Vou falar da minha adolescência, período em que vivenciei a atuação política dos meus irmãos, que se deu em São Paulo mais ou menos a partir de 1968. Nessa época, o Lúcio, que já tinha se formado na Faculdade de Engenharia e Eletrotécnica de Itajubá/MG, resolveu trazer a minha mãe para morar em São Paulo. A Maria Lúcia tinha prestado um concurso e estava trabalhando na cidade. A Laura também estava em São Paulo há muito tempo. Enfim, praticamente toda a família morava na cidade.
O ano de 1968 foi de muita agitação, porque foi o ano que mais preocupou a ditadura militar, culminando com a edição do AI-5.
Nessa época, eu estudava num colégio particular chamado Alfredo Pucca. Nós morávamos na Bela Vista, eu ia a pé para a escola. Na volta da escola, minha mãe se preocupava porque ficava sabendo pelos meus irmãos que haveria passeatas, coisa e tal. Às vezes eu me atrasava e já era motivo de preocupação para ela. Antes das passeatas, normalmente o Lúcio, o Jaime, Maria Lúcia, todos se reuniam em casa. Outros militantes do PCdoB também se reuniam e saíam dali já para as manifestações.
Fui tomando consciência política naquela época. Passava pela cidade e via escrito, “pelego”. Para uma criança de 12 anos de idade, o que significaria pelego? Ou mesmo, “abaixo o imperialismo”, “abaixo MEC-USAID”. Eram preocupações de uma criança de 12 anos que começava a querer saber o que aquilo representava. Com 12 anos comecei a aprender coisas que a população não sabia. Se pichava aquilo, mas talvez o povão não estivesse nem tendo a consciência do que estava escrito ali. Aquelas frases todas e tal.
Na escola, nós tínhamos aquelas aulas de Educação Moral e Cívica, que eram um horror. Para alguém que mesmo adolescente, mas que já tivesse uma certa consciência política, era insuportável assistir uma aula onde a professora dizia que não ter direito de votar para Presidente era certo. Que a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos estavam lá só para ajudar.
Eu era muito contestador, me destacava em relação aos outros alunos. Lembro-me de uma vez que estava estudando lá no Liceu Noroeste, em Bauru, e foi um advogado mais um outro cara que eu não sei o que fazia lá, mas ele foi assim, entrou de sala em sala alertando contra o terrorismo, contra a subversão e coisa e tal. E senti aquilo como um certo alerta para mim porque eu batia de frente ali com alguns professores.
Lembro-me de ter feito algumas discussões com o Jaime sobre imperialismo. Foi um momento que me abriu bem a cabeça. Eles traziam da USP um livrinho que chamava Um dia na vida do Brasilino, que contava a história de como era a exploração das indústrias no país, como era a vida do Brasilino. E depois, mais à frente, voltamos para o interior. Morreu uma irmã da minha mãe e tinha uma avó que morava com essa irmã. Então minha mãe resolveu voltar para Bauru para ficar cuidando da minha avó. E logo em seguida, em 1970, meus irmãos já estavam se preparando para ir para Guerrilha do Araguaia. Teve também o momento da prisão do Jaime, em 1968.
Antes de voltarmos para Bauru, o Jaime participou do Congresso de Ibiúna e foi preso. Como tinha estudantes de diversas localidades do Brasil, muitas mães vieram para São Paulo e formaram um comitê visando a libertação dos presos políticos. Eu fui em duas ou três dessas reuniões. Eu estava sempre junto a minha mãe, e depois nós fomos até a porta do presídio Tiradentes para ver se tinha alguma novidade, se víamos o Jaime.
Dava para vê-los lá, bem de longe, o pessoal acenando com a mão, por entre aquelas grades. Até que veio um sujeito, era um tira, veio lá querer conversar com a minha mãe, querer saber quem éramos. Eu puxei minha mãe pelo braço e disse: “Olha, não conversa com esse sujeito, não, que esse aí é da polícia”. E era mesmo. O sujeito era um araponga.
Quando o Jaime saiu do presídio Tiradentes, passou em casa e depois foi para Itajubá. Chegando lá, ficou sabendo pelos vizinhos que o Exército tinha estado na casa em que ele morava e vasculhado tudo. Estavam à procura dele. Já havia um mandado de segurança do Exército para que ele comparecesse lá e prestasse depoimentos. Mas ele não foi, porque naquela ocasião quem ia para esse tipo de interrogatório já era para ir para a tortura mesmo. Então o Jaime ficou escondido lá em Itajubá em um sítio do pai da Regilena, que era esposa dele. Fiquei com ele umas duas semanas mais ou menos. Até me lembro bem que teve uma noite que os cachorros latiram bastante. O Jaime pegou uma espingarda e já ficou meio de prontidão. Mas não era nada.
Depois, o Jaime passou a trabalhar como eletricista no norte de Goiás e de lá seguiu para São Paulo. Depois ele foi para o Araguaia, nós não tivemos mais contato com ele. O último que eu vi foi o Lúcio. Ele foi para Bauru em 1971 mais ou menos, e deixou comigo um livro de Lenin que chamava Cultura e Revolução Cultural, um livrinho do Manifesto Comunista e alguns exemplares do jornal A Classe Operária. Eu também tinha um pôster bem grande que era de um Vietcong com um fuzil nas costas. Eu acompanhei o Lúcio até a estação rodoviária. Me despedi dele e nunca mais o vi. Ele falou que voltaria para me buscar um dia. “Fica aí cuidando da mãe, mas um dia eu volto para te buscar”. Nessa época, eu já estava com uns 14 anos, mais ou menos.
Nós não sabíamos que eles estavam no Araguaia, não sabíamos onde eles estavam. Eles foram para lá entre 1970 e 1971, mais ou menos. E foi no começo da luta da Anistia, em 1977, que nós ficamos sabendo que a Maria Lúcia tinha morrido e que eles tinham ido para essa região. A Laura ficou sabendo antes, mas acho que guardou isso também para não causar um impacto muito forte na minha mãe, que tinha tido um pré-derrame, um AVC e ficado com uma paralisia facial. E acho que a Laura quis poupá-la. Ela já tinha uma preocupação, sabia que os filhos tinham ido embora, mas não sabia para onde e nem o que estava acontecendo. Foram praticamente seis anos sem notícia deles. Aí chegou um ponto que a Laura tinha que contar alguma coisa, porque os noticiários já iam começar a publicar e não ia mais ter como guardar esse segredo.
[Neste instante, a irmã, Laura Petit, interrompe e diz:]
Eu realmente não contei, primeiro por causa da saúde frágil da minha mãe e porque o Clóvis ainda era um adolescente. E eu fiquei temendo que em um ato de desespero a minha mãe saísse procurando, indo justamente nos locais em que não deveria ir. Ir em uma delegacia, querer saber dos filhos.
E por questão de segurança também. Eu acreditava que a ditadura ou o SNI ainda não tivesse os nomes de quem estaria na guerrilha, que se fôssemos procurá-los seria entregá-los para a polícia, para a ditadura.
Quando a Rede Globo, em 1996, publicou uma relação dos militantes que teriam ido ao Araguaia, na lista tinha até o vice-governador de São Paulo, o Aloysio Nunes. Então eles não sabiam exatamente quem estava no Araguaia. Apesar de ter sido muito duro para mim quando eu soube da morte da Maria Lúcia, eu não podia contar nem para minha mãe, nem para o meu irmão.
E foi muito difícil porque, já na época da anistia, quando o Clóvis ficou sabendo, ele era um adolescente, ficou muito revoltado e queria vingança sim. Dissemos para ele: “Não, você tem que se engajar em uma luta política”. E foi providencial estar surgindo o Comitê Brasileiro de Anistia, CBAs, os movimentos pela anistia. E toda essa raiva do Clóvis, essa revolta, foi direcionada para a anistia, para o movimento político. Porque a primeira coisa que ele falou foi “Vou vingar a morte da Maria Lúcia, vou por veneno na caixa d’água de um quartel, eu vou fazer isso, eu vou fazer aquilo”. Quando ele conta como adquiriu consciência aos 12 anos, fora o Lúcio, o Jaime, que já tinham militância política, a Maria Lúcia era quase uma segunda mãe para ele. Ela que via as lições dele, ela que explicava o que era o imperialismo, o que eram os royalties que o Brasiliano pagava etc.. E como foram os dois caçulas que ficaram com a minha mãe, a perda foi imensa para ele.
A Dodora [Maria Auxiliadora da Cunha Arantes] levou o comitê do CBA para Bauru. Fizeram até um dossiê dos perseguidos, dos ferroviários perseguidos da cidade de Bauru.
Lá na Corte [Interamericana de Direitos Humanos da OEA] na Costa Rica, nós familiares também somos considerados vítimas porque tínhamos o direito a uma integridade pessoal, familiar, que foi duramente atingida. Nós nunca nos pensamos como vítima e nós sofremos. A nossa família se desintegrou. A minha mãe poderia ter tido muitos netos, pois teve cinco filhos. E os meus filhos perguntam coisas assim, “Por que é que eu não tenho tios, por que é que eu não tenho primos?”.
Tem uma coisa que eu acho que foi muito dura e eu só pude perceber mais tarde. Quando o Lúcio foi lá se despedir da minha mãe porque ia para Guerrilha e disse para o Clóvis: “Olha, você agora já está ficando mocinho, então você cuida da mãe”. Porque eu já era casada e estava em São Paulo. E quando a minha mãe faleceu, o Clóvis sentiu muito, como eu, a perda dela; e ele dizia assim: “Será que eu cuidei direito da minha mãe como o Lúcio me pediu?” Então também foi uma carga muito difícil para ele, porque foi o único que restou para dar suporte para ela na velhice, além de mim.
Como a Laura disse, quando eu fiquei sabendo da morte da Maria Lúcia, fiquei muito revoltado. Ainda passei por um período de esperança de que algum deles estivesse vivo, ou o Jaime, ou o Lúcio. Imaginávamos, “Eles podem ter fugido, podem estar em uma área mais reservada junto com alguma colônia de pescador”. Falava-se de um padre da época da guerrilha, que mora lá isolado com não sei quem. Quer dizer, a gente acabava nutrindo esse tipo de esperança.
Eu passei por esse momento de revolta e vou dizer que não acabou. Tenho revolta ainda hoje. E muita. Principalmente quando vemos como essa política está sendo desenvolvida, dissimulada, de não enfrentar a questão da punição aos torturadores, aos assassinos. Estão todos aí na máquina pública. Quando o poder atual diz “Isso é só questão da justiça”, estou esperando que o STF julgue a questão da anistia, que o Judiciário faça as punições e o Executivo fica aguardando, esperando que a justiça tome as suas providências. Não é bem assim.
A Constituição Federal é clara quando toca no princípio da moralidade pública. Então, esse Governo que está aí da Dilma Rousseff, hoje tenho críticas severas ao PT, ele decepcionou claramente na questão da política de direitos humanos no país. O PT é um partido que eu também ajudei a fundar ali nos seus pilares. Lá em Bauru a gente estava fazendo a luta da anistia e eu ajudei a criar o PT, quando este ainda era Comissão provisória.
A moralidade pública, que é um princípio que está na Constituição Federal, ela diz que quando alguém passa em um concurso público, qualquer cidadão, para qualquer cargo, é feito uma checagem da vida pregressa dessa pessoa para saber se ele pode ser empossado ou não em um cargo público. Mas, no entanto, temos torturadores, assassinos, que cometeram crimes hediondos, massacraram, cometeram crimes de lesa-humanidade e estão na máquina pública, no poder, descumprindo esse princípio constitucional. E na sentença da Corte Interamericana está dito claramente que esse governo deve excluir da máquina pública todas essas pessoas. Quer dizer, até hoje nem sequer esse probleminha, que seria um problema administrativo, um problema de moralidade, nem isso se cumpre, quanto mais a justiça.
Este governo que está aí já era para ter varrido essa camarilha de canalhas, de pessoas criminosas que estão sendo pagas com o dinheiro público. Eu fico revoltadíssimo com a impunidade, com a falta de decência, de respeito. Quando você entra com um processo na justiça, ele é negado. Quer dizer, precisa-se primeiro tentar mudar a Lei da Anistia. O parágrafo primeiro da Lei da Anistia fala dos crimes conexos, mas no direito, crime conexo não significa o que a parte contrária fez. Crime conexo é uma conexão de crimes. A pessoa para cometer um ato comete outro e outro. Existe uma conexão. Então deturparam e pegaram carona na Lei da Anistia. É uma coisa também imoral. É uma coisa que é um sarcasmo. Na Lei da Anistia não tem um artigo sequer que fale sobre torturador, sobre quem cometeu crime de tortura, de lesa-humanidade. São artigos que foram feitos para resguardar direitos de pessoas que estavam vindo do exílio ou que estavam sendo tiradas das prisões e que não têm nada a ver com os torturadores.
[Neste instante, a irmã, Laura Petit, interrompe e diz:]
Eu só queria fazer uma observação. Essa tem sido uma luta solitária, porque, por exemplo, do Araguaia, os dois únicos desaparecidos encontrados foi através dos familiares que tiveram o apoio da Comissão de Justiça e Paz, a Comissão de familiares, que foram ao Araguaia em 1991 e em 1996 e encontraram [os restos mortais] da Maria Lúcia e do Bergson [Gurjão Farias]. E mesmo depois que nós tivemos na Justiça brasileira, transitado e julgado um processo que durou 25 anos, nós ganhamos a ação. A juíza foi favorável aos familiares, mas até hoje nós não tivemos a sentença cumprida dentro do país. Quer dizer, não se encontraram os corpos dos setenta militantes e camponeses do Araguaia. Não foram ouvidos os militares para esclarecer as circunstâncias de mortes. Quando a juíza chama, eles se negam a prestar as informações. Os arquivos continuam secretos tais quais os da Guerra do Paraguai e a gente não sabe quando essa verdade vai surgir. Nós recorremos ao direito internacional e fomos vitoriosos lá. Há dois anos, vamos completar já três, e até hoje a sentença não foi cumprida. Quando é que o Estado brasileiro vai, depois de tanta luta dos familiares, quando é que o Estado brasileiro vai nos devolver os corpos? Porque até hoje a gente está como lá em 1979, na anistia. Onde estão? Queremos saber os responsáveis. Queremos justiça.
Sobre o sentimento de não ter encontrado [os corpos dos irmãos], não tem nem o que falar. Isso é muito difícil. Minha mãe sempre teve essa esperança de encontrar os filhos. Ela conseguiu enterrar a Maria Lúcia e dizia que esperava até antes de morrer também enterrar o Lúcio, o Jaime. Ela tinha essa esperança de que ainda fosse conseguir isso. Mas ela se foi, talvez a gente se vá também. Quando comecei essa luta eu era adolescente e já estou de cabelo branco. A gente vai envelhecendo, mas enquanto tiver uma bengalinha, se pudermos dar uma bengalada, daremos.
Em 1991, familiares de mortos e desaparecidos do Araguaia, com membros da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e a equipe de legistas da Unicamp, estiveram no cemitério da cidade de Xambioá, em Goiás (atual Tocantins), onde exumaram duas ossadas. Uma de um velho, negro, provavelmente Francisco Manoel Chaves (desaparecido na Guerrilha do Araguaia) e outra, de uma mulher jovem enrolada num pedaço de pára-quedas, que poderia ser Maria Lúcia. Esses restos mortais foram encaminhados à Unicamp.
Em entrevista à imprensa, Badan Palhares, então Chefe do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, afirmou que os restos mortais eram certamente de uma guerrilheira. Mas ao chegar a São Paulo mudou de ideia e passou a dizer que a ossada pertenceria à filha de um dentista que atuava na área, que teria sido morta por não atender à ordem de prisão de uma patrulha. Cinco anos depois, o mesmo legista foi obrigado, pelos fatos, a examinar e reconhecer essa ossada.
Em 28 de abril de 1996, o jornal O Globo iniciou uma série de reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia, quando publicou fotos de guerrilheiros presos e mortos entregues anonimamente ao jornal por um militar que participou da repressão política durante a ditadura. Entre as fotos, a família conseguiu identificar Maria Lúcia morta, embrulhada em um pedaço de pára-quedas e a cabeça envolta em plástico. A foto apresentava detalhes idênticos aos da ossada encontrada em Xambioá e foi encaminhada ao Departamento de Medicina Legal da Unicamp, em 30 de abril de 1996.O exame da arcada dentária feito pelos dentistas que a atenderam em 1967, além do depoimento descritivo das circunstâncias da morte feito por seus companheiros e a comparação da foto publicada com os despojos encontrados em 1991, possibilitaram a identificação de Maria Lúcia em 15 de maio de 1996.
Em 15 de junho de 1996, houve um culto ecumênico e vigília em sua homenagem na Câmara Municipal de São Paulo. No dia seguinte, seus restos mortais foram traslados para o cemitério de Bauru (SP), com a presença de sua mãe, Julieta Petit da Silva.
Em 1965, ingressou no Instituto Eletrotécnico de Engenharia da Faculdade Federal de Itajubá e trabalhou como professor de Matemática e Física nos colégios de Itajubá e Brazópolis (MG). Em Itajubá se casou.Participava ativamente do movimento estudantil. Em 1968, foi eleito presidente do diretório acadêmico. Nesse mesmo ano, em outubro, participou do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, quando foi preso.Condenado à revelia em 1969, foi obrigado a abandonar o curso de Engenharia e ir viver clandestinamente no interior. Posteriormente, mudou-se para a localidade de Caianos, no Sudeste do Pará, onde já residiam seus irmãos Lúcio e Maria Lúcia, também desaparecidos durante a guerrilha, integrando-se ao Destacamento B das Forças Guerrilheiras do Araguaia. Sobre Jaime, o relatório do Ministério do Exército, encaminhado ao ministro da Justiça Maurício Corrêa, em 1993, diz que “[…] existe registro de sua morte em 22 de dezembro de 1973”, sem especificar as circunstâncias e o local de sepultamento. De acordo com o relatório do Ministério da Marinha, também de 1993, ele foi “[…] morto em 22 de dezembro de 1973”.