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TOMO I

Tomo I

Violações aos Direitos
dos Povos Indígenas
Imagem de capa do livro “A Política de Genocídio Contra os Índios do Brasil" (Associação de ex-presos políticos antifacistas - AEPPA, 1974, Arquivo Nacional)

O passado da questão indígena no Brasil é um passado de genocídio

Esta página é um resumo. faça o download do capítulo completoO Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou em 8.350 índios mortos durante a ditadura militar, destacando que se tratava de um levantamento parcial, que não conseguiu levar em consideração todos os povos afetados. Esse dado, que traduz gravíssimas violações de direitos humanos, é mais um dos que afastam o mito de que a ditadura militar teria sido branda. Ele reflete um período em que, paradoxalmente, foi aprovada uma legislação, o Estatuto do Índio, e criada uma instituição, a Funai (Fundação Nacional do Índio), com o alegado intuito original de proteger os povos indígenas.

O Estatuto (Lei no 6001, de 19 de dezembro de 1973) foi seguidamente violado, no entanto, inclusive pela própria Funai (instituída a partir da Lei no 5371, de 5 de dezembro de 1967), que foi militarizada e se tornou um instrumento para graves violações de direitos humanos, alegadamente em nome de “integração” do índio à sociedade brasileira.

Índios na cidade de São Paulo, publicação da Comissão Pró-índio de São Paulo, traz um panorama dos desafios enfrentados pela população indígena no município Importante documento de 1974, “A política de genocídio contra os índios do Brasil”, apontava o cunho integracionista do Estatuto do Índio, de 1973, sancionado por Médici, e do governo Geisel, cujo Ministro do Interior, Maurício Rangel Reis, afirmava se faria o que se chamava de integração do índio à sociedade brasileira o mais rápido possível. A Funai estava subordinada a esse ministério, que coordenava políticas de colonização da Amazônia, de interesses frontalmente contrários aos dos povos indígenas.

Os povos indígenas têm consciência do massacre que sofreram. Karai Popygua (ou, em seu “nome de branco”, David Martim), Guarani Mbyá da Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo no lançamento da campanha Índio é Nós, em abril de 2014, ressaltou que: “Na ditadura, quem mais morreu não foram os ativistas, os jovens universitários que estavam lutando pela liberdade do país. Foram os indígenas. Então essa situação muito revolta a gente. [...] As pessoas não conseguem ver a gente como povo originário e que tem uma resistência.” É necessário combater essa invisibilidade.

Campanha Índio é Nós
Fala de Karai Popygua (ou David Martim, seu “nome de branco") no lançamento da campanha

As denúncias recebidas nas audiências da CEV "Rubens Paiva", assim como as outras deste relatório, necessitam de mais investigação, razão pela qual, entre as recomendações, foi incluída a criação de uma Comissão da Verdade para os crimes contra os Povos Indígenas.

Audiência Pública | ‘Critérios de indianidade’
Representantes indígenas Guarani e Guaianá durante a audiência pública que debateu os “critérios de indianidade" utilizados para estabelecer quem era ou não índio. O regime militar negava a existência de povos nas cidades e no campo e evitou preservar e demarcar terras

O antropólogo Benedito Prezia, na 147a audiência pública da CEV “Rubens Paiva”, denunciou o internamento compulsório de índios no Presídio Krenak, alvo de denúncia desde os anos 1970, e que foi destacado no relatório da CNV. Prezia tratou também da Fazenda Guarani, e explicou o uso desses campos de concentração para o extermínio dos povos indígenas:

A atuação de Queiroz Campos, primeiro presidente da Funai durante a ditadura militar, mostrava-se nefasta em Minas Gerais. Além de aceitar aberrações como o Presídio Krenak e a Guarda Rural Indígena-GRIN, criada em 1969, estimulou o extermínio étnico do povo Krenak com suas posturas ambíguas

Depoimento à CNV | Presídio Krenak
Depoimento dos Krenak à Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre o presídio que funcionou em Resplendor (MG), de 1967 a 1972

O Tribunal Bertrand Russell (hoje, Tribunal dos Povos) era uma corte internacional, de caráter não governamental, criada, a partir do propósito do filósofo que lhe emprestou o nome, para julgar crimes dos Estados contra os direitos humanos. Ele não tinha poderes oficiais sobre os Estados, mas era dono de legitimidade política e ética.

Sua primeira edição, em 1967, julgou os crimes dos EUA na guerra do Vietnã. Em edição anterior, de 1974, no Tribunal Bertrand Russell, que julgou estados pelo crime de tortura (o grande foco foram casos do Chile, em razão da ditadura militar instaurada pelo golpe de 1973) foram levados documentos sobre os povos indígenas, mas tais questões só foram objeto de julgamento específico em 1980, na quarta edição dessa corte. Em 1980, na cidade holandesa de Roterdã, julgou-se o genocídio indígena nas Américas.

A delegação brasileira incluiu, entre outros, Mário Juruna (ou Butsé Dzuruna,que foi escolhido presidente do Tribunal, em reação às pressões do governo brasileiro para que ele não viajasse), Darcy Ribeiro, Álvaro Tukano (que viajou sem autorização simplesmente usando seu “nome de branco”, Álvaro Fernandes Sampaio), Memélia Moreira, Márcio Souza, Alain Moreau e dois indigenistas que haviam tido que se demitir da Funai, tendo em vista a orientação anti-indígena da Fundação: Anna Lange e Vincent Carelli.

A grande questão preliminar ao próprio julgamento era se o líder Xavante Mário Juruna, que se tornaria pouco tempo depois o primeiro deputado federal índio da história do Brasil, receberia autorização do governo federal para viajar. Como os índios eram, oficialmente, tutelados pela Funai, era necessária a autorização, que foi negada.

Esse episódio foi, segundo Alcida Rita Ramos, um dos mais notáveis na história das relações interétnicas do Brasil. Juruna gravou a conversa do então coronel João Carlos Nobre da Veiga, então presidente da Funai, que negou o passaporte alegando que o líder Xavante iria “falar mal” do Brasil no exterior, e ainda o ameaçou sem grandes sutilezas:

Juruna – Por quê? Então eu tenho que defender os pistoleiros, aquelas pessoas que já mataram índios?

Presidente – Um momento, Mário. Você está sendo contrário a um governo que está lhe defendendo [...]. Você não pode fazer isso lá fora, caso contrário, você vai ver o que vai acontecer a você quando voltar. [...]. Eu estou te aconselhando como tutor de você que sou

A volta dos projetos hidrelétricos da ditadura militar na Amazônia , especialmente a usina de Belo Monte, e também os projetos de barragem no rio Patajós, reativam a degradação ambiental e a espoliação dos povos indígenas: temos a “nação pós-ditatorial (1985-) fundamentada na amnésia da tortura que a precede, ciclo histórico que culmina na notável imagem da ex-torturada que realiza, como Presidenta, o projeto de seus torturadores para a Amazônia” (AVELAR, Idelber. Crônicas do estado de exceção. Rio de Janeiro: Azougue, 2014, p. 141.)

A herança de massacres e impunidade permanece especialmente nas áreas dominadas pelo agronegócio, onde as violações de direitos humanos contra os índios se fazem de maneira flagrante. Maria Rita Kehl, comissionada da Comissão Nacional da Verdade responsável pelo grupo de trabalho que tratou das violações de direitos contra os índios testemunhou, nos dias de hoje, uma situação parecida com a ditadura:

É nos estados dominados pelo agronegócio que os índios ainda hoje sofrem ameaças, despejos e assassinatosMaria Rita Kehl

DEPOIMENTO À CÂMARA (1977)
Em depoimento aos deputados, o padre Antônio Iasi Júnior, então secretário do Cimi (Centro Indigenista Missionário), aponta a proximidade entre as investigações sobre o índio e o Esquadrão da Morte: jamais terão fim, pois envolvem muita gente importante.
Documentário | Índios na Cidade (2013)
O vídeo produzido pela Comissão Pró-Índio reúne múltiplas vozes de distintos povos indígenas, traz experiências concretas de políticas públicas que vêm contribuindo para efetivar os direitos individuais e coletivos dos índios que vivem em contextos urbanos. Uma luta que persiste até hoje

Recomendações

1

Instituição, por lei federal, de uma Comissão da Verdade que apure as violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais em território nacional

2

Instituição, por lei estadual, de uma Comissão com o mesmo objeto para investigar essas violações aos povos indígenas no Estado de São Paulo

3

Regularização, proteção, desintrusão e recuperação ambiental das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva para os povos indígenas em virtude das graves violações de seus direitos na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos realizados, sobretudo durante o período da ditadura

4

Assegurar condições de segurança e soberania alimentar – respeitando a especificidade étnica e cultural de cada povo e território indígena – e também de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas em virtude da não observação de seus direitos na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos realizados, sobretudo durante o período da ditadura

5

Investigação e responsabilização, inclusive criminal, dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas durante a ditadura militar

6

Pedido público de desculpas do Estado Brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho de suas terras e pelas violações de direitos humanos ocorridas sob responsabilidade direta do Estado ou por sua omissão ou legitimação, visando a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos

7

Implementação de políticas de educação que ressaltem a importância e o respeito à diversidade étnica e às culturas dos povos indígenas, bem como abordem a temática das violações dos direitos desses povos durante a ditadura militar, com especial atenção às determinações da Lei no 11.645/2008

8

Reconhecimento de que a perseguição aos povos indígenas visando a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime contra a humanidade

9

Destinação de fundos para fomento à pesquisa e difusão sobre as graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, incluindo pesquisas acadêmicas, obras de caráter cultural e a reunião de documentação pertinente

10

Garantia ao acesso de todos os indígenas à educação de qualidade, específica e diferenciada, de forma continuada e permanente, nas aldeias, na terra indígena ou próxima da mesma, conforme a necessidade de cada povo, com condições apropriadas de infraestrutura, recursos humanos, equipamentos e materiais, respeitando o projeto político-pedagógico próprio, calendário e currículo diferenciado, conforme a tradição e cultura dos nossos povos e de acordo com a resolução 03 do Conselho Nacional de Educação (CNE)

11

Proposição de medidas legislativas de modo a contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos indígenas

12

Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas como mecanismo de reparação coletiva, com o reconhecimento da necessidade de se prestar atenção diferenciada a essa população, considerando suas especificidades étnicas, culturais, sociais e territoriais

13

Revogação do atual Estatuto do Índio e instituição de novo Estatuto, que reconheça a autonomia dos povos indígenas como sujeitos coletivos e sua diversidade cultural

14

Completar o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil, que o Estatuto do Índio determinou que ocorresse até 1978, descumprido pela ditadura militar e também pelos governos subsequentes, apesar de a Constituição de 1988 ter reconhecido esse direito originário, e de ela ter previsto novo prazo de cinco anos

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Veja Também:

Arquivos levantados pela Comissão da Verdade


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