Meu nome é Luis Carlos Max. Sou um dos quatro netos da Tia Tercina [Dias de Oliveira]. Somos eu, minha irmã Zuleide, tem o Ernesto, e meu irmão de criação, que é o mais velho, o Samuel. Nós fomos criados com minha avó desde cedo. Depois que minha mãe adoeceu, nós fomos viver com a nossa avó.
Na época da greve de Osasco eu tinha 5 anos. Logo em seguida, minha avó teve que entrar na clandestinidade, junto com meu tio, que era sindicalista e foi cassado. Nessa época, a vó era do Partido Comunista – que foi cassado.
Ficamos indo de um aparelho para outro, fugindo da polícia, até que fomos para o Vale do Ribeira, no final de 1969. O Vale do Ribeira era um centro de treinamento de guerrilha, para preparar o pessoal para a luta armada. Quem chefiava era o Carlos Lamarca. Nós não morávamos na cidade nem no povoado, e sim no vale, dentro do mato. Ali não podia entrar ninguém, era escondido.
Lá, vivíamos minha avó e nós três – eu, Zuleide e o Samuel, irmão adotivo que minha avó criou desde pequeno. O Ernesto ainda não estava conosco. Estava em outro aparelho com o pai e a mãe. Só encontramos com ele quando fomos presos e levados ao Juizado de Menores. E tinha o Nicolas, que era o codinome do José Lavechia. Éramos uma família de camponeses de fachada. Ficamos lá mais ou menos três meses. Nessa época, eu estava com 6 anos, a Zuleide com 4 e o Samuel com 9.
Lá, nós conhecemos o Carlos Lamarca, coisa de que tenho muito orgulho. Ele morava lá no meio do mato mesmo. A morte dele foi uma perda muito dolorosa. Da mesma forma que ele era rígido por ser um comandante de uma organização, era doce também. Ele nos deu uma grande formação. Ele nos ensinava muita coisa e o tenho como um pessoa muito querida.
Quando o Vale do Ribeira caiu e a polícia ficou sabendo da existência do local, a situação já não podia mais se sustentar, então tivemos que sair de lá e fomos para uma casa em Peruíbe. Desde criança nós tínhamos noção do perigo, éramos preparados para isso, vivíamos nessa tensão. Não éramos crianças comuns que podiam brincar na rua.
A gente ficava dentro de um aparelho. Era complicado. Não podia fazer barulho porque o vizinho de baixo sabia que tinha crianças. Volta e meia tínhamos que sair de uma casa para outra. Nós íamos dentro do carro sem poder olhar para a rua, tínhamos que fechar os olhos, abaixar a cabeça. Isso porque não podíamos reconhecer o lugar para onde estávamos indo.
Aí fomos para Peruíbe. E foi lá que fomos presos. A tensão maior foi quando de madrugada a polícia chegou em casa, foi em março ou abril de 1970. Estávamos eu, vó, Samuel e Zuleide. O Lavechia já não estava mais lá. Ali sim percebemos que a coisa era pesada mesmo. Vimos a brutalidade daquela invasão. A minha avó ficou muito tranquila. Ela sempre foi muito bem preparada para isso e sempre nos preparou. Era de madrugada quando nos acordou: “Olha, não está acontecendo nada, recolham as coisas, arrumem as roupas, nós vamos ter que sair”. E nós tranquilamente fizemos isso. Mas sentimos a invasão, a polícia chegando, entrando e revirando as nossas coisas todas. Foi pesado.
Depois disso, os militares e a polícia invadiram o Vale do Ribeira, teve tiroteios, bombardeios. Ficou uma linha de fogo mesmo. Se estivéssemos ali, não sei o que iria acontecer.
Mas o Lamarca nos tirou dali. Quando os militares estouraram a casa, foi muito sigiloso, não era todo mundo que sabia. A casa serviu de armadilha para outros companheiros que chegassem ali sem saber que havia sido invadida. Aí chegavam lá e já eram presos.
Fomos levados para São Paulo, para o DOPS. Até hoje, quando me lembro, é doloroso. Fomos colocados em uma sala e sabíamos o que estava acontecendo. A situação estava tensa. Hoje eu vejo meus filhos com 6, 7 anos… Eu não vejo neles o preparo psicológico que tínhamos. Aí falamos: “Mas com 6 anos você fazia isso, fazia aquilo, você sabia o que estava acontecendo?” A gente vivia aquilo, tinha que saber. De uma forma ou de outra, os nossos companheiros também não deixavam que as dores maiores chegassem até nós.
Minha avó nos orientava: “Olha, vocês não podem falar alto”, “Agora seu nome será X”. Eu não podia mais chamar minha irmã de Zuleide, tinha que ser Zulmara. E ela não podia atender pelo nome de Zuleide. E eu passei a ser chamado de João Carlos. Essa era a preparação que tínhamos. Acho que todas as crianças que estavam com seus parentes na clandestinidade também receberam esse preparo. A minha avó sempre passou segurança para nós, sempre foi dura, carinhosa na hora que era para dar carinho e dura quando necessário. Pela vida que levávamos, a minha avó não podia ser mole conosco. Aliás, ninguém podia ser mole naquela época, então a minha avó sempre falou olhando nos nossos olhos e sempre falou sério quando era necessário. Ela era nossa referência de seriedade, de tudo. A melhor referência que tenho é a da minha avó, que no caso todo mundo chama de Tia.
No DOPS, foi uma crueldade quando nos colocaram em uma sala e nos separaram da vó. Eu, que sempre fui o mais rebelde dos irmãos, me agarrei muito na minha vó e comecei a chorar. Aí dois policiais pegaram a minha avó pelo braço e outro me desgarrou dela. Ela me disse: “Carlinhos, fique tranquilo que não vai acontecer nada, tá? Depois a gente se vê”. Mas eu fiquei muito mal, porque a partir dali eu não a vi mais. Ficamos horas e horas naquela sala. E depois fomos levados para o Juizado de Menores. Eu fiquei muito mal, mas muito mal. Eu não queria me alimentar, não queria brincar com as outras crianças que estavam lá. Nunca tinha me separado dela. Lembro disso até hoje.
Eu e a Zuleide, como éramos menores, fomos levados ao Juizado. Não fomos maltratados lá. Mas o Samuel, como já tinha mais de 9 anos, foi levado para uma instituição de crianças infratoras, onde foi maltratado. Mas antes de nos levarem para o Juizado de Menores, nos levaram para uma casa muito grande. Não sei qual era a intenção de fazer isso, se era para depois alguém nos adotar. Ficamos ali uns três ou quatro dias. Era uma casa comum, muito chique, com móveis caros, de madeira, com tapetes. Não vimos ninguém além de uma senhora que cuidava de nós. Ela não nos maltratava, mas também não nos dava carinho nem nada.
Eu, por ser mais rebelde, saía do quarto correndo e ela dizia: “Não, não pode sair do quarto”. Ela levava comida para nós. Só saíamos de lá para ir ao banheiro. E dali nos levaram para o Juizado de Menores, onde ficamos uns dois meses mais ou menos.
Lá, praticamente só havia crianças, tinha até bebês. Então ficávamos brincando o dia todo. A única coisa com a qual me senti muito mal foi que tiraram os nossas pertences, cortaram o cabelo da Zuleide e tiraram o brinquinho de ouro dela, uma argolinha que minha avó havia dado a ela.
Um belo dia chegaram e disseram: “Olha, vocês estão indo embora”. Foi uma alegria. Nos levaram não sei para onde, não sei se foi de novo para o DOPS, mas reencontramos a nossa avó. Todo esse tempo ficamos sem saber nada dela. Quando nos reencontramos, a alegria foi imensa. E junto com ela estavam os companheiros, inclusive o Nicolas.
Nós fomos fichados, tiraram uma série de fotografias, tiraram as digitais. Depois ficamos sabendo que estávamos saindo do Brasil. A polícia não estava querendo liberar as crianças e minha avó disse: “Sem as crianças eu não vou”. Nós não tivemos passaporte. Quando você é banido, não tem passaporte, não tem documentação nenhuma. É expulso mesmo. Nós, por estarmos junto com nossos companheiros, fomos fichados como terroristas. Não somos nós que estamos dizendo isso. São os documentos do DOPS que diziam que éramos terroristas.
Tiraram nossas digitais para caso retornássemos ao Brasil, já saberiam. Se retornássemos para o Brasil é porque iríamos fazer guerrilha, como teve companheiros que voltaram e foram assassinados. Então fomos banidos mesmo, exilados.
Parece que essa noite nós dormimos no DOPS ou no aeroporto. Aí fomos para o Rio de Janeiro, onde chegamos à noite. Dormimos no saguão do aeroporto, em uma sala onde estavam todos os companheiros, os quarenta. Era uma sala imensa, com um montão de colchões no chão e dormimos ali. No dia seguinte de manhã, embarcamos para a Argélia. Antes de sairmos, tiraram aquela foto que todo mundo já conhece. Fomos num avião comum, da Varig, até hoje me lembro.
Na Argélia, também havia um problema político, então não podíamos estar muito expostos. Depois o Fidel Castro ficou sabendo da situação e disse: “Quero que essas crianças venham para Cuba. Eu me responsabilizo por elas, vou dar educação e saúde para elas”. Foi o próprio Fidel que nos fez esse convite.
Aí pegamos outro avião e fomos para Cuba, onde fomos acolhidos pelo governo e pelo povo cubano. Praticamente toda a formação cultural e política que temos é cubana. Quando cheguei lá, em agosto de 1970, já tinha 7 anos.
Minha mãe não foi para Cuba. Me separei dela quando tinha 4 anos de idade. E como tínhamos entrado na clandestinidade, não soube mais dela. Eu vim a reencontrá-la, praticamente conhecê-la, quando eu tinha 42 anos de idade. Por conta desses problemas todos, não consegui conviver com ela. E o triste da história são as sequelas que ficam.
Quando voltamos para o Brasil, não foi de uma forma segura. Havia um medo muito grande. Sempre tivemos aquele temor da farda verde dos militares. Tínhamos temor até de guarda de banco, de arma. Era uma coisa tenebrosa, eu ficava com medo de ver polícia, de ver militar, achava que estava sendo vigiado. A minha irmã tremia quando via a polícia. Treme até hoje.
Eu voltei ao Brasil um pouco antes da Zuleide. Cheguei em 1982, tinha 18 para 19 anos. Nós tínhamos um problema de identidade muito grande. Fui saber meu nome verdadeiro quando o meu tio Neto voltou para o Brasil para preparar o campo para nosso retorno. Não tínhamos casa aqui, não tínhamos documento nenhum. Então enviaram para Cuba a nossa certidão de nascimento. Aí que eu fui ver realmente meu nome verdadeiro, porque até então não sabia.
Recebi a certidão de nascimento em 1980. Foi quando preparamos toda a documentação para retornar ao Brasil. Até então, eu tinha uma confusão de nomes. Eu não sabia mais qual era meu nome, se era João Carlos, se era João Carlos Dias, se era Luis Carlos Dias.
Em Cuba, nossa convivência com as crianças cubanas era normal, porque estudávamos praticamente numa escola interna. Tínhamos uma ligação também muito grande com as crianças brasileiras que moravam lá. Eram os filhos da Damaris Lucena, do Lamarca, que eram o Cesar e a Claudinha, os filhos do Darcy [Rodrigues] também estavam lá. A nossa casa era praticamente um território brasileiro, pois todos os brasileiros exilados em Cuba que moravam em Havana se reuniam na nossa casa, na casa da minha avó. No 7 de Setembro e no Carnaval fazíamos festas. Era um território onde não se podia falar espanhol, só português, para não perdermos o nosso idioma.
Tínhamos aulas de Português e História do Brasil, porque nossos pais sabiam que tínhamos que voltar para o Brasil e não perder essa identidade, eles se preocupavam com isso. A influência cubana para nós foi muito grande, fomos muito novos para Cuba. Lá, havia preparação de guerrilha. Então, nós, os maiorzinhos, já estávamos sendo preparados também justamente para voltar para o Brasil e montar a nossa guerrilha. Tivemos aulas de guerrilha em Cuba, com armas, em locais estratégicos.
Nós fomos muito bem aceitos, mas não éramos cubanos, éramos brasileiros e estávamos com muita vontade de voltar para o Brasil e reencontrar as nossas identidades. Até hoje eu não achei minha identidade.
Moro no Rio de Janeiro e hoje vim especialmente para São Paulo. Meu filho mais velho, de 25 anos, me perguntou: “Pai, o que você vai fazer em São Paulo?” Eu respondi: “Meu filho, eu tenho que resgatar uma coisa do passado para todas aquelas pessoas que não conheceram o que aconteceu no Brasil, na época que todo mundo estava cego com futebol. Na década de 1970 teve a Copa do Mundo, nas ruas estava se comemorando o jogo do futebol. Nem sei se o Brasil foi campeão na época, mas a maioria dos brasileiros também não sabia que nos porões da ditadura pessoas eram assassinadas, até crianças foram torturadas na época”. Foi isso que falei para os meus filhos.
Porque nos livros, nas escolas, as crianças não sabem que isso aconteceu. Eu e minha irmã, assim como muitas outras crianças, somos a prova viva do que realmente aconteceu.
Fisicamente as coisas vão se apagando, como o companheiro Zé Ibrahin que morreu esta semana [José Ibrahin, líder sindical, faleceu em 2 de maio de 2013]. Mas temos que ir levando as memórias para o futuro. Da mesma forma que se guardou as histórias da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto, também queremos falar sobre isso todos os dias para que isso nunca mais aconteça.
Juntamente com os netos, viveu no sítio em que Lamarca realizava treinamentos militares, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Uma de suas missões era fazer a casa principal parecer levar uma vida “normal”. A outra era costurar os uniformes usados nos treinamentos.
Tercina foi presa em Jacupiranga, interior do estado, com três das quatro crianças. Em 1979, foi uma dos 40 militantes trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Hollenben, sequestrados em junho de 1970.
Banida, Tercina seguiu da Argélia para Cuba com três netos e um dos filhos de criação: Samuel Dias de Oliveira, Luis Carlos Max do Nascimento, Zuleide Aparecida do Nascimento e Ernesto Carlos do Nascimento. Retorna ao Brasil em 1986 com Zuleide, Luis Carlos e Ernesto. Samuel voltou em 1982.
Antes de ajudar a criar a VPR, Manoel era líder sindical filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entrou na clandestinidade em 1968, após ter a prisão decretada. Incentivou a mãe, Tercina Dias de Oliveira, a também contribuir para a VPR. Sua tarefa era organizar a guerrilha em São Paulo (SP). Foi preso em maio de 1970, quando cobria um ponto para passar informações a companheiros. No mesmo dia, mais tarde, a companheira Jovelina e o filho Ernesto foram presos na casa da família no bairro de Vila Formosa.
Jovelina trabalhava na prefeitura de Osasco (SP) e foi demitida durante a licença maternidade por causa da militância do marido. Depois de passar pela Operação Bandeirantes (OBAN) e pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi com o filho para a ala feminina do Presídio Tiradentes.
Em fevereiro de 1971, Manoel e Jovelina foram dois dos 70 presos políticos que tiveram a liberdade trocada pela do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, sequestrado por militantes de resistência à ditadura. Exilaram-se no Chile. Na ocasião, contaram o que tinha acontecido com eles para os cineastas estadunidenses Haskell Wexler e Saul Landau, cujo documentário Brasil, um relato da tortura tornou-se uma das primeiras denúncias internacionais dos abusos cometidos pelo regime.
“Antes de eu descer do pau de arara, minha companheira chegou com meu filho. Este filho assistiu a parte da tortura. Em seguida, puseram minha companheira no pau de arara, tomando choque em todas as partes do corpo, inclusive nas partes íntimas. Na minha presença. Só para eu falar alguma coisa”, relatou Manoel. Chorando muito, Jovelina testemunhou: “Ele [o filho Ernesto] dizia: ‘Não pode bater no papai. Não pode’. Para mim foi muito duro. Batiam muito em mim, mas não me perguntavam nada porque sabiam que eu não tinha participação nenhuma”.
Em 15 de agosto de 1971, o casal chegou a Cuba, onde reencontraram Ernesto. Jovelina, então, foi à Coreia do Norte fazer treinamento de técnicas de guerrilha. Em 1972, ela e Manoel voltam ao Chile para se prepararem a retomada das atividades guerrilheiras no Brasil.
Em setembro de 1973, com o golpe contra Salvador Allende, os dois foram presos no Estádio Nacional. O casal conseguiu fugir e se abrigar num refúgio da ONU, de onde seguiram para Cuba novamente.
Lá, Jovelina fez curso de enfermagem. Ela e o marido voltaram ao Brasil em 1985. Ernesto retorna com Tercina em 1986.