Quero agradecer a todos os que me encorajaram a escrever minha história, ou melhor, nossa história. Muito do que contarei aqui talvez não fosse necessário para uma narrativa formal do que se passou. Só os documentos públicos seriam suficientes para mostrar as atrocidades que nós passamos, provando que até as crianças perderam sua cidadania durante a ditadura militar. Mas não foi só isso que perdemos e me estendo um pouco mais para que fiquem registrados os sentimentos, os desdobramentos, as consequências e os pontos de vista das crianças que passaram por situações adversas, inclusive até os dias de hoje. E assim possamos lutar por um futuro onde possamos dizer: “Los niños nacen para ser felices” – José Martí.
Meu pai iniciou sua militância no ano de 1959 com apenas 16 anos, sempre incentivado pela minha avó Tercina Dias de Oliveira. Atuou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi eleito na chapa do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco em 1962, onde militou até ser cassado pela ditadura em 1964. Continuou sua luta clandestina organizando os trabalhadores através das comissões de fábrica, o que lhe rendeu oito passagens pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) até 1967, quando elegeram José Ibrahin presidente do sindicato. Meu pai não compôs a chapa dessa vez para que não fosse impugnada, já que toda chapa precisava ser aprovada previamente pelo DOPS, mas fez questão de comparecer ao DOPS junto com Ibrahin e outros companheiros para negar que era comunista e solicitar a aprovação da chapa.
No 1º de maio de 1968, conduziu os trabalhadores metalúrgicos de Osasco junto com Zequinha Barreto, outro grande companheiro de luta, até a Praça da Sé, onde houve o primeiro confronto com as forças de repressão do Estado, que estavam disfarçadas de civis. Tal ato foi o ensaio para a grande greve dos metalúrgicos de Osasco, ocorrida em junho de 1968, em que os trabalhadores foram duramente reprimidos pelos militares, inclusive com tiros. Com sua prisão decretada, teve que ir para a clandestinidade, passando a atuar na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), junto com o Capitão Carlos Lamarca, minha avó Tercina Dias de Oliveira, minha mãe Jovelina Tonello Mantovani do Nascimento e outros companheiros. Nessa época vivi esse ambiente, mas era ainda uma criança muito pequena.
No dia 18 de maio de 1970 fui preso em São Paulo, com minha mãe. Eu tinha apenas 2 anos de idade. Fomos levados para a Oban, onde meu pai foi torturado na minha frente. Passei ainda pelos cárceres do DOPS, Presídio Tiradentes e DOI-CODI/SP. Depois de um tempo, me separaram da minha mãe e fui para um local incerto, talvez para o Juizado de Menores1. Minha mãe solicitou aos militares que me entregassem para minha madrinha, tia Bê, mas nunca o fizeram ou entraram em contato com essa tia. Fui mantido lá como qualquer outro preso político e me levaram diversas vezes às seções de tortura para ver meu pai preso no pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam me torturar com uma corda, na sala ao lado, separados apenas por um biombo.
Eu tinha 2 anos e 3 meses e fui tratado como “Elemento Menor Subversivo”, terrorista e fui banido do país por decreto presidencial, conforme consta nos documentos no arquivo do Estado de São Paulo. Fiquei preso até 16 de junho de 1970, quando fomos libertados no resgate feito pelo Capitão Carlos Lamarca na troca de 442 presos políticos pelo embaixador Alemão Ehrenfried von Holleben.
Fui banido juntamente com minha avó Tercina Dias de Oliveira, mais conhecida como “A Tia”, que sabendo estar eu preso com meus pais, informada pelos companheiros de presídio e confirmado pelo seu interrogador, disse: “Entrei com três netos, mas só saio com quatro”. Meus pais continuaram presos.
Além de mim, também foram banidos meus primos-irmãos: Samuel Dias de Oliveira, filho adotivo da minha avó (9 anos de idade quando da prisão); Luis Carlos Max do Nascimento, filho do primeiro filho adotivo de minha avó (6 anos de idade quando da prisão); e Zuleide Aparecida do Nascimento (4 anos de idade quando da prisão), irmã de sangue do Luis Carlos. Como esclarece minha avó Tercina em seu depoimento à Delegacia Especializada de Ordem Social, quando da sua prisão. Assim, minha avó só aceitou ser banida se pudesse levar consigo as quatro crianças, as três que tinham sido presas com ela e eu. Minha avó sempre contou que um sargento ou capitão, que a interrogou e não teve coragem de torturá-la fisicamente3, ajudou-a e insistiu muito para que conseguisse me levar.
O Decreto presidencial de 15 de junho de 1970 lista os opositores políticos presos que seriam e foram trocados pelo Embaixador da Alemanha, sequestrado pela VPR e aliados.
Chegamos à Argélia em 16 de junho 1970, e em 27 de julho de 1970 desembarcávamos em Havana, Cuba, onde vivi até 7 de janeiro de 1986. Lá, passei os anos mais importantes da vida de um cidadão para sua educação e formação do caráter.
Os primeiros anos que tenho lembranças em minha vida (após um ano em Havana, entre 3 a 4 anos de idade) foram marcados por pavor de policiais de farda, de grupos com mais de quatro pessoas e quando meus pais chegavam do exterior4. Nessas situações eu entrava em pânico, chorava, me escondia debaixo da cama, dentro de armário, mordia quem tentava me pegar, urinava nas calças.
Com 4 para 5 anos de idade, toda vez que via um policial de moto, gritava “Olha meu amigo ali!”. Eu ficava horas na varanda de nossa casa na Quinta Avenida no bairro de Miramar vendo eles passarem e achava que era sempre o mesmo que passava e enchia o saco de todos com meus gritos, “Olha meu amigo ali!”. Quando cresci, e superei esse trauma, minha avó me contou que a Tia Damaris5 teve esta ideia: fomos comprar brinquedos em Los dias de Reyes e, sem eu perceber, ela pediu para um policial me dar um brinquedo de presente. Ele me colocou até em cima da moto, uma clássica Harley Davidson, e só percebi que estava fardado na hora que ele partiu. “Tia Damaris olha… ele é meu amigo!”
Minha mãe sofreu muito e com certeza eu sofria com ela. Nas entrevistas e depoimentos feitos a jornalistas, minha mãe conta que entrou em todo esse processo de luta armada por amor ao meu pai, e não foi uma história inventada para suportar a dor da tortura, de fato ela tinha uma paixão que, mesmo passando muitas dificuldades durante décadas e hoje serem divorciados, ela ainda fala de meu pai com brilho nos olhos.
Essa paixão acesa no primeiro olhar no refeitório do Frigorífico Bordon (fábrica onde os dois se conheceram), fez que ela o seguisse sem vacilar. Meu pai, já engajado na luta, tinha temor de ter um filho nesses anos de chumbo, mas eu cheguei quando minha mãe completava 30 anos, idade que geralmente mulher não esperava mais ter um filho. Nos dois anos e três meses seguinte, eu não desgrudo da minha mãe, que me amamentou até ser arrancado de seus braços na cadeia.
No meu regresso ao Brasil, em 1986, uma companheira de cela da minha mãe, a Encarnação (Encarnación Lopes Peres, in memoriam) me conta:
Ernesto, sua mãe sofreu muito. Um dia os milicos entraram em nossa cela e fizeram a gente tirar toda a roupa. Eu me despi com raiva e cheia de ódio no meu olhar, não sabia o que nos esperava, mas fomos tão violentadas que nada mais fazia diferença, e eles ficaram gritando com sua mãe para ela se apressar, ela envergonhada começou a tirar a roupa atrás de mim, eu vi aquela cena e me comovi muito, ela era aquela moça com a pureza do interior que sofreu mais com a vergonha de ficar nua na frente desses milicos do que com os choques elétricos que tomou… é linda a paixão que ela tem pelo seu pai.
Minha mãe sempre me contou de sua aflição durante a clandestinidade, das dificuldades financeiras que passou, muitas vezes só tinha o peito para me dar, e como meu pai era procurado e eles participavam, principalmente, na mobilização da resistência armada na cidade, ele ficava escondido em casa e ela tinha que ir à feira sozinha comigo no colo, ou dirigir com ele escondido no carro. Como minha mãe não era procurada oficialmente (seu nome e foto não tinham sido publicados nos jornais), ela servia de motorista e, em um dos reencontros após o exílio com amigos sobreviventes, me contaram o apuro que todos eles passaram quando foram resgatados e trasladados de um “aparelho” para outro pela minha mãe em uma Rural, eu ao lado dela no banco do passageiro e vários companheiros, inclusive meu pai, deitados no chão atentos com metralhadoras na mão e cobertos por uma lona. No caminho passaram por uma barreira policial, mas o disfarce dela dirigindo sozinha comigo ao seu lado funcionou. Mas ela ficou tão nervosa que ao chegar à casa-aparelho passou por cima do portão, todos saltaram com arma na mão e por pouco não saíram atirando. Ela ficou com fama de má motorista e até hoje eles riem desse momento quase trágico.
Nesse período eu tinha muitos pesadelos e nas noites de pesadelos sempre fazia minhas necessidades involuntariamente. Quando tinha febre os pesadelos aconteciam até acordado. Lembro uma vez que as tias da creche ficaram tão preocupadas que ligaram pra minha avó ir me buscar e ela mandou meus irmãos. Eles ficaram um pouco comigo para me acalmar, mas a diretora não deixou que me levassem e hoje eu entendo o porquê. O mais velho deles, o Samuel, só tinha 11 ou 12 anos e a creche ficava longe de casa. A última vez que mijei nas calças tive vergonha de falar, eu já estava com 11 anos e dormia no meio da minha mãe e do meu pai depois de eles voltarem de mais uma concentração para irem a outra guerrilha, isso foi em 1979 quando se ofereceram voluntariamente para lutar na revolução da Nicarágua.
Meu pesadelo mais comum era com um asno, uma corda e uma agulha. O asno usava um boné militar, a agulha tinha olhos arregalados e uma risada aguda sarcástica e corria atrás de mim, eu apavorado tentava fugir. O asno me cercava, me dava coices ou chutava coisas sobre mim. A corda parecia boazinha, disfarçada de linha se estendia até mim, mas quando eu a segurava ela machucava minhas mãos e me deixava cair em um abismo.
Devido a toda sua história de luta, meu pai apanhou muito dos militares e sempre se manteve reservado ao falar do tempo que ficou no presídio – nunca conversou comigo sobre nossa passagem pelos presídios. Neste ano, 2013, o repórter Luiz Carlos Azenha fez uma série de reportagens sobre “Crianças e a Tortura”. Em um capítulo dedicado à minha história, ele me entrevistou, depois meu pai e por último minha mãe, separados e em locais diferentes. Meu pai conta para o Azenha que fui levado muitas vezes às seções onde ele era torturado e lá faziam “simulação” de espancamento em mim usando uma corda.
Eu comecei a entender tudo o que as tias e os coleguinhas da creche falavam, mas não me comunicava, ficava sempre nos cantos, atrás de colunas ou de árvores. Lembro de uma tia nova me dando instruções para lavar as mãos e ir para o refeitório quando outra tia lhe disse, “El es brasileño y no entiende, tienes que acerle gestos”. Dei risada e saí correndo. Essa tia nova começou a falar comigo sem fazer gestos e eu sempre a atendia, aí comecei a segui-la. Eu via que ela, à tarde, chamava os meninos maiores e entrava em uma sala e passei a espiar pela porta entreaberta, assim comecei a assistir suas aulinhas de pré-escola. Dessa forma, ela foi me deixando adquirir confiança, até que um dia percebi que estava deitado no meio da sala e na lousa de feltro tinha uma equação matemática simbolizada com patinhos colados. Ela perguntou olhando pra mim: “¿Tres paticos mas dos paticos es igual a…?” Respondi na hora: “Cinco paticos”. Ela me convidou para sentar na cadeira com os outros e eu respondi “No puedo, yo soy mas chico”. “No importa, ven”. Depois vi seu entusiasmo contando para superiora, “No les dije que el entendia todo y que es muy inteligente”.
Alguns meses depois, a tia Damaris me colocou na marra na primeira série na escola que a Zuleide e a Telma Lucena estudavam. Não queriam me aceitar porque eu tinha apenas 5 anos, mas a tia Damaris me levou quase que arrastado pelo braço (ela andava muito rápido) um dia depois que começaram as aulas e me enfiou na fila “del Matutino”, foi até a frente da diretora, que ia começar o matutino, e apontando o dedo no nariz dela falou-lhe rápido em português alguma coisa que nem eu entendi e foi embora. Eu estava matriculado.
Mas nunca me esqueci da Inhai [Ñasaindy Barrett]que ficou para trás, que era exatamente um ano e dois meses mais nova do que eu, “¿Y que le pasó a Ñasaindy solita ayá en el circulo?”.
Nesse período, meus pais chegaram definitivamente em Cuba e ficaram preocupados comigo porque, apesar do meu prematuro bom desempenho na escola, eu não mantinha convívio social e ficava distante no “meu mundo”. Levaram-me ao pediatra para descobrir minhas sequelas. Ele orientou meus pais a buscar um psicólogo, dizendo que eu tinha traços e atitudes de um menino autista, o que não se confirmou. Eram bloqueios, mecanismos de defesa por ter sido separado abruptamente dos pais e pelos abusos que eu passei.
Quando voltei ao Brasil, meus parentes (tios, primos, madrinha etc.) sempre diziam que eu era muito vivo, esperto e falante, além de reconhecer os parentes, comecei a falar muito cedo e com pouco mais de um ano já conhecia as marcas de todos os carros. Fica clara minha mudança radical de comportamento após passar pela prisão.
Durante minha alfabetização, em Cuba, na primeira série, tive muita dificuldade em pronunciar o “rr” , mas um ano depois eu fui condecorado no Teatro Lazaro Penha junto com os melhores mestres e doutores do país por ter tirado média máxima (dez) na primeira série do primário. No Teatro tive que ficar sozinho, no andar debaixo só podiam ficar os homenageados, a Zuleide viu sua professora que também estava sendo homenageada e pediu para que cuidasse de mim. Sentei no cantinho “de su butaca”, a Zu e meus pais, que estavam há pouco tempo em Cuba de forma definitiva, foram para o andar de cima. Quando me chamaram, foi um suspense. Primeiro o mestre de cerimônia errou meu gigante nome “ahora llamamos Ernesto Carlos Diaz do… doooo Nasc… Nasc… del Nacimiento, por haber logrado el promédio máximo em todo el año escolar en la Escuela básica Viet-Nam Heroico”. Quando o homenageado se levantava todos aplaudiam, mas como ninguém me via caminhando em direção ao palco, ficou um silêncio total e fui chamado mais duas vezes, quando comecei a subir as escadas meio que engatinhando. Começaram risos e aplausos progressivamente até o teatro explodir de vibração com todos aplaudindo em pé. Fiz exatamente o que os outros homenageados faziam, debrucei-me sobre a mesa para cumprimentar os integrantes da mesa e peguei meu canudo das mãos da Ministra da Educação Vilma Espin, que teve dificuldades em colocar o broche de condecoração no meu peito debruçada sobre a mesa. No dia seguinte, essa cena comigo foi reprisada na TV no Noticiero Nacional. A Telma gritou “Corre, Chesinho, corre, vem ver você na televisão”.
Nota dez na primeira série, nota cem no Projeto de Graduação, sempre tirei média acima de 9 e no Projeto de Graduação do Centro Tecnológico Amistad Cubano Soviético consegui a nota máxima no teórico e na defesa oral, um feito inédito na história do Instituto, defendendo o projeto perante uma banca de professores. A última pergunta foi: Professor, “Ernesto, sabemos que asi que termines la graduación regresaras a tu país Brasil que sigue las normas Norte-americanas y aqui seguimos las normas internacionales pero el acero y todos los metales que usaste en el proyecto estan codificados por las normas Russas ¿Como haras los proyetos?” Sem hesitar respondí “Sé que Brasil tiene grandes indústrias y puede ser que tengan sus próprias nomenclaturas, pero es sensiyo, lo sabré por la composición química de cada metal encontraré su similar en las normas brasileñas o norteamericanas”. Professor interrompeu, –“Eso dá trabajo tendras que memorizar muchas composiciones”. Respondi, “Si lo sé, pero vea, por ejemplo, em la matriz de este proyecto uso acero-herramienta ruso YA12C8N6 que tiene 1,2 % de carbono, 0,08 de cromo e 0,06 de niquel temperado a 55 Hrc – Dureza Rockwel una medida internacional, en la guia uso acero-aleado con 0,08% de carbono cementado e temperado a 1,2 mm de profundidad consiguiendo una alta dureza superficial sin perder la tenacidad, en la base acero de construción com 0,45% de carbono…”. O professor me interrompe “Disculpeme Ernesto…”, e olhando para os outros sabatinadores fala “Señores, para mi basta”. Todos concordaram e me dispensaram.
Ficou um suspense danado e eu com um pouco de temor, foram muitas perguntas e apesar da parte teórica do projeto ser feita em grupo, eu fiz tudo sozinho porque os colegas que estagiavam na fábrica comigo não quiseram arriscar e pegaram projetos mais simples. Passei várias noites acordado fazendo o projeto ao lado de minha avó, minha sempre guardiã e companhia nas madrugadas. Todos ficaram aguardando o resultado dos avaliados naquele dia pela banca examinadora até começar um murmúrio geral na escola e fazerem uma roda sobre mim e todos que chegavam falavam praticamente a mesma frase: “Cooonñó ERNESTO SACASTE 100”, eu respondia “Gracias a mi abuela”.
Cuba é reconhecida mundialmente e até pelos opositores políticos como uma potência na Saúde e Educação, então quem se destaca lá deve ser bom. Pressupondo isso, assim como eu, modéstia à parte, várias crianças brasileiras exiladas em Cuba foram brilhantes. Destaco alguns e me perdoem os outros: a Telma, autodidata, que além de ter sido avaliada durante vários anos na escola como a melhor aluna, aprendeu a falar russo sozinha falando com seus vizinhos no bairro de Alamar, seu irmão Kito que foi campeão de xadrez várias vezes em Cuba – a Ilha também terra de grandes mestres enxadristas –, não pôde participar de competições internacionais porque ele “Não tinha pátria” (não era cubano e era banido do Brasil), o César Lamarca já desenhava navios no ginásio na escola especial Los Camilitos. Mas o que aconteceu com essas pessoas brilhantes na volta ao Brasil após a Anistia?
Nosso brilhantismo teve que enfrentar o preconceito político-social imposto pela mídia reacionária, a falta de reconhecimento e legalização de nossos estudos e diplomas adquiridos em Cuba por parte das autoridades. A Anistia foi só para os carrascos torturadores, eu só tive meu diploma reconhecido pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça em junho de 2012.
Meus pais chegaram definitivamente em Cuba em abril de 1974, após conseguirem escapar do golpista assassino Pinochet. Eu já tinha 6 anos e estava terminando a primeira série. Dessa vez não entrei em crise no reencontro, eu sabia que eles estavam para chegar e quando os vi entrando na minha sala de aula, reagi com muita tranquilidade, fui até a mesa da professora e pedi licença para ver meus pais, ela com empolgação pediu para eu correr para os braços deles.
A convivência com eles trouxe uma estabilidade e segurança a todos as crianças da casa. A figura e o carinho do meu pai nos proporcionou muita felicidade e, apesar de ser o filho único deles, seus carinhos faziam esquecer que eram praticamente todos órfãos. O Samuka [Samuel] foi adotado pela minha avó, a Zuleide e o Carlinhos são filhos do primeiro filho adotivo da Tia, mas desde muito pequenos foram criados pela nossa avó, os filhos da Damaris tiveram seu pai assassinado e a Ñasaindy perdeu o pai, José Maria Ferreira de Araújo e a mãe, Soledad Barrett Viedma, para os torturadores que nem a lembrança lhe foi preservada. Eu de fato fui privilegiado por ter recuperado meus pais aos 6 anos de idade.
Os cubanos nos deram muito afeto, e todos os cuidados necessários para nosso bem. Minha avó recebia além da casa toda mobiliada, também serviços como troca de gás, conserto de aparelhos domésticos. Tínhamos direito a fazer compras em lojas especiais para técnicos estrangeiros em que era possível encontrar até produtos importados. Com a chegada dos meus pais, eles quiseram viver como os cubanos e nos mudamos para uma casa em La Lisa, um município a oeste de Havana, e passamos a fazer compras nas bodegas que tinham de tudo, claro, menos as guloseimas importadas.
Essa casa com três quartos, dois banheiros e belo quintal, tornou-se a porta de entrada dos brasileiros que chegavam do exílio, que ficavam meses morando com a gente. Alguns se casaram em nossa casa, fizeram aniversários e festa de 15 anos, além dos tradicionais festivais brasileiros de fim de semana. E assim nossa família começou a crescer, com muitos tios carinhosos e que se divertiam conosco como se fosse “seu último dia”… e foi para alguns.
A cada seis meses recebíamos jornais brasileiros, Jornal do Brasil, Estadão e O Globo. Eu e meu irmão, Carlinhos, gostávamos de histórias em quadrinhos e éramos os primeiros a pegar os pacotes de jornais para cortar as “tirinhas” e colar em um caderno, criando um gibi. Numa dessas vezes vi a foto de seis “tios” que foram mortos na fronteira do Uruguai pelo exército brasileiro entrando clandestinamente no Brasil. Foi um choque. Foi assim também que descobri que eu era classificado como terrorista no rodapé de nossa foto publicada nos jornais quando fomos banidos e até hoje usada para relembrar os terroristas trocados pelo embaixador alemão. Lembro-me ainda que ao ver tal foto, perguntei a minha avó: “Vó! Vó! O que é terrorista?”, “São gente ruim que matam outras pessoas”, “Então eu sou ruim?”, “Claro que não, filho! De onde você tirou isso?”, “Aqui no jornal diz que nós somos terroristas…”. Não sei se entendi a explicação dela.
Era uma numerosa e esquisita família. Sim, esquisita porque meu pai e minha mãe são tios de meus irmãos que são órfãos e eu não; temos um monte de tios, mas ninguém é irmão; um monte de primos brasileiros que só conhecemos em Cuba. Foram 16 anos em Cuba contando nossa história mais de uma vez por dia.
Mas esta numerosa família foi esmaecendo. Quando a Tia Damaris mudou-se para um apartamento do outro lado de Havana perdi quatro irmãos e ganhei quatro primos, creio que tinha 8 anos. Duro foi perder o contato com a Telma e a Inhai que mudaram de escola e eu fiquei no internato sozinho. A Zuleide também saiu porque foi para o ginásio. Passamos a nos ver praticamente uma vez por ano quando passávamos as férias um na casa do outro.
Muitos tios voltaram clandestinos, José Ibrahin, José Dirceu e outros, não sei se todos vivem hoje. Meu filho mais velho se chama Átila em homenagem a um desses grandes tios dos anos de exílio e que faleceu no Brasil sem poder reencontrá-lo (Deputado Valnerí do Rio Grande do Sul). Átila era seu apelido pelo seu tamanho e bravura. Com as crianças era muito carinhoso, pegava quatro de nós em cada braço e ele virava uma gangorra humana.
Depois da Lei da Anistia em 1979, quase todos se foram. Em março de 1980 meus pais regressaram, a Tia Damaris, meus primos-irmãos Kito, Denise, Telma e Ñasaindy, também. Tia Isaura, Suely e Célia Coqueiro, Darcy, Rosa Darcisinho e Dorinha com os quais muito convivi antes da chegada dos meus pais em 1974. Miriam (Marília Carvalho Guimarães) e seus filhos da minha idade Marcelo e Eduardo, César e Claudia Lamarca, Tia Clara Charf (em Cuba só a chamávamos de Clara Marighella). Alguns que eu tinha muito apego já se haviam ido, como Tio Gregório (Ubiratã), Mazine, Cassiana, o Tio do Berço (nos primeiros anos de exílio o Tio Rogério deitava em nosso berço para contar historinhas e acabava dormindo). Em 1981 meu irmão mais velho Samuel volta para o Brasil e, em 1982, é a vez do meu irmão Carlinhos. Da casa que abrigou dezenas de “Tios, primos e irmãos” só restou eu, minha avó e minha irmã Zuleide.
Chegou minha adolescência e minha avó me educou do mesmo jeito que educou mais de quarenta crianças que passaram pelas suas mãos, sempre incentivando a encarar os desafios e assumindo responsabilidades. Eu, como todos, aprendi desde cedo a lavar minhas roupas, a pregar um botão ou fazer pequenos remendos no meu uniforme, a cozinhar e saber tomar decisões quando se faz necessário, não importa o tamanho da responsabilidade.
Escolhi fazer um curso tecnológico para voltar ao Brasil com uma profissão para encarar melhor este desafio. Meu pai por carta insistiu que eu continuasse e terminasse a Engenharia na Universidade, mas as saudades da minha mãe e meu anseio em conhecer minha pátria nativa pesaram na minha decisão de regressar em 1986.
Quando meus pais voltaram para o Brasil em 1980, saíram de Cuba em março, mas ficaram um mês no Panamá tentando tirar passaporte e visto de retorno junto a outros brasileiros. Ao chegarem, em abril, ainda ficaram 24 horas no aeroporto de São Paulo sendo interrogados (dessa vez sem agressão física). Confiscaram todos os livros que eles levavam, tanto os de conteúdos técnicos quanto os de políticos. Eu fiquei até 1986 concluindo meus estudos e o sonho de conhecer o Brasil foi crescendo proporcionalmente às saudades que sentia pelos meus pais nesses seis anos de adolescência.
Depois de passar cinco dias no Panamá para tentar tirar passaporte e visto (entramos com salvo conduto, só deram passaporte para o filho da Zuleide que nasceu em Cuba) chegamos ao Brasil em 12 de janeiro de 1986. Até que, enfim, vim a conhecer a minha pátria nativa. Realmente o Brasil é lindo e ser turista aqui é maravilhoso, mas depois de três meses a minha vida de turista acabou, começou a realidade. Foram dois anos de angústia, sofrimento, confronto e cadeia no serviço militar.
Meu pai voltou para Cuba no final de 1985 para nos ajudar nos preparativos para o nosso regresso (foi um reencontro de estranhos). Como ele e minha mãe tiveram dificuldades e não revalidaram seus diplomas, (minha mãe se formou Enfermeira Geral, mas só consegui o registro do COREM de Auxiliar de Enfermagem em 1998; meu pai nunca revalidou seus diplomas, nem voltou a trabalhar na sua profissão), ele pediu pra refazerem todo meu histórico escolar, pediu para retirarem do meu currículo todas as matérias relacionadas a política que fazem parte do ensino fundamental cubano e tivemos que ir a todos os órgãos para validar os documentos que foram certificados pela Embaixada Suíça, representante oficial dos interesses do Brasil em Cuba. Matérias excluídas: Fundamento de los conocimientos Políticos, Geografia Política Econômica, Marx, El Capital 1, El Capital 2, El Capital 3, Marx e Engels, Marxismo Leninismo e Táticas Militares e outras.
Toda essa trabalheira não adiantou de nada, nunca consegui revalidar meu diploma, tendo que trabalhar em serviços inferiores à minha formação. E a discriminação pelo fato de ter vivido em Cuba se manifesta em todas as instituições e esferas sociais.
Como pode ser constatado em uma série de documentos que estão comigo, meu pai fez todos os trâmites para revalidar meu diploma: primeiro, a tradução oficial que lhe custou dois meses de salário; depois, entramos com processo na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo que encaminhou para a Fundação Paula Souza-Fatec. Depois de dois anos devolveram o processo dizendo que não tinham cursos similares no Brasil, sendo meu curso muito superior em matéria e carga horária que um curso técnico e até maior que um similar superior, mas que não poderiam revalidá-lo porque, conforme está escrito em meu histórico, meu curso é “Médio-Superior”. Em 1991, cinco anos após voltar para o Brasil, consegui a equiparação de ensino médio para prosseguir no estudo superior.
Em Cuba revivíamos nossa dramática história contando-a quase todos os dias, mas as reações das pessoas eram de solidariedade e admiração. Aqui no Brasil fui até apedrejado quando debatia politicamente com um professor em uma escola para esclarecer que eu não era terrorista e que em Cuba não existe ditadura militar. Fui preso também duas vezes no Serviço Militar Obrigatório por insubordinação, mas, como suportar calado me chamarem de terrorista, assassino, ateu-satanás e outras injúrias?
Pior é ter que viver uma vida de mentiras, ocultar meu passado, mentir no meu currículo que, em vez de ter me formado no El Centro Tecnológico Amistad Cubano Soviética, me formei no Centro Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco, assim sugerido por colegas, para que eu pudesse arrumar emprego. E não é que funcionou? Claro, mentira tem perna curta e meus empregos em grandes empresas também.
Com muito orgulho dei aulas técnicas (voluntário com pequena ajuda de custo) e fui um dos fundadores de uma escola profissionalizante criada pelo Movimento de Oposição Metalúrgica de São Paulo nos anos 1990, sendo reconhecida pelo MEC como a primeira escola com Supletivo Profissionalizante no Brasil.
Em uma escola profissionalizante renomada de São Paulo, curiosamente fundada em 1964 que só contrata Engenheiros para dar aulas, nunca consegui preencher ficha de solicitação de emprego. Um dia me passei por aluno e consegui chegar na sala do diretor, em uma conversa de quinze minutos já estava contratado, mesmo sem possuir nenhum diploma.
Teve uma empresa que não me discriminou porque um dos diretores era um chileno fugitivo do Pinochet e me contratou como desenhista. Cinco anos depois, com 25 anos eu era diretor técnico desta empresa que trabalhava com tecnologia avançada, automação, robótica etc., com mais de cem funcionários, mas a empresa passou por dificuldades financeiras, nas recessões dos anos 1990 e fiquei novamente trabalhando na informalidade, como empreendedor e ativista no setor de TI e, como voluntário, presido e milito em associações de inclusão social.
Juntamente com os netos, viveu no sítio em que Lamarca realizava treinamentos militares, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Uma de suas missões era fazer a casa principal parecer levar uma vida “normal”. A outra era costurar os uniformes usados nos treinamentos.
Tercina foi presa em Jacupiranga, interior do estado, com três das quatro crianças. Em 1979, foi uma dos 40 militantes trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Hollenben, sequestrados em junho de 1970.
Banida, Tercina seguiu da Argélia para Cuba com três netos e um dos filhos de criação: Samuel Dias de Oliveira, Luis Carlos Max do Nascimento, Zuleide Aparecida do Nascimento e Ernesto Carlos do Nascimento. Retorna ao Brasil em 1986 com Zuleide, Luis Carlos e Ernesto. Samuel voltou em 1982.
Antes de ajudar a criar a VPR, Manoel era líder sindical filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entrou na clandestinidade em 1968, após ter a prisão decretada. Incentivou a mãe, Tercina Dias de Oliveira, a também contribuir para a VPR. Sua tarefa era organizar a guerrilha em São Paulo (SP). Foi preso em maio de 1970, quando cobria um ponto para passar informações a companheiros. No mesmo dia, mais tarde, a companheira Jovelina e o filho Ernesto foram presos na casa da família no bairro de Vila Formosa.
Jovelina trabalhava na prefeitura de Osasco (SP) e foi demitida durante a licença maternidade por causa da militância do marido. Depois de passar pela Operação Bandeirantes (OBAN) e pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi com o filho para a ala feminina do Presídio Tiradentes.
Em fevereiro de 1971, Manoel e Jovelina foram dois dos 70 presos políticos que tiveram a liberdade trocada pela do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, sequestrado por militantes de resistência à ditadura. Exilaram-se no Chile. Na ocasião, contaram o que tinha acontecido com eles para os cineastas estadunidenses Haskell Wexler e Saul Landau, cujo documentário Brasil, um relato da tortura tornou-se uma das primeiras denúncias internacionais dos abusos cometidos pelo regime.
“Antes de eu descer do pau de arara, minha companheira chegou com meu filho. Este filho assistiu a parte da tortura. Em seguida, puseram minha companheira no pau de arara, tomando choque em todas as partes do corpo, inclusive nas partes íntimas. Na minha presença. Só para eu falar alguma coisa”, relatou Manoel. Chorando muito, Jovelina testemunhou: “Ele [o filho Ernesto] dizia: ‘Não pode bater no papai. Não pode’. Para mim foi muito duro. Batiam muito em mim, mas não me perguntavam nada porque sabiam que eu não tinha participação nenhuma”.
Em 15 de agosto de 1971, o casal chegou a Cuba, onde reencontraram Ernesto. Jovelina, então, foi à Coreia do Norte fazer treinamento de técnicas de guerrilha. Em 1972, ela e Manoel voltam ao Chile para se prepararem a retomada das atividades guerrilheiras no Brasil.
Em setembro de 1973, com o golpe contra Salvador Allende, os dois foram presos no Estádio Nacional. O casal conseguiu fugir e se abrigar num refúgio da ONU, de onde seguiram para Cuba novamente.
Lá, Jovelina fez curso de enfermagem. Ela e o marido voltaram ao Brasil em 1985. Ernesto retorna com Tercina em 1986.