O processo histórico brasileiro da ditadura me conectou à família Lucena de uma forma muito forte. Hoje eu sou uma integrante da família e fico muito honrada. Eu sou Ñasaindy Barrett de Araújo. Já fui Ñasaindy de Oliveira Lucena. Eu tive uma certidão de nascimento que tinha esse nome. E foi com essa certidão que eu vim para o Brasil como se fosse filha legítima da dona Damaris.
Sou filha biológica de Soledad Barrett Viedma e José Maria Ferreira de Araújo. Os meus pais se conheceram em Cuba, onde também nasci. Um ano após meu nascimento, Damaris Oliveira Lucena chegava com sua família em Cuba, no exílio. E foram colocadas na convivência em conjunto, na mesma casa.
Quando eu tinha 1 ano e dois meses, meu pai saiu de Cuba e veio para o Brasil dar continuidade à sua militância, na guerrilha. Dois meses depois, em setembro, ele foi preso e morreu sob tortura.
Minha mãe ficou mais um pouco em Cuba e depois de uns quatro meses, mais ou menos, ou seja, em dezembro do mesmo ano, 1970, ela partiu também para dar seguimento à sua militância. Eu permaneci em Cuba, em companhia da Damaris e dos seus filhos, já bem integrada, porque já morávamos juntos há alguns meses.
Então, a minha mãe seguiu na militância. Isso era fim de 1970. E ela faleceu em 1973, na Chacina da Chácara São Bento, em Pernambuco, naquele conhecido episódio, devido à traição do Cabo Anselmo.
Em Cuba, as notícias chegavam para nós assim: “Morreu, não morreu, desapareceu, foi preso, não foi preso”. Ou seja, a gente não tinha uma verdade definitiva. Não havia corpos. Então, eu fui ficando, ficando, ficando com a Damaris. Ela foi me assumindo como filha, eu fui assumindo ela como mãe, e os filhos dela como os meus irmãos. Essa afetividade foi se compondo e se fortalecendo. E meus pais nunca voltaram.
Eu não me lembro exatamente dos fatos, mas eu sabia que tinha alguma coisa diferente na minha própria condição de criança em Cuba com os outros exilados. A Damaris sempre me disse quem eram os meus pais, mas eu me lembro de um momento em que isso ficou mais visível.
Eu tinha 10 anos quando alguém fez um quadro com fotos dos meus familiares. Acho que foi ali que eu tomei consciência da perda dos meus pais. E a partir daí comecei a sofrer isso com mais força. E também, ao mesmo tempo, desejei saber quem eram eles, como eles eram, onde eles estavam, se estavam vivos ou mortos. Mas, mesmo assim sempre estive muito acolhida com a Damaris, com os irmãos. É a minha família.
E hoje eu continuo convivendo com a minha família, com a Damaris, cada vez mais fortalecendo os nossos laços, que não são fáceis, porque foram muito polêmicos em algumas situações. Por exemplo, como você querer assumir o nome dos seus pais biológicos e, ao mesmo tempo, não rejeitar o nome da sua mãe adotiva. Recuperar a sua identidade não quer dizer que você vá abrir mão de uma identidade que você construiu junto, ao lado dela, como família.
Nossa chegada no Brasil, em 1980, foi cheia de dificuldades. Inclusive a Damaris precisou esticar por mais um ano a permanência dela no exílio, justamente porque não tinha uma solução muito definitiva para o meu caso. Foi uma situação complexa. Eu não era filha legítima, mas também não tinha como dizer que não era filha.
Bom, no final das contas consegui vir para o Brasil, o que para mim foi um choque, para quem viveu em Cuba e conhecia a dignidade martiniana e a ética do respeito ao ser humano. Para quem compreendia alguns valores da vida, da igualdade, da solidariedade.
Quando cheguei ao Brasil, caí na real mesmo do que era ter saído de Cuba. Aí foi bem complicado. Eu tinha 11 anos. E vivi dezesseis anos no país com uma dificuldade enorme de documentação, porque ainda era a ditadura e havia toda uma dificuldade de acessar os órgãos responsáveis pela questão de RG, documento. Então eu fiquei 16 anos clandestina no Brasil, desde a data que chegamos. Só fui adquirir minha identidade com meu nome legítimo em 1996.
São trinta e tantos anos de uma terapia autodidata, feita à base da experiência, de um autorreconhecimento, de autoconhecimento. Eu tenho quatro filhos. Os próprios filhos fazem a gente refletir muitas coisas. Fazem a gente se sentir criança. E eu tenho muito orgulho de ser filha de Soledad Barrett Viedma, de José Maria Ferreira de Araújo e de Damaris Oliveira Lucena. E de ter meus irmãos. Tenho muito a agradecer a eles.
Tudo o que aprendi, a mulher que eu sou hoje, é por causa da Damaris. A Soledad tem a sua força. Foi uma mulher incrível, que cada vez que eu conheço mais, gostaria muito de tê-la conhecido, com certeza. Eu acho que ela tem aspectos muito contemporâneos que foram calados. Ela era uma mulher muito livre. Estudar a Soledad é falar da mulher, do feminismo, da importância da educação. É falar de um monte de coisas.
Mas, no dia a dia, na convivência, na educação, na criação, muitos valores foram transmitidos pela Damaris, pela família. E eu tenho muito a agradecer.
Quanto à questão da Comissão da Verdade, é maravilhoso que esteja acontecendo, que tenham pessoas assistindo, presentes. Que seja, de alguma maneira, replicado. Não existe situação melhor para a gente refletir, inclusive sobre a nossa responsabilidade como testemunhas, como pessoas vivas da experiência.
Tem essa coisa que é incrível: passam os anos e, quando se desperta, de repente encontramos alguém que fez parte daquele momento com você, mas que você não reconheceria na rua. Se não fossem esses momentos, esses encontros, da gente estar se recuperando, se aproximando, dando as mãos… E esse círculo cresce muito. Cada vez mais, na hora que você inclui os netos, os jovens que estão aí hoje e que estão próximos a essa história por nossa via. Isso é muito importante.
Quando a gente pensa na infância, tem a questão da ausência e do exílio, que eu acho que é muito forte. Estar fora da sua pátria, longe dos seus familiares, é uma coisa que marca muito. No caso da Damaris, por exemplo, ela tinha ainda um filho que estava preso, que é o Ariston. A segurança dele estava sempre em risco, sempre tinha essa preocupação, como ele estaria vivendo, o que ele estaria vivendo dentro da prisão. Já se sabia de tantas barbaridades.
Essa coisa dela com o filho, essa preocupação, de como ele estaria, isso permeou a minha infância. E a ausência dos meus pais biológicos, legítimos, ficou muito presente quando eu tomei consciência disso. Isso passando pelos conflitos, de todo um processo de questionamento das escolhas deles, a experiência histórica. Eu não tive essa consciência, essa memória que a Telma [Telma Lucena, irmã adotiva] tem. Ela era tão jovem e lembra como tudo foi. Ela é uma pessoa que tem uma dimensão, um nível de consciência e de memória muito aflorado.
Eu não. Eu fui diferente. Eu, conscientemente, não tenho nenhuma lembrança. Nem de estar com meu pai e nem com a minha mãe. Mas, nos meus processos terapêuticos, vamos dizer assim, tive oportunidade sim de me encontrar com o que seria o momento de despedida da minha mãe. E, pelo que parece, não sei se é memória ou inventado – porque chega uma hora que você não consegue mais saber identificar muito bem –, nesse momento eu escolhi morrer. No momento em que perdi a minha mãe ou na minha despedida, quando eu soube que eu não veria mais a minha mãe, mesmo estando no colo de uma pessoa que eu já amava, eu queria morrer. E isso eu fiquei sabendo depois. E durante toda a minha vida, e talvez ainda até hoje seja ainda o que eu ainda quero. Então é muito difícil para a gente lidar.
E tem a forma como ela foi assassinada, todo esse cenário, isso tudo também, de alguma forma, faz a gente tocar nessa questão da violência. É muito forte.
Eu tenho certeza e costumo dizer que eu não tive infância. Eu sempre fui uma pessoa isolada. Brinquei um pouco, mas não o quanto poderia, vamos dizer assim. Sempre me vi, na fase da adolescência, como um extraterrestre, totalmente distanciada, muito solitária. Muito, muito, muito mesmo. Eu vivia em um mundo totalmente à parte.
Então, realmente, acredito que filhos [de perseguidos, desaparecidos e assassinados pela ditadura] vivenciaram uma dificuldade de adaptação, de identidade, de autoconhecimento.
Estamos meio atrasados na vida. De alguma forma ou de outra você se atrasou. Eu pelo menos me considero muito atrasada. Eu me formei faz dois anos.
E, ao mesmo tempo a gente vê que a maioria das pessoas está de alguma forma engajada, comprometida com a sociedade. E, nós, com certeza, fazemos questão de dar continuidade a essa luta dos nossos pais. Isso é uma coisa, é um comprometimento e, mais do que isso, é uma coisa que está dentro da gente. Pelo menos dentro de mim. O meu caminho, a escolha principal é a educação, com certeza. Educação é, a princípio, um grande caminho. Mesmo assim pode ser bem desvirtuado. Mas, é muito importante que nós não deixemos de atuar, que a gente sempre se coloque, se posicione, diante de todas as situações. Que mantenha esse caráter ético constante de fazer a sua ação a sua palavra, a sua palavra a sua ação.
Preso em 23 de setembro de 1970 pelo DOI-CODI/SP e levado às câmaras de tortura, morreu em consequência das mesmas. Vários presos políticos testemunharam as torturas a que foi submetido e sua morte, segundo denúncia feita pelos presos políticos de São Paulo enviada à CNBB, em fevereiro de 1973, encontrada nos arquivos do DOPS/SP. Seu nome constava como Edson Cabral Sardinha, pois a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos não tinha contato com seus familiares.
Com o nome de Edson Cabral Sardinha, sua morte foi denunciada na carta escrita pelos presos políticos do Presídio do Barro Branco encaminhada ao presidente da OAB, Dr. Caio Mário da Silva Pereira, em 25 de outubro de 1975, segundo a qual “foi assassinado pela equipe do capitão Benoni de Arruda Albernaz”.
Seu paradeiro foi descoberto por meio de pesquisas realizadas nos arquivos do IML/SP pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, onde constava ter sido enterrado com o nome falso de Edson Cabral Sardinha na quadra 11, sepultura 119, do Cemitério de Vila Formosa I. No laudo necroscópico, o nome de Edson Cabral Sardinha está identificado por um T em vermelho (de “terrorista”), recurso utilizado pelos órgãos de segurança para diferenciar os corpos dos ativistas políticos dos demais que por lá passavam. Somente com a abertura da vala clandestina do cemitério D. Bosco, de Perus, na cidade de São Paulo, em 1990, seu verdadeiro nome foi divulgado e seus familiares localizados. José Maria conheceu Soledad Barrett Viedma em Cuba, onde realizou treinamento de guerrilha quando era militante do MNR. Soledad foi assassinada em janeiro de 1973, em Pernambuco, junto com outros companheiros delatados pelo Cabo Anselmo – José Anselmo dos Santos –, um agente dos órgãos de segurança infiltrado nas organizações de esquerda.