Convidada pela assessoria da Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva” a escrever um testemunho de minha experiência enquanto filha de ex-presos políticos da ditadura militar brasileira, me peguei mais uma vez pensando: mas o quê eu vou falar?
Acho que muitos filhos se fazem essa mesma pergunta, um sentimento de “não faz sentido porque eu não vivi nada em comparação aos meus pais e seus companheiros” que nos deixa habitualmente silenciosos.
Além disso, ainda me vem o questionamento de “por que eu e não outros filhos que sofreram mais que eu?”. Nesse momento, passo a me lembrar da lista de amigos queridos que, como eu, têm pais que sofreram muitíssimo com a ditadura, mas que não têm o mesmo reconhecimento ou estatuto de anistiada que outros filhos e eu temos.
Pra mim, ser uma anistiada política, filha de pessoas que lutaram contra os absurdos da ditaduta militar brasileira é, e sempre foi, razão de grande orgulho. Meus pais e seus amigos são o que toda criança sonha: são heróis de verdade que ultrapassaram seus limites e suas próprias mazelas pelo bem comum.
No entanto, com esse status de “filha de heróis”, vem também o outro status, o de “filha de terroristas”. Com esse, vem o silêncio, o medo de saberem quem você é e o que você pensa. Esse medo me acompanha até hoje.
Sempre que as pessoas comentam sobre a própria infância, você pula um trecho. Sempre que você ouve alguém chamando a ditadura militar de revolução, você segura o grito. Sempre que você ouve alguém falando sobre terrorismo, você tenta não cair num debate emocionado. Sempre que você busca um emprego que exige suas referências, você torce pra que não descubram “toda a verdade”. Um visto, morar fora do país por um tempo? Você sabe que ele pode ser negado e que eles terão justificativa, afinal, seus pais sequestraram um avião.
Quer algo mais top top na lista de terrorismo internacional depois de 2001?
Sempre que descobrem que sou filha da Jessie Jane e do Colombo, imediatamente me cercam de perguntas e vejo os olhares curiosos esperando um depoimento cheio de profundidade. Mas eu já conheço esse olhar e entro num sistema de respostas automáticas e vagas. No fim, vejo os olhares decepcionados e sinto que consegui alcançar o que desejava : o final da sessão “quem é você”. Como se ao saberem que eu “nasci na cadeia”, como alguns gostam de comentar, definisse meu caráter, o meu eu.
Agora, convidada a escrever esse testemunho, fico refletindo sobre o que eu não falo a esses olhares curiosos, sobre a constante insegurança, sobre as tristezas, sobre as dificuldades. Penso em como meus pais lutaram pra me dar uma vida estável e buscaram que eu fosse apenas “uma menina normal”. Mas quem pode ser normal quando a polícia entra na sua casa pra espancar seu pai? Ou quando vive a invasão militar de Volta Redonda (já em 1989) e seus pais vêm até você para se despedirem, com o sentimento de que serão assassinados? Ou quando sua família está separada em várias partes do mundo porque foi obrigada a se exilar? Ou quando seu avô é obrigado a viver escondido para evitar ser deportado?
Ou quando seus amiguinhos da escola são proibidos de falar com você porque seus pais acham que você é representante das “forças do mal”?
Mas meu testemunho nunca será tão interessante ou importante quanto o daqueles que viveram experiência mais duras e sérias que eu. Meu testemunho não pode ter o mesmo peso do que o de uma criança que viu seus pais serem torturados ou assassinados. Daí volta à pergunta : o que eu tenho a acrescentar?
Acho que o que eu poderia acrescentar é o testemunho de meus amigos desconhecidos, mas que têm muito mais histórias que eu sobre esse período. Aqueles que iam todas as semanas visitar pais e tios nos presídios e ficavam confusos tentando entender como aqueles heróis poderiam ser os bandidos. Ou a história daqueles que nasceram no Chile ou na Argentina, por exemplo, e começaram suas vidas em fuga mesmo sem saber – alguns deles até hoje não têm documentação brasileira regularizada. Porém, não cabe a mim falar por eles.
Muitos me perguntam como foi ser um bebê na prisão. Como poderia responder se eu era um bebê? Mas quando vejo minhas fotos e ouço os depoimentos de minha mãe, vejo que fui quase um bebê como outro qualquer, repleto de amor e, talvez, mais carinho do que outros bebês. Eu tenho o privilégio de ser filha de uma geração de sonhadores, de ser protegida e amada incondicionalmente por pessoas que sequer conheço mas que, igualmente, amo.
Minha mãe, às vezes, conta de quando descobriu que estava grávida, da felicidade que sentiu. E, logo depois, da imensa bronca que recebeu de uma companheira: “Você está louca? Como pode ter um filho nessa situação?”.
Talvez ela estivesse louca, talvez fosse um delírio de uma mulher que tinha todo o futuro traçado atrás de grades intransponíveis. E é por causa de loucos assim que o mundo é melhor, mais belo, mais cheio de esperança, de alegria. São os loucos que são capazes de colocar em xeque todas as verdades, de subvertê-las. Ainda bem que sou filha de uma subversiva!
As histórias de meu nascimento me foram chegando aos poucos. Não, não nasci num presídio, nasci em um ótimo hospital no Flamengo. Não, minha mãe não estava sozinha, ela teve o apoio de outros loucos que se expuseram ao serem presos, mas que estavam ali tentando nos proteger. Pra mim, esses heróis são, por extensão, meus pais e mães, meus parentes mais íntimos.
A imagem dos homens que foram no quarto do hospital ameaçar a minha vida, a vida de minha mãe, me passa pela mente várias vezes. Eu não estava presente, mas posso ver seus rostos, sentir seu suor, ouvir suas vozes tenebrosas. Sempre pude, sempre poderei.
Quanto à minha experiência no presídio, obviamente não tenho memória. Mas todas as vezes que eu vejo a lua cheia, lembro dos meus pais dizendo que essa é a “Lua de Letinha”, porque lhes mostrava no dia em que foram soltos, como se eu estivesse advinhando que eles não tiveram oportunidade de ver o mundo fora do presídio. Porém, apesar da falta de memória específica, eu me lembro do sentimento.
Esse sentimento me acompanha até hoje. Nos momentos importantes da vida ele me retorna, como se um clic interno me acendesse e informasse “isso é importante, seja forte, siga em frente, faça o que é preciso, ouça o entorno, observe, fale menos, se proteja e, sobretudo, proteja os seus”. É um sentimento, uma coisa não mesurável, uma urgência.
Deparei-me com esse sentimento num belo dia de sol. Eu brincava alienada a tudo, na rua Cuba, em Vila Americana, Volta Redonda. Era o ano de 1989. Comecei a ouvir minha avó me chamar, eu precisava voltar para casa imediatamente. Quando cheguei, o caos estava estabelecido. Uma mochila havia sido preparada, papéis eram queimados no fundo da casa, meu avô dizia que tínhamos que ir, “dá um beijo nos seus pais”. Esses, correndo de um canto para o outro, vieram e disseram que era pra eu ir, que o Exército havia invadido a cidade e eles estavam indo para o Sindicato dos Metalúrgicos e me encontrariam mais tarde.
Já era noite quando pegamos um táxi, meus avós e eu, em direção à casa de uma companheira de meus pais, a Marlene. No táxi, o rádio falava como a cidade estaria sendo protegida contra os baderneiros… O taxista começou a falar : “Espero que o Exército pegue esse bando de comunista, tem tudo que ir pra cadeia, vocês não acham?” Silêncio.
Quando chegamos na casa da Marlene, todos de frente para a televisão, tentando ter notícias. O Jornal Nacional dizia como a ação militar em Volta Redonda era importante. Eu via o olhar de pavor nos olhos da minha avó, sentia suas vibrações. Fui ao banheiro chorar pra que não soubessem que entendia que depois desse dia eu poderia não mais encontrar meus pais.
Eles finalmente apareceram. Vieram até a mim e me abraçaram. Explicaram que tentavam ajudar os operários em greve na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Eu entendia e concordava, nada precisava ser explicado. Demos um abraço eterno. Quando foram embora, ficou aquele sentimento de urgência, de manter tudo em ordem, nada poderia nos atingir, nada poderia nos separar, nem mesmo a morte, muito menos a prisão.
Nessa madrugada, três operários foram assassinados, mulheres grávidas foram espancadas por soldados em ônibus, a praça pública foi metralhada, entre outras barbaridades cometidas após a ditadura ter oficialmente terminado. Nessa madrugada eu pude entender um pouquinho todo o terror que meus pais e seus companheiros sentiram por tantos anos, primeiro na clandestinidade, depois nas torturas e, por fim, nas prisões. Uma gota em um oceano de lutas, dores, decepções. Uma gota num oceano de esperança em um mundo melhor, mais igualitário e mais justo.
Uma gota.
Imagino agora a vida dos outros filhos, nascidos antes de mim, que viveram na clandestinidade, que viram seus pais sendo presos, que acompanharam as longas e inesquecíveis sessões de tortura. Só posso imaginar a força dessas pessoas, só posso respeitar suas cicatrizes.
Em 1969, Jessie entrou para Ação Libertadora Nacional (ALN). Na organização, conheceu Colombo Vieira de Souza. O casal viveu na clandestinidade até 1º de julho de 1970, quando foram presos durante a ação de sequestro do avião Caravelle PP-PDX da Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro, realizada junto com os irmãos Heraldo e Fernando Palha Freire.Estava com 21 anos quando foi presa e barbaramente torturada no DOI-Codi, do Rio de Janeiro. Jessie e Colombo foram condenados a dezoito anos de prisão e ficaram presos por nove. Ela, na penitenciária de Bangu (Presídio Talavera Bruce) e ele no Instituto Penal Cândido Mendes (Presídio da Ilha Grande). Ficaram cinco anos sem se ver e a única forma de comunicação eram cartas. Em 1972, conseguiram autorização judicial para se casar. Em 1975, conquistaram o direito à visita íntima. Assim, Jessie engravidou na prisão e, em setembro de 1976, nasceu Leta, filha do casal, na Clínica São Sebastião (Rio de Janeiro) sob forte vigilância policial. A bebê permaneceu alguns meses ao lado de Jessie na prisão e depois foi entregue à sua sogra. Jessie e Colombo foram soltos em 1979 e estão casados até hoje.
Jessie tem quatro irmãos: Sandra Maria Alves de Sousa, presa duas vezes em São Paulo e torturada na Operação Bandeirantes, em 1970; Vera Vani
Alves de Pinho, voltou clandestina do Chile e assim viveu por nove anos no Brasil; José Alves Neto-Juca, preso junto o pai no Chile, ficaram por três meses no Estádio Nacional; Ivan de Sousa Alves, casado com uma ex-presa no Uruguai e ainda vive na Suécia. Com o banimento do pai, as prisões de Jessie, Sandra e de sua mãe, todos entraram na clandestinidade e quando puderam foram para o Chile. No golpe, seu pai e Juca foram presos logo nos primeiros dias. Sua mãe se refugiou e os três se reencontraram a bordo do avião que os levou para a Suécia. Tudo graças à intervenção do embaixador sueco que salvou centenas de pessoas. Sandra e Ivan se refugiaram na embaixada da Argentina e depois foram para Portugal e, em seguida, Suécia.
Seus pais e Juca foram inicialmente para a Suécia, em seguida para Cuba e depois Suécia, onde todos se reencontraram (menos Jessie que estava presa e Vera que estava clandestina no Brasil). Seus pais e Juca retornaram ao Brasil em 1980 e Sandra retornou há cerca de 5 anos. Mas Ivan ficou na Suécia.
Hoje, Jessie é professora associada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em História pela Universidade
Federal Fluminense (UFF), tem mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado em História Social pela UFRJ.