha uma matéria onde havia uma pessoa com o nome igual ao do Grenaldo, acho que é o pai dele. Veja lá na identidade dele. É Grenaldo Jesus da Silva?”. “Ah, acho que é, ele nunca fala do pai”, minha mulher respondeu. Aí ela foi pesquisar no computador e ligou de novo. “Leila, tem a foto do pai do Naldo, prepara ele”. Era a revista Época, que tinha acabado de ser lançada.
Quando eu cheguei em casa, a minha mulher me disse: “A Época está com umas histórias do seu pai..”. Na hora, a primeira sensação é de medo. “Puxa, e agora, como é que vai ser?” Pensei, “vou ter que encarar”. E comecei a buscar na internet, falei com a minha cunhada, que disse: “A revista não está comigo, está lá na dentista”.
Na internet, achei o Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos, e vi algumas informações concretas que indicavam que a morte do meu pai tinha sido em março de 1972. Não tive certeza de nada, minha cabeça estava fervendo. Eu tentava me segurar, mas não estava entendendo ainda, porque não tive educação, formação sobre o que foi ditadura. Não conseguia entender a dimensão da coisa.
Quando comecei a entender qual era o contexto histórico, tive medo pela minha filha, pela minha mulher. Contei a história para uma aluna minha de personal trainer que era professora de história. Ela sugeriu que fôssemos ao Arquivo do Estado de São Paulo. Fomos eu, ela e minha mulher. Tinha um monte de coisa, e quando abri nos jornais da época, O Globo, Folha de São Paulo, as revistas da época, todos diziam que ele era terrorista. Fiquei muito decepcionado, pensando. “Puxa, o que falaram do meu pai era verdade. Meu pai é um ladrão”. Fiquei muito arrasado. Vi a minha foto no jornal O Globo, a entrevista da minha mãe que estava ao lado. Tem outra parte que fala do enterro do meu pai.
Eu não entendia a manipulação que todos os canais de mídia faziam naquela época. Aí disse: “Quero conversar com essa mulher que fez essa revista”. Pesquisei o nome Eliane Brum e pedi para a minha aluna fazer a intermediação do contato. Ela ligou e a Eliane disse a ela: “Você conhece o Grenaldo? Eu estou procurando por ele”.
Aí marcamos o encontro numa pizzaria. Fomos eu, minha mulher e a minha aluna. Até então eu tive mais medo. Foi a Eliane que me aliviou. Meu peso era muito grande por conta da carga familiar e ainda mais por conta de tudo que vi nos jornais. Eu precisava liberar ou enterrar de vez aquela história. Ela já veio com livros Dos Filhos deste solo, Combate nas trevas, A Ditadura Escancarada, a Revolta dos Marinheiros.
Comentei algo sobre meu medo, minha situação, sentir esse fardo nas minhas costas, do ladrão, de tudo que vi. Ela colocou a mão em mim e disse. “Seu pai é um herói, não tenha vergonha dele, não. Não tenha medo da sua história. Leia isso, depois a gente conversa”.
No final, ela disse: “Tenho uma coisa para te contar. Tem uma pessoa que quer te conhecer. Posso marcar uma reunião para você conhecê-lo?” E na hora pensei: “É o cara que matou meu pai, meu Deus”.
Me preparei emocionalmente para o encontro, que foi na casa da Marisa. A Eliane perguntou se eu me incomodaria que ela levasse um fotógrafo. E eu com isso na cabeça, de que a pessoa que ela levaria seria o cara que tinha matado o meu pai.
No dia do encontro, o homem entrou, me deu um abraço, sentou e começou a contar a história dele: que ele era um controlador de voo, que era sargento da Aeronáutica [José Barazal Alvarez]. Disse que ele atendeu a uma ocorrência do meu pai, e quando percebeu que era um sequestro, começou a conversar com o meu pai e com o piloto. Ele me disse que percebeu que meu pai não era a pessoa que estavam falando. O avião estava indo para Curitiba e a intenção do meu pai era de ir ao Uruguai, onde, à época, não tinha ditadura. José disse que percebeu que havia alguma coisa diferente, que meu pai estava sozinho, numa situação de desespero total.
Ele foi o encarregado de fazer o inquérito, o Inquérito Policial Militar do caso. Ele conta que queria dar baixa, mas que não conseguia, muitos amigos haviam desaparecido e viveu sob medo por muito tempo, porque não estava de acordo com o que estava acontecendo.
Na hora de fazer o inquérito, o corpo do meu pai estava dentro de um carro. Ele mexeu no corpo e viu que havia uma perfuração na cabeça.
Quando ele contava isso, olhou para mim e disse: “Seu pai não se suicidou, seu pai foi morto” e “Seu pai não era um ladrão. Seu pai era um herói”. Nessa hora eu ajoelhei, e comecei a orar: “Deus, muito obrigado, o Senhor está me libertando de uma parede enorme que tinha na minha frente”. Eu estava apoiado nos joelhos e não via mais nada. Ele veio perto de mim, me abraçou e disse: “Tenho mais uma coisa para te falar: Seu pai deixou uma carta para você, pedindo desculpas, dizendo que não queria fazer nada disso, mas que não podia mais estar junto a você e sua mãe”.
Ele disse que a carta existe, que está na Marinha: “Essa carta foi feita para você. Ela ficou nas minhas mãos e foi aí que eu percebi quem era seu pai, que eu podia em algum momento talvez ter sido ele” . Porque ele, como sargento da Aeronáutica, não concordava com o que estava acontecendo. Eu falei: “Zé, você fez a coisa mais maravilhosa do mundo”.
Esse momento foi muito bonito. Quem estava lá quando nos encontramos viu a presença de Deus, todo mundo estava chorando.
Essa frase “Seu pai não foi um ladrão. Seu pai foi um herói” eu tenho na minha cabeça e isso faz a minha vida seguir. A minha vida acelera. Se alguém vier e me mandar abaixar a cabeça, antes eu até podia abaixar. Mas agora, não. Agora eu peito, agora eu vou para cima. Quando meus filhos falam: “Eu não consigo…”, eu digo: “Não fale que não consegue.
Essa palavra não pode existir. Você consegue, você sabe, você vai…Você é neta do Grenaldo!”. Minha vida mudou depois disso. Hoje sou um Grenaldo muito diferente. Sou o Grenaldo filho do herói.
Isso e a tortura da minha mãe foram as coisas que mais marcaram a minha vida. Acho que não existe tortura pior do que a que ela sofreu depois da morte do meu pai: O AVC, o alcoolismo, morando muito mal, apanhando do meu padastro, depois do meu tio. Ela foi a mais torturada. E eu de tabela.
Então, o Zé foi o meu libertador e a Eliane Brum um anjo que Deus colocou na minha vida. A partir daí comecei uma outra luta, de pesquisa, correndo atrás, lendo.. E fomos, a
Eliane e eu, atrás do Inquérito Policial Militar. Nós encontramos um pedaço da carta, que estava rasgada.
Eu tentei resgatar a história do meu pai através das ações que eu movi. A própria indenização do governo federal é um reconhecimento legal disso. O sargento [Augusto Carlos] Cassaniga foi quem executou meu pai, mas nunca fui atrás disso.
Depois disso tudo, no começo de 2003, conheci minha avó paterna. A Eliane me disse: “Mandei a revista para a casa da sua avó”, e eu “onde ela está?”. “No Maranhão”, disse ela. Na chegada a São Luís, descendo do avião, já percebi que era a minha avó. Ela me abraçou, começou a chorar. Foi muito especial. Nos dias que fiquei lá, ela ficava me abraçando, me tocando, pegando no meu cabelo. Parecia que estava vendo meu pai.
Aí descobri que, em 1971, quando meu pai saiu de casa, foi para o Rio de Janeiro e de lá para o Maranhão. Chegando lá, disse à minha avó: “Mãe, tenho um filho. O nome dele é Grenaldo e a foto dele é essa”. E atrás da foto está escrito assim: “Oi, eu sou o Naldinho, tenho três anos. Quando eu crescer, irei até o Maranhão”. Ou seja, como eles sabem que eu era filho do meu pai? Como eles têm certeza disso? Porque é a mesma foto que eu tenho, que foi publicada na reportagem da revista Época. Minha avó viu a reportagem que a Eliane mandou onde tinha a mesma foto.
Era o filho mais velho dentre 12 irmãos. Ingressou na Escola de Aprendizes de Marinheiros do Ceará em 1960. Em 30 de setembro de 1964, quando era marinheiro de 2ª classe, foi expulso em função de sua militância política e acabou condenado a cinco anos e dois meses de prisão. Fugido, chegou a Guarulhos (SP), onde trabalhou por cinco anos. Lá se casou com Mônica Edmunda Messut e tiveram um filho. Trabalhou de 1965 a 1970 como porteiro e vigilante na empresa Camargo Corrêa. Em 1971 começou a receber cartas que o deixavam nervoso, provavelmente avisando que a repressão havia conseguido descobrir seu paradeiro. Grenaldo saiu de casa dizendo que buscaria a família para viverem uma vida melhor. A mulher só voltou a ter notícias dele quando foi divulgada sua morte por ocasião do sequestro de um avião no Aeroporto de Congonhas, na cidade de São Paulo.
Foi assassinado em 30 de maio de 1972, neste Aeroporto, quando tentava sequestrar um avião da Varig, que voava para Curitiba e acabou retornando para São Paulo. Após negociar a saída de todos os passageiros e a maior parte dos tripulantes, a aeronave foi invadida e Grenaldo, mesmo imobilizado, recebeu um tiro na cabeça dado por agentes do DOI-CODI/SP. Sua execução foi contada em detalhes pelos policiais aos presos políticos do DOI, quando voltaram da operação aos gritos de alegria.
A versão policial foi de suicídio. De acordo com os registros do Cemitério D. Bosco, em Perus, seus restos mortais encontram-se entre as 1.049 ossadas da vala clandestina criada ali em 1976 e descoberta apenas em 1990.
Essas informações são baseadas em uma matéria de Eliane Brum na revista Época de novembro de 2003.