As memórias relacionadas ao nascimento da minha filha me transportam para situações contraditórias. De um lado, a imensa felicidade com a chegada daquele pequenino ser, que nos trazia esperanças, alegrias e ao mesmo tempo, angústias pela consciência de que não poderíamos tê-la conosco. E, de outro lado, a preocupação pelo futuro que poderíamos vislumbrar para nossa filha, já que estávamos condenados a muitos anos de prisão e não sabíamos quanto tempo mais viveríamos sob a ditadura. Havia ainda a ausência da minha família, que se encontrava no exílio.
A família de meu companheiro, Colombo Vieira de Sousa Júnior, também já havia sido atingida pela repressão. Porém, quando soube que estava grávida, tudo o mais se tornou secundário.
A história da minha gravidez se insere na história das lutas contra a ditadura, já que ela ocorre no momento em que o regime estava acossado pelo crescimento das oposições e por um crescente desgaste no exterior diante das denúncias sobre violação dos direitos humanos.
Minha gravidez só foi possível com a transferência dos presos políticos da Ilha Grande para o centro da cidade do Rio de Janeiro após uma longa greve de fome realizada por aqueles companheiros. O episódio obrigou o regime a reconhecer a existência de presos políticos e resultou na construção de um presídio específico para aqueles presos. Tínhamos outras demandas e, dentre elas, a de que fosse permitido o encontro entre os casais presos. Este era o nosso caso. Eu e Colombo já estávamos há anos sem nos encontrar e para o carcereiro de plantão no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, tal reivindicação seria atendida se autorizada pelo juiz da Auditoria de Aeronáutica. E qual não foi a nossa surpresa quando conseguimos tal autorização? E, como a medicina dizia que eu não poderia engravidar, nem pensamos em algum tipo de anticonceptivo. Foi assim que nossa filha foi gerada, uma luz da natureza em uma fresta aberta pelas campanhas contra a ditadura.
A gravidez transcorreu com tranquilidade, mesmo sem os exames próprios ao pré-natal, mas o parto foi mais complicado.
Quando faltava um mês para o nascimento da Leta, fui transferida para o hospital penitenciário e ali permaneci até o dia do seu nascimento. Nesse período pude receber visitas da família do Colombo, que já me dava assistência ao longo dos anos em que estive presa. E assim pudemos estar juntos aos sábados e domingos.
Neste hospital-prisão permaneci isolada em uma pequena cela, sem exercícios ou banho de sol. E, evidentemente, sem qualquer assistência médica.Os hospitais militares se negaram a fazer o parto. Diante dessa recusa, os companheiros organizaram um fundo que nos permitiu pagar um hospital privado e, mais importante, o parto sendo realizado por um médico de absoluta confiança. Tratava-se do dr. Jeferson Carneiro Leão, ele mesmo militante da causa democrática e que havia trazido ao mundo vários filhos de companheiras nossas. Mas eu só o encontrei a poucos dias do parto, quando fui levada à clinica.
Dia 19 de setembro, um daqueles domingos de visitas no presídio político, minha sogra percebeu que eu, sem saber, estava em trabalho de parto desde a noite anterior. Logo os companheiros acionaram os carcereiros e fui levada para a maternidade sob forte escolta, ainda na caçamba de um camburão e algemada. Lá me esperavam alguns companheiros, que impediram que os soldados da Polícia Militar, que faziam a escolta, entrassem na sala de cirurgia.
À uma hora da manhã do dia 20 de setembro de 1976 nascia Leta, de cesariana, no Hospital São Sebastião. Inocentes, eu com minha alegria de ser mãe e ela que só queria saber de mamar, não sabíamos que naquela madrugada ocorria o sequestro de Dom Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu e conhecido por suas posições a favor dos injustiçados. Esse crime, realizado por grupos de militares que se opunham ao projeto de abertura “segura, lenta e gradual” proposto pelo ditador Ernesto Geisel, se somava aos inúmeros atos de terrorismo que naquele momento ocorriam na cidade do Rio de Janeiro.
Naquela noite, terminei dormindo e fui acordada pela presença de soldados armados dentro do quarto. A partir deste momento, nossa presença no hospital se transformou num verdadeiro horror. Como ainda não haviam cortado o telefone, pude me comunicar com a advogada Abigail Paranhos, ex-presa política, e o médico Leo Benjamim, querido e corajoso combatente, que imediatamente chegaram ao hospital e, após um difícil diálogo com as autoridades policiais ali presentes, conseguiram que os soldados ficassem do lado de fora do quarto.
Esses acontecimentos me fizeram ficar em alerta. Ao amanhecer chegaram vários homens que, pela janela do meu quarto, passaram a me ameaçar dizendo que iriam matar a minha filha, que era necessário realizar o que eles chamavam de operação Jacarta (em referência à matança de comunistas que a Indonésia havia realizado). Eu, encolhida na cama, tentava me comunicar com o mundo exterior. O telefone já havia sido cortado e nenhuma enfermeira atendia aos meus chamados. Nem a minha filha, que se encontrava no berçário, vinha para mamar.
Em algum momento, dr. Jeferson, me pedindo que ficasse calada, entrou no quarto para avisar que eu seria imediatamente enviada à penitenciária e que a escolta policial chegaria a qualquer momento. Logo após, chegou uma assistente social, Gloriete, servidora do sistema penitenciário, que ajudou a me levantar – eu estava operada há menos de 48 horas – e nos encaminhamos para o pátio do hospital onde um camburão nos aguardava. No percurso, sob os olhares hostis que surgiam dos outros quartos, pude ver minha cunhada, Iná, e Iramaya Benjamim. Elas estavam impedidas de se aproximar. Minha angústia era absoluta pela falta de notícias da minha filha e por não entender o que ocorria, sem contar os temores de uma sutura ainda não cicatrizada.
Somente quando entramos no camburão é que a Gloriete me informou, sumariamente, o que ocorria. Cheguei à penitenciária em torno do meio dia e minha filha me foi entregue, por Iná e Iramaya, à tarde. Elas me entregaram a menina pela grade e nada puderam falar.
Na verdade, aquele pesadelo tornou a se repetir quando, também em uma madrugada, acordei para alimentar Leta e pude ouvir da guarita, no pátio do pavilhão aonde nos encontrávamos, vozes que repetiam as mesmas palavras ouvidas no hospital. No dia seguinte comuniquei ao diretor, mas, ainda hoje, não sei do que realmente se tratava.
Dos episódios ocorridos no hospital pude me inteirar melhor anos depois, quando acessei os documentos produzidos pelo sistema penitenciário e ali pude ter consciência do verdadeiro perigo que rondou a vida da minha filha. Soube então que o consultório do dr. Jeferson fora invadido e depredado por duas vezes e que a direção do hospital havia exigido a minha imediata retirada do hospital. E, sobretudo, pude ler as inverdades produzidas pela repressão acerca dos episódios relatados acima.
Leta permaneceu comigo somente nos primeiros meses de vida, quando a entreguei aos cuidados da família do Colombo. E aquele foi o momento mais dramático em toda a minha existência. Uma dor dilacerante, sem igual.
Pela legislação penitenciária, Leta poderia permanecer no presídio até os 6 anos, na creche que existia à época, quando então teria que ser entregue à família ou a um juiz. Eu optei por tirá-la daquele ambiente entendendo que ela não deveria crescer entre aquelas grades e que deveria ter uma vida familiar normal entre os primos e desfrutar a sua infância como todas as crianças têm direito.
Colombo só pôde conhecê-la quando ela tinha quinze dias de nascida.
Durante os anos seguintes, Leta era levada para ver o pai e a mim de quinze em quinze dias. Com o crescimento da luta pela anistia, quando a existência dos presos políticos se tornou um problema para o regime, conseguimos nos encontrar, os três, em Bangu, duas vezes ao mês. E, em algumas ocasiões especiais, pudemos até mesmo passar finais de semana juntos.
No dia 6 de fevereiro de 1979 fomos soltos e, na saída da prisão, lá estava ela. Linda, no colo das avós – minha mãe, rompendo com as proibições que a impediam de voltar ao país, resolveu que naquele momento estaria ali – e, ao longo da ponte que liga o Rio a Niterói, cidade em que residimos até hoje, ela ia nos mostrando o barco, a lua, como se estivesse entendendo tudo o que ocorria. Ficou acordada a noite inteira e, na manhã seguinte, pegou o pai pela mão e foi apresentá-lo aos gatos da casa.
Em seguida fomos residir em Volta Redonda, onde, pelas mãos de D. Waldir Calheiros, bispo da cidade, conseguimos nosso primeiro trabalho. Foi um período difícil para Leta já que, aos 2 anos e meio, se viu separada da família com quem ela havia vivido até então.
Quase toda semana encontrávamos com sua avó Inah na porta do presídio onde íamos visitar os companheiros e, em especial o marido da minha sogra. A hora das saídas eram momentos de grande aflição porque Leta chorava muito ao se despedir da avó. Até que em uma dessas ocasiões ela simplesmente deu um beijo na avó e, desse momento em diante, os sintomas de desajustes com a nova vida desapareceram. Ficando, evidentemente, as referências relativas à estabilidade que lhe foi dada pela família do pai.
Em 1969, Jessie entrou para Ação Libertadora Nacional (ALN). Na organização, conheceu Colombo Vieira de Souza. O casal viveu na clandestinidade até 1º de julho de 1970, quando foram presos durante a ação de sequestro do avião Caravelle PP-PDX da Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro, realizada junto com os irmãos Heraldo e Fernando Palha Freire.Estava com 21 anos quando foi presa e barbaramente torturada no DOI-Codi, do Rio de Janeiro. Jessie e Colombo foram condenados a dezoito anos de prisão e ficaram presos por nove. Ela, na penitenciária de Bangu (Presídio Talavera Bruce) e ele no Instituto Penal Cândido Mendes (Presídio da Ilha Grande). Ficaram cinco anos sem se ver e a única forma de comunicação eram cartas. Em 1972, conseguiram autorização judicial para se casar. Em 1975, conquistaram o direito à visita íntima. Assim, Jessie engravidou na prisão e, em setembro de 1976, nasceu Leta, filha do casal, na Clínica São Sebastião (Rio de Janeiro) sob forte vigilância policial. A bebê permaneceu alguns meses ao lado de Jessie na prisão e depois foi entregue à sua sogra. Jessie e Colombo foram soltos em 1979 e estão casados até hoje.
Jessie tem quatro irmãos: Sandra Maria Alves de Sousa, presa duas vezes em São Paulo e torturada na Operação Bandeirantes, em 1970; Vera Vani
Alves de Pinho, voltou clandestina do Chile e assim viveu por nove anos no Brasil; José Alves Neto-Juca, preso junto o pai no Chile, ficaram por três meses no Estádio Nacional; Ivan de Sousa Alves, casado com uma ex-presa no Uruguai e ainda vive na Suécia. Com o banimento do pai, as prisões de Jessie, Sandra e de sua mãe, todos entraram na clandestinidade e quando puderam foram para o Chile. No golpe, seu pai e Juca foram presos logo nos primeiros dias. Sua mãe se refugiou e os três se reencontraram a bordo do avião que os levou para a Suécia. Tudo graças à intervenção do embaixador sueco que salvou centenas de pessoas. Sandra e Ivan se refugiaram na embaixada da Argentina e depois foram para Portugal e, em seguida, Suécia.
Seus pais e Juca foram inicialmente para a Suécia, em seguida para Cuba e depois Suécia, onde todos se reencontraram (menos Jessie que estava presa e Vera que estava clandestina no Brasil). Seus pais e Juca retornaram ao Brasil em 1980 e Sandra retornou há cerca de 5 anos. Mas Ivan ficou na Suécia.
Hoje, Jessie é professora associada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em História pela Universidade
Federal Fluminense (UFF), tem mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado em História Social pela UFRJ.