Quero contar um pouco a história do Samuel.
Ele era do Rio de Janeiro, foi criado pela mãe, tinha irmãs mais velhas. A mãe saía para trabalhar, as irmãs também. Ele ficava sozinho, brincando pelo cemitério do bairro onde morava. Ficava na rua. Minha avó, que sempre criou várias crianças, foi passar um tempo lá no Rio de Janeiro e conheceu essa criança na rua. Ela foi à casa da mãe e pediu para cuidar dele. A mãe deixou. Aí quando a vó retornou para São Paulo trouxe o Samuel junto.
Ele passou por toda a nossa história, foi de aparelho em aparelho, foi para o Vale do Ribeira. Além da dor psicológica que a gente sofreu, ele passou por tortura física. Fomos para Cuba e quando o tio Neto voltou, resgatou a identidade do Samuel, que na volta, foi procurar a família biológica e começou a resgatar a história dele. Reencontrou a mãe e teve condições de ter o nome dela no registro. Quando saiu do Brasil, usava o nome da vó, Samuel Dias de Oliveira, até porque todo mundo saiu sem documento.Ele só teve condições de ter registro de nascimento quando voltou, porque foi com a mãe [biológica] ao cartório e se registrou. Hoje, ele se chama Samuel Ferreira, que é o sobrenome da mãe. Porque na época em que se registrou no Brasil, o pai já tinha falecido.
Em 2009, 2010, quando foi julgado o nosso processo em Brasília, fui defender o processo do Samuel que, quando entrou com um processo de anistia, apresentou o nome de Samuel Ferreira. E aí existia um conflito, porque todos os documentos que juntávamos era de Samuel Dias de Oliveira.
Eu costumo falar para o Samuel que tenho mais carinho e cuidado por ele do que tenho pelo meu próprio irmão de sangue. Ele me ligava e falava: “Você é a única irmã que eu tenho, a minha família de sangue aqui não quer saber de mim. Eles não me procuram, eu não tenho contato com eles”.Na semana passada eu falei com ele, para vir aqui dar depoimento, que para ele é importante falar. “Vai, vai ser bom, você fala muito poucas vezes sobre isso”. Dizem que quando a gente solta, vai tirando um pouco de cima. Eu, quando faço isso que estou fazendo hoje [testemunhando], o resto do dia fico como se tivesse passado um trator em cima de mim. Já o Ernesto dorme até três dias seguidos.
Mas realmente ele não quer falar. Ele disse: “Eu não quero, tenho que trabalhar. Aqui ninguém conhece a minha história, aqui eles não conhecem de onde eu vim, para onde eu fui, quem eu fui, quem eu sou, nada. E eu não quero que saibam, não quero, não quero”. Eu acho que ele não quer falar.
Hoje o Samuel é uma pessoa super retraída. Nós que somos irmãos dele, que nos criamos com ele, sentimos a diferença dele antes de Cuba e em Cuba. Lá foi o período em que ficou mais descontraído, mais à vontade. Depois que voltou, a gente percebe que ele tem um bloqueio muito grande.
Para mim, é muito doloroso contar e lembrar da minha história. Mas eu faço pela importância. Acho que esses fatos que aconteceram têm que ser revelados, falados. Quero parabenizar o trabalho da Comissão porque são coisas que precisam ser faladas, abertas, jogadas ao mundo.
Eu me orgulho de ter esta história, de ter, de certa forma, participado de tudo isso. E também é a única história que eu conheço, o único jeito de vida que conheço. Para mim, é tão natural ter esta história e ter passado por tudo isso. Não é que eu goste de falar, há uma necessidade de se falar, a necessidade de gritar ao mundo. Aconteceu isso sim, aconteceram essas barbaridades sim, de matarem pai de família, de matarem mães de família, aconteceu de crianças realmente serem taxadas de terroristas, como se a gente fosse perigo para a sociedade. Crianças foram torturadas de fato, isso aconteceu no Brasil, na América Latina e não pode voltar a acontecer.
Nenhum ser humano tem o poder de torturar, de acabar com a vida de outro ser humano. Em nome de quê? Por isso que eu acho importante e por isso que eu vim hoje. Porque eu quero que amanhã meu filho saiba direito o que aconteceu. Ele tem 9 anos de idade. Quando as crianças são pequenas, o que ensinamos a elas? Que se você rouba, é preso. Se mata, é preso. Um dia, estávamos eu e o tio Manoel no carro, conversando e falando: “Sabe fulano, que esteve preso com cicrano, com a Vó, não sei o quê”? Aí meu filho olhou para mim e perguntou: “Você já foi presa? O tio já foi preso? A bisa já foi presa?” O menino levou um susto.
Hoje em dia eu explico porque fomos presos. E ele fala: “Na época da guerra, né mãe?” Mas isso tem que ser corriqueiro nas escolas porque realmente essa é a história do Brasil, isso aconteceu de fato, é a história da gente.
Apesar de todo o sofrimento, dou graças a Deus de ter saído do Brasil na época, de ter sido banida do Brasil, ao invés de ter que ficar aqui como aconteceu com muitos, com pai preso, mãe presa, e eles nas escolas sofrendo o que hoje se chama bullying, sendo discriminados e sofrendo o que sofreram na escola.
Eu pelo menos não passei por isso. Fui para um país onde pude ter o resto da minha infância em paz e não ter essa vida massacrada e sendo seguida o tempo todo como aconteceu com várias crianças que ficaram aqui.
A vó faleceu há dez anos, em oito de março de 2003. Ela tinha um registro de nascimento que constava como data de nascimento o dia 2 de novembro. Então eu costumo falar que minha vó nasceu no dia dos finados e faleceu no Dia Internacional da Mulher, oito de março. Ela teve câncer de útero. Acho que ela faleceu com 93 anos. Não temos certeza da idade, porque havia uma confusão de data.
Juntamente com os netos, viveu no sítio em que Lamarca realizava treinamentos militares, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Uma de suas missões era fazer a casa principal parecer levar uma vida “normal”. A outra era costurar os uniformes usados nos treinamentos.
Tercina foi presa em Jacupiranga, interior do estado, com três das quatro crianças. Em 1979, foi uma dos 40 militantes trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Hollenben, sequestrados em junho de 1970.
Banida, Tercina seguiu da Argélia para Cuba com três netos e um dos filhos de criação: Samuel Dias de Oliveira, Luis Carlos Max do Nascimento, Zuleide Aparecida do Nascimento e Ernesto Carlos do Nascimento. Retorna ao Brasil em 1986 com Zuleide, Luis Carlos e Ernesto. Samuel voltou em 1982.
Antes de ajudar a criar a VPR, Manoel era líder sindical filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entrou na clandestinidade em 1968, após ter a prisão decretada. Incentivou a mãe, Tercina Dias de Oliveira, a também contribuir para a VPR. Sua tarefa era organizar a guerrilha em São Paulo (SP). Foi preso em maio de 1970, quando cobria um ponto para passar informações a companheiros. No mesmo dia, mais tarde, a companheira Jovelina e o filho Ernesto foram presos na casa da família no bairro de Vila Formosa.
Jovelina trabalhava na prefeitura de Osasco (SP) e foi demitida durante a licença maternidade por causa da militância do marido. Depois de passar pela Operação Bandeirantes (OBAN) e pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi com o filho para a ala feminina do Presídio Tiradentes.
Em fevereiro de 1971, Manoel e Jovelina foram dois dos 70 presos políticos que tiveram a liberdade trocada pela do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, sequestrado por militantes de resistência à ditadura. Exilaram-se no Chile. Na ocasião, contaram o que tinha acontecido com eles para os cineastas estadunidenses Haskell Wexler e Saul Landau, cujo documentário Brasil, um relato da tortura tornou-se uma das primeiras denúncias internacionais dos abusos cometidos pelo regime.
“Antes de eu descer do pau de arara, minha companheira chegou com meu filho. Este filho assistiu a parte da tortura. Em seguida, puseram minha companheira no pau de arara, tomando choque em todas as partes do corpo, inclusive nas partes íntimas. Na minha presença. Só para eu falar alguma coisa”, relatou Manoel. Chorando muito, Jovelina testemunhou: “Ele [o filho Ernesto] dizia: ‘Não pode bater no papai. Não pode’. Para mim foi muito duro. Batiam muito em mim, mas não me perguntavam nada porque sabiam que eu não tinha participação nenhuma”.
Em 15 de agosto de 1971, o casal chegou a Cuba, onde reencontraram Ernesto. Jovelina, então, foi à Coreia do Norte fazer treinamento de técnicas de guerrilha. Em 1972, ela e Manoel voltam ao Chile para se prepararem a retomada das atividades guerrilheiras no Brasil.
Em setembro de 1973, com o golpe contra Salvador Allende, os dois foram presos no Estádio Nacional. O casal conseguiu fugir e se abrigar num refúgio da ONU, de onde seguiram para Cuba novamente.
Lá, Jovelina fez curso de enfermagem. Ela e o marido voltaram ao Brasil em 1985. Ernesto retorna com Tercina em 1986.