Tudo começou em Jundiaí (SP). Nós nascemos lá, meu pai era ferroviário, minha mãe, doméstica. Fomos crianças normais, brincamos na rua, em campos de malha. Enquanto isso, meu pai iniciava nas causas sindicais e socialistas. Fomos crianças que curtimos a mudança para o Rio de Janeiro e continuamos a brincar na rua e passear em Copacabana, para onde nossos pais nos levavam todos os domingos. Enquanto isso, meu pai se destacava na federação dos ferroviários e na greve da classe ferroviária.
Fomos crianças que viajamos pelas praias da Bahia, Pernambuco, ficamos hospedados em casa de frente para o mar enquanto meu pai era ovacionado nos palanques das ruas e praças.
Fomos crianças que vivenciamos o primeiro terror de ter que fugir na madrugada de março em 1964, enquanto meu pai fugia para outros destinos que não o nosso.
Fomos crianças instaladas em casas de estranhos em cidades desconhecidas ao fim da fuga. Fomos crianças separadas em casas de tios diferentes e deles dependentes. Fomos crianças com dificuldades em diferentes escolas naquele ano. Enquanto, por um ano, não conseguimos saber onde estava o nosso pai. E felizes por poder viver com ele novamente após essa ausência assustadora.
Fomos filhos que voltaram a brincar nas várzeas da Lapa de Baixo, mas fomos crianças que tiveram que justificar dezenas de vezes o porquê desses nomes e sobrenomes associados à esquerda. Enquanto meu pai continuava na luta da esquerda brasileira. Fomos pré-adolescentes assustados e horrorizados com a notícia da prisão por quatro anos e tortura de nosso pai. Fomos pré-adolescentes que tivemos que ir ao trabalho mais cedo para sustentar a nossa casa. Paramos de brincar e de viver o fogo da idade. Tivemos que nos policiar no trabalho para não sermos taxados como burgueses, também tinha essa dualidade.
Fomos adolescentes e parceiros do meu pai na formação e campanha do novo partido construído para nós, o PT. Fui namorado de uma única mulher, me apaixonei e com ela casei.
Enquanto meu pai levantava a bandeira do PT e por ela lutou até a posse do seu líder maior.
Fui eleitor do José Dirceu, José Genoino e Lula, enquanto meu pai não conseguiu nenhuma única função de liderança dentro do governo do PT. A vida foi acontecendo. Fui, acredito que sou um bom marido, bom pai e perdi minha mãe. Enquanto meu pai perdeu a esposa, perdeu a oportunidade de ajudar intensivamente o nosso Brasil por não governar, não deixarem ele participar do processo do PT.
Hoje sou um cidadão com 60 anos de idade, perdendo a esperança em ver o que sobrou do meu pai, e o que ele e eu sonhamos de alguma forma para essa vida. Perdi um pouco da infância, um pouco da adolescência, e um pouco da convivência do meu pai. Perdi um pouco de dinheiro que queria ter, um pouco da convivência com os meus irmãos, perdi e perdemos muito. Perdemos partido, perdemos vozes que nos dão a esperança em ação. Perdemos governantes no sentido eficiente da função. Perdemos opção de votos e perdemos os eleitos.
Perdemos o cumprimento das leis e suas punições. Perdemos saúde, gentileza, educação, decência e por aí afora. Mas ganhamos. Ganhei meus filhos, minha esposa, minha moradia,
a vida longa do meu pai. Ganhei meus irmãos e amigos, ganhei consciência, dignidade e honestidade.
Ganho em viver e poder dizer agora que as perdas fazem parte da nossa vida e que futuras gerações de filhos e pais sindicalistas, políticos ou não, de alguma forma, contribuíram para a construção de uma vida melhor. Essa semente sob a forma de tortura, ideal, luta, ou por simplesmente educar seus filhos de forma amorosa foram plantadas por mim, minha esposa, meus irmãos, minha adorada mãe, meu querido pai.
Sou uma célula viva com capacidade de ajudar nas transformações para um mundo feliz.No nosso egoísmo a gente achava que esse amor do meu pai pela luta não vinha para nós, só para os outros. E a gente tinha raiva do meu pai por causa disso aí. Eu principalmente.
O sobrenome Lenin, por exemplo, hoje você vê a estátua do Lenin caída no chão. Que homenagem foi essa? Isso confunde até hoje. Por que derrubaram a estátua do Lenin? Ele merecia isso aí? E eu tive que ficar por vários anos escondendo esse Lenin no meu sobrenome. Eu tive um professor que era sargento que me olhava de uma forma estranha nas aulas de educação física.
Muita coisa se perde. Eu acho que a gente perdeu a adolescência, perdeu muita coisa. Mas a gente idolatra muito meu pai. Apesar de falhas como pai, porque nós somos órfãos com pai, porque o idealismo dele faz com que aconteça isso aí. Prejuízos, a gente teve alguns prejuízos. Trabalhar muito cedo, vida dura, deixar todo o dinheiro em casa até os 23 anos de idade. Você não viver mesmo o fogo da adolescência, a gente sofre um bocado, mas a coisa forte que fica é como eu coloquei. Fica a dignidade, a honestidade, é ter esse exemplo de pai que não tirou um tostão de ninguém. Hoje eu sou uma pessoa feliz. E feliz de estar do lado do velho até hoje, com 89 anos. Sofri mas sou feliz, como diz aquela música.
Faleceu em novembro de 2003, aos 78 anos, quando ia completar 56 anos de casamento com Martinelli. De acordo com Rosa, sua filha, era uma “cozinheira maravilhosa. Quem compartilhou da sua mesa, sabe. Fazia o melhor capeletti in brodo que se tem notícia. O fazia artesanalmente. Sua felicidade era nos ver repetir o prato. Todas as noites, até mesmo quando estava doente, esperava meu pai para colocar a conversa em dia. Ela nasceu para ser mãe, era muito presente e afetiva”. De acordo com Martinelli, a parceria da esposa “foi essencial para minha história como revolucionário”.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa empresa de anilina (Produtos Químicos Sucuri), depois numa vidraria (Santa Marina) e em seguida como ajudante de ferreiro, na empresa de produtos de aço Tupi.
Em 1941, entrou para a Estrada de Ferro São Paulo Railway. Apaixonado por futebol e bom de bola, jogou em times da várzea paulistana até que a ferrovia e a militância ocuparam a maior parte de seu tempo. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde a adolescência, seguindo os passos de seu pai, filia-se ao sindicato dos ferroviários.
Foi dirigente da Federação Nacional dos Ferroviários e um dos mais importantes líderes sindicais do Brasil até 1964. Quando houve o golpe, foi cassado por dez anos. Foi para a clandestinidade e entrou na luta armada.
Junto com Carlos Marighella, foi um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 1970 foi levado à Operação Bandeirantes (OBAN).
Ficou preso durante três anos, três meses e 10 dias.
Hoje é advogado e presidente fundador do Fórum dos Ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo. Tem quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos.