por Rita de Cássia Resende

Em 1968, aos 5 anos de idade, fui morar com meus pais Gilberto e Rosemary em um povoado camponês chamado Pariconha, no interior de Alagoas. Ali, eles eram chamados de “Juarez” e “Rosa”.

Minha mãe me explicou que eles deveriam ser chamados por esses nomes para a nossa segurança e que isso seria nosso segredo. Pelo que me lembro, apesar da pobreza do lugar, as pessoas eram boas e eu brincava com a meninada como uma criança normal. Fui feliz ali até o dia que aconteceu algo que uma criança não pode entender, nem suportar sem sentir pavor e insegurança. Foi uma noite de pesadelo. Acordei com batidas fortes na porta, gritos, depois porta caindo, a casa sendo invadida por soldados fortemente armados. Hoje eu diria que foi um filme de terror. Depois, a prisão. E a falta de tudo: acabou o sol, as brincadeiras, comida pouca e ruim.

Eu gostava de correr, mas tinha que ficar parada. Tínhamos quinze minutos para almoçar em um refeitório que saía para um pequeno pátio. Corríamos para lá, a Priscila, o André e eu, crianças presas políticas, querendo brincar. Víamos ratos enormes subindo pelas calhas do prédio velho. Havia muita sujeira e hoje sei que era lixo hospitalar jogado a céu aberto no pátio do Hospital do 20º Batalhão da Polícia Militar de Alagoas.

Mães e crianças ficamos mais de cinco meses presas. Para mim, representou uma eternidade. Sei que sofri muitas perdas, mas sempre me recusei a aprofundar nesta questão, talvez por fuga, medo… Apesar dos esforços de meus pais, depois que saímos dali só consegui me alfabetizar aos 9 anos de idade.

Durante anos me fechei e não suportava política e polícia. Depois, entendi que a causa de meus pais era nobre. Lutaram por um ideal de justiça e igualdade social. Quando criança e mesmo adolescente sentia que me tiravam o direito à vida. A advogada que nos defendeu falou aos militares no julgamento que nós, crianças presas, éramos uma ameaça à segurança nacional.

O tempo passou e apesar de tudo que me foi tirado, hoje sou uma pessoa feliz dentro do possível. Tenho uma filha, Maria Tereza, e um neto de 2 anos, Joaquim, que proporcionam muitas alegrias e completam minha vida. Penso que hoje eles vivem em uma sociedade melhor e que eu inconscientemente contribuí para isso.

Fragmentos de memória

Em Pariconha lembro que brincava de fazer carro de boi com cacto e palito de dente, fazia guerra de mamona. Ganhei um pote de barro para carregar água na cabeça, mas quebrou. Brincava com coisas simples da região, pois não tinha brinquedo.

Na primeira prisão, lembro que chegou uma mala cheia de coisas. Fiquei desesperada para ver o que tinha dentro. Por sorte, me deixaram pegar alguns brinquedos: um boneco chamado “Bonitão”, que vestia uma roupinha azul e era de plástico, fogãozinho e panelinhas. Foi onde minha mãe achou cartas de Goiânia com a verdadeira identidade de meus pais biológiocos e escondeu. Ela falou que eu precisava ir ao banheiro então leu as cartas e jogou fora.

No mesmo lugar, andando no pátio da prisão, vi várias celas pequenas e em uma delas estava meu pai deitado em um banco de madeira. Tentei a todo custo abrir a grade da cela, então no tanque ao lado tinha uma faca enorme. Peguei a faca e falei para o agente que eu ia matar todo mundo. Ele olhou pra mim e disse “menina ruim”. Fiquei muito brava aquele dia. Nesse dia, meu pai escreveu uma carta para mim porque era meu aniversário. Até hoje tenho uma cópia da carta. (Porque a original se perdeu com o tempo).
No cômodo que ficamos tinha pouco espaço. E ainda pisei em um prego enferrujado. Nessa mesma prisão, um agente carcerário deu para mim, para o André e para a Priscila os presentes que ele tinha ganhado de Natal para seus filhos na Campanha de Natal. O que eu escolhi foi um barco azul e branco. Isso significou muito para mim. Era como se eu visse o brilho de uma jóia na lama.

Rita de Cássia Resende nasceu em 1 de abril de 1962. É filha adotiva de Rosemary Reis Teixeira e Gilberto Franco Teixeira. É funcionária pública estadual em Goiás.

Rosemary Reis Teixeira

Nasceu em 26 de março de 1944, em Goiânia (GO). Filha de Maria Reis Resende e Joaquim Resende Barros. Em agosto de 1962, conhece Gilberto Franco Teixeira, com quem começa a se relacionar (o casal segue junto até os dias atuais). Influenciada pela militância do avô, Pedro Doca, que foi do Partido Comunista, iniciou sua militância na Juventude Estudantil Católica (JEC), em 1963.

Depois, passou a militar na organização Ação Popular. Em 1965, ingressa no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goias (UFG). Em março de 1967, com o acirramento da repressão, Rosemary e Gilberto casam às escondidas e entram para a clandestinidade. Em abril do mesmo ano, o casal e a filha adotiva Rita vão viver em Pariconha, interior de Alagoas. Lá, Rosemary passa a usar o codinome de Rosa e Gilberto assume o codinome de Juarez Echeverria. Em Pariconha fazem trabalho de base com os camponeses do sertão alagoano. Rosemary atua na alfabetização de camponeses por meio do método Paulo Freire e na politização das mulheres da região. Em dezembro de 1968, é presa junto com sua filha e com Dodora Arantes e seus dois filhos. Seu marido também é preso. Após cinco meses de prisão, voltam para Goiás e seguem na vida na clandestinidade.

Em maio de 1971, nasce a segunda filha do casal, Uliana Reis Teixeira. Nessa época, Rita estava com 11 anos. No mesmo ano Rosemary retorna à faculdade, onde é impedida de colar grau com a turma sob o argumento de que o histórico escolar dos dois primeiros anos não foi encontrado. A colação de grau ocorreu somente em 1988 quando, depois de anos de busca, um amigo professor encontrou os referidos documentos “esquecidos” em uma gaveta da universidade. Em 1982 nasce o terceiro e único filho homem do casal, Juarez (nome escolhido em homenagem ao pai Gilberto por sua atuação política com esse nome na clandestinidade). Juarez viveu 10 anos e faleceu em em 1992. Hoje, Rosemary é servidora pública estadual aposentada.

Gilberto Franco Teixeira

Nasceu em 18 de junho de 1941, em Goiânia (GO). Filho de Anita Lombardi Teixeira e Adolpho Sindulpho Teixeira. Militante do movimento estudantil secundarista do Liceu de Goiânia. Em 1963 inicia a militância na JEC junto com sua companheira Rosemary. No ano seguinte, ingressa na Faculdade de Direito da UFG. É eleito presidente do centro acadêmico XI de Maio, onde atua intensamente.

Com o golpe militar de 1964, participa da luta do movimento estudantil contra a intervenção Federal em Goiás e a destituição do Governador. Em 1965, é preso em São Paulo com mais 13 militantes da Ação Popular e levado ao DOPS. Em 1966, é decretada a prisão de Gilberto em função de sua atuação no XI de Maio da Faculdade de Direito. Assim, interrompe o curso e entra para a clandestinidade para evitar a prisão.

Depois do período de trabalho de base junto aos camponeses de Pariconha e da prisão, já de volta a Goiás, Gilberto volta à universidade e termina o curso de direito.

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