Por Rosalina de Santa Cruz Leite
sobre André de Santa Cruz Leite
Fui presa pela primeira vez em 1971. Fui torturada, conheci o limite humano da dor, da força bruta e da derrota de um sonho e a impotência diante da violência desmedida do Estado terrorista, implantado pela ditadura militar no Brasil. Sofri quase todos os tipos de torturas físicas e psicológicas pelas quais passavam todos os presos políticos na década de 1970. Além de ter passado pela famigerada “geladeira”, a sala escura, o emparedamento que nos fazia perder a noção de tempo e de espaço. Fiquei um ano presa no Rio de Janeiro, na Vila Militar e depois no Presídio Talavera Bruce, em Bangú.
Sai da cadeia em 1973, mudei-me pra São Paulo e pensei que nada pior do que passara poderia me voltar a acontecer. Foi, então, que meu irmão querido, que como eu era militante da esquerda, estudante e socialista, Fernando Santa Cruz, um dia saiu para cobrir “um ponto”, isto é, um encontro político com um companheiro, Eduardo Collier, da sua organização, a APML (Ação Popular Marxista-Leninista). Era 23 de fevereiro de 1974, Fernando e Eduardo nunca mais voltaram.
A procura que envolveu toda a nossa família para encontrar Fernando, saber as circunstâncias da sua prisão, do seu assassinato e a localização dos seus restos mortais, levou a mim e ao meu companheiro, Geraldo Leite, à nossa segunda prisão, em abril de 1974, agora na Operação Bandeirante (DOI–CODI/SP).
Eu e Geraldo fomos, então, novamente submetidos a torturas como “cadeira do dragão”, “palmatórias” e “pau de arara”. Entretanto, a pior tortura nessa segunda prisão foi o fato de ter um bebê de cinco meses, meu filho André de Santa Cruz Leite, que ficou por três dias em poder dos policiais, trancado no nosso apartamento. A equipe de busca do DOI-CODI montou na nossa casa aparelhos de escuta e ali ficaram nesses três dias para prender quem chegasse ao apartamento. Sem poder mamar e acostumado a ter a mãe por perto, André, segundo a “menina” que cuidava dele, chorava muito e os policiais, irritados, o ameaçavam.
Meu irmão Marcelo Santa Cruz chegou ao apartamento três dias após a nossa prisão, ao tomar conhecimento do ocorrido, intercedeu para que André fosse entregue a um de nossos familiares. Para amedrontar e pressionar Marcelo, os policiais torturadores pegaram o André e ameaçaram jogá-lo pela janela. Logo depois, Marcelo foi levado para a OBAN onde ficou por uma noite preso, levando pontapés e sofrendo ameaças. Ao ser liberado, meu irmão levou uma autorização minha para retirar o André do apartamento. Ao chegar de volta ao apartamento, os policiais já haviam abandonado o local e a “menina” estava de saída levando o André para Minas Gerais onde morava sua família. Ela contou que ao desocuparem o apartamento, pouco antes do Marcelo chegar, eles disseram que ela poderia levar o nosso filho, pois nós éramos “bandidos e terroristas” e não voltaríamos mais para rever a criança.
Na OBAN, compartilhei com as companheiras, entre elas Nádia Lúcia do Nascimento, que havia sofrido um aborto sob tortura, o desespero de não saber o que estava acontecendo com o meu bebê. O fato de ter suspendido abruptamente a amamentação fazia com que eu sentisse muitas dores nos seios, o que não me deixava ficar nem um minuto sem sentir a falta física de meu filho.
As crianças da minha família sofreram as consequências dos terríveis momentos de perdas, de pressão e ameaças que passaram, cada uma de forma muito diferente entre si. O André, meu filho que nasceu dez meses depois da saída da minha primeira prisão, e que tinha quatro meses quando Fernando desapareceu, foi desde a gestação muito marcado pela nossa aflição e medos, buscas e ausências durante seu primeiro ano de vida.
A Alexandra, filha da minha irmã Elzita de Santa Cruz Pimenta, desenvolveu desde cedo fobia social e síndrome de pânico que não a tem permitido trabalhar. Já André tornou-se uma criança e um jovem muito marcado pelo que passou nesses anos terríveis de nossas vidas. Por tudo isso, desenvolveu uma dependência química que o levou a internações e a muito sofrimento psíquico.
Já o Felipe [Santa Cruz], filho de meu irmão Fernando, até hoje não conhece as circunstâncias do desaparecimento e assassinato de seu pai. Ele viveu anos da sua infância em busca de uma explicação para o fato do pai, tão amoroso e presente na sua vida, ter “sumido” assim “de repente” e nunca mais ter voltado. Felipe é hoje presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, mas tem muitas sequelas emocionais, todas fruto da dor que sentiu pela perda do pai.
André, Alexandra e Felipe, eles não lembram desses momentos, mas cada um teve um modo de se defender de experiência cruel que atingiu diretamente seus pais e a eles, cujo crime maior era o de ser nossos filhos. Hoje, cada um a seu modo, luta por um mundo justo e solidário e são pessoas dignas, que se orgulham de ser e fazer parte de uma família de resistentes.
(Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, aos 11 anos de idade)
Todo mundo podia pensar que eu escreveria uma carta triste. Mas não. Eu escreverei uma carta dizendo tudo o que acho. Eu tenho uma ideia de como era meu pai, devia ser um homem que lutava contra a ditadura militar do presidente Médici que foi uma das que mais teve repressão e morreu como muitos outros que tentaram o mesmo.
Eu tenho uma vida feliz, mas ele está na minha cabeça como o meu outro pai. Sabe, minha mãe casou de novo com um homem que eu considero muito meu pai, tanto quanto o outro, pois eu tenho 11 anos e meu pai morreu quando eu tinha dois anos. Hoje moro em Porto Alegre e sou muito feliz. Torço pelo Internacional e faço muitas coisas como jogar na escolinha do Bráulio.
E ao fim de tudo eu acho que alguém um dia vai acabar com essa ditadura militar.
Esta carta está publicada no livro Onde está meu filho?
Respondeu a Inquérito Policial Militar (IPM) no Rio de Janeiro, tendo sido julgada e condenada pela Lei de Segurança Nacional a um ano de prisão. Sua segunda detenção foi em São Paulo, em 1974, pela OBAN.
É irmã de Fernando Santa Cruz, preso político desaparecido desde 23 de fevereiro de 1974. Foi militante do movimento pela Anistia, uma das fundadoras da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Participou do Movimento de Mulheres. Foi Secretária Municipal da Assistência Social do governo Luiza Erundina. Atualmente é membro da Comissão da Verdade da PUC/SP, onde é professora do curso de Serviço Social desde 1980.
Era casado com Ana Lúcia e tinha um filho: Felipe. Foi preso junto com Eduardo Collier Filho, em 23 de fevereiro de 1974, em Copacabana, no Rio de Janeiro, por agentes do DOI/CODI-RJ. Logo em seguida, o apartamento foi invadido pelos órgãos da repressão.
Em 14 de março de 1974, buscando saber do paradeiro de Fernando e Eduardo, as duas famílias foram ao DOI-CODI/SP, cujo carcereiro de plantão, conhecido como “Marechal”, confirmou que os dois jovens estavam presos ali, só podendo receber visitas no domingo, dia 17. Foram deixados, então, para eles, objetos de uso pessoal. Posteriormente, esses objetos foram devolvidos, com a justificativa de que se tratava de um engano, pois os dois não estavam ali.
Parte de seus filhos foi atingido pela ditadura militar, como Marcelo, que foi expulso da faculdade e Rosalina que foi presa e torturada. E por fim Fernando, seu quinto filho, preso e desaparecido em 23 de fevereiro de 1974. Foi a partir do desaparecimento do filho que começou a via-crúcis de dona Elzita a quartéis do Rio de Janeiro, Recife, de São Paulo, de cartas – sem resposta- a autoridades civis e militares.A luta incansável da mãe de Fernando pelo esclarecimento da situação dos desaparecidos políticos no Brasil e por informações do paradeiro de seu filho é retratada no livro Onde está meu filho?
É uma das lutadoras pela anistia e pela democratização do país e hoje, aos 100 anos, segue, ao lado dos filhos, em busca dos restos mortais de Fernando.