Após o golpe de 31 de março, eu tive que ir para a clandestinidade. No dia do golpe, fiz um discurso na rádio para a minha área ferroviária. Se eu demorasse um pouco mais para ir embora, teria sido preso, porque os militares tomaram a rádio também. E eu cheguei a ser denunciado como espião russo pelo ministro do trabalho.

Mesmo na clandestinidade eu continuei morando no Rio de Janeiro. Nem pude ir mais para a minha casa, que ficou cercada o tempo todo. Eles estavam à minha espera, para me prender. Lá, moravam minha mulher e meus quatro filhos, sendo que a mais nova, a Rosa Maria, tinha um ano e pouco.

Resolvi voltar para São Paulo, apesar da pressão dos companheiros do comitê central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que me pressionavam, querendo que eu fosse para o Rio Grande do Sul. Eu disse que não ia a lugar nenhum. Eu queria ir para São Paulo, porque era a minha área, eu comandava a ferrovia Santos Jundiaí.

Enquanto eu estava na clandestinidade, no Rio, não conseguia encontrar a minha família. Montamos um esquema para levar todos para São Paulo. Com um caminhão de mudança, meu irmão levou todas as coisas da família para São Paulo.

Primeiro eles ficaram em Bragança, num sítio e depois foram para Jundiaí, onde morava a família da minha mulher. Depois que fiquei sabendo as dificuldades que eles passaram.

A minha família foi primeiro para São Paulo e depois fui eu, que fiquei em outra área clandestina. Fiz todo o esquema contrariando o partido e fui chamado de irresponsável. Vim para São Paulo por minha conta. Eu assumi essa responsabilidade. A minha opinião era que a direção do partido estava errando, que de 1955 para a frente, desde a morte do [Joseph] Stalin, não havia mais educação revolucionária.

Primeiro, fiz um esquema clandestino, sem contato com a minha família. E quando fiz contato com a minha mulher, fui encontrá-los e a minha menina não me reconheceu. Ela tinha um ano e pouco. Coitadinha, ela me olhou como quem diz “quem é esse cara?”. Foi um encontro clandestino, no bairro da Lapa. Nessa época, eles estavam morando em Jundiaí.

Depois fui ficar clandestinamente onde meu pai morava, no bairro da Lapa, em São Paulo. E meu filho Luiz Carlos ficava comigo. Combinamos que, por segurança, ele nunca me chamasse de pai. Convivi muito com ele. De vez em quando eu dava uma escapada em Jundiaí para ver a família.

Eu nunca parei. Eu e meu irmão compramos um Ford 29 e eu ia para as reuniões clandestinamente com aquele carro. Nosso partido tinha terminado com a educação revolucionária e eu viajava explicando que o partido tinha que ter organização revolucionária.

Nessa época, eu estava morando no fundo do quintal da casa do meu pai e meus filhos e mulher também vieram para cá. A repressão sabia onde eu estava e todo Primeiro de Maio eles iam me prender, me buscavam em casa e eu ia para a Polícia Federal. Minhas prisões eram só no Primeiro de Maio, mas eu nunca parei de atuar na organização. Havia vários companheiros que tinham as mesmas ideias, como o [Carlos] Marighella. Reunimos o comitê estadual e perguntamos “qual é a saída?” “O comitê central não dá mais, a ditadura está aí”. Então criamos a Ação Libertadora Nacional, a ALN.

Na casa do meu pai, a família vivia modestamente. Criavam coelho, no quintal tinha cabra, galinha, tudo. E meus filhos frequentavam o grupo escolar.

As consequências foram mesmo quando eu fui preso em 1970, aí sim a família sofreu, passou dificuldade. Fui levado diretamente para a OBAN.

Eu fui preso onde trabalhava. De acordo com a nossa organização, mesmo fazendo organização revolucionária, se possível tinhamos que ter um emprego. E eu trabalhava na Cooperativa Habitacional União Sindical, que era dos ferroviários. Quando cheguei no trabalho, a OBAN já estava lá, com metralhadora e o diabo. Fui preso porque um companheiro caiu e o outro conseguiu fugir. Ele pediu para outro companheiro me avisar. E ele avisou. Aí, depois de 24 horas esse que foi preso abriu o meu nome, como se fosse ter uma reunião comigo.

Quem estava lá era o [Benoni de Arruda] Albernaz que era um assassino e era difícil sair vivo. Mas sobrevivi porque eu entrei como alguém que tinha participado de reunião, de questão de cooperativa, sindicato. E eu no pau de arara, com o tira, fazendo esse jogo comigo. Aí chegou aquele da Ultragás, o [Henning Albert] Boilesen, eu vi ele. O cara disse: “Agora só falta pegar o Marighella”.

O companheiro que me abriu não aguentou e começou a abrir, abrir, e abriu o trem pagador. Eu estava arrebentado. Só abri o trem pagador quando me mostraram fotos de um cara morto. Quando vi que todos os compas que participaram estavam mortos, eu acabei abrindo. Eu só não fui morto porque nunca foi aberto que eu era dirigente da ALN.

E porque eu tinha uma cunhada, ela falava para burro. Ela conhecia um oficial e falou de mim: “Poxa vida, ele é diretor do sindicato. Será que ele está preso, podia ver isso?”.

Aí o cara deu o serviço para ela: “Ele está na OBAN”. Aí ela foi me levar roupa na OBAN, para ficarem sabendo que ela sabia que eu estava preso lá.

Fiquei doze dias na OBAN. O meu companheiro falou coisas graves de mim, e eu fui arrebentado. Uma noite, saí da cela forte e encontrei com ele. Usei aquela posição de dirigente comunista, disse que ele estava falando demais. Aí, nessa madrugada, mesmo eu estando arrebentado, eles me torturaram de novo. Não sei se foi ele que falou ou se tinha microfone.

Depois fui para o DOPS, onde sofri ainda mais. Apanhei muito mais do que na OBAN. O DOPS tinha minha vida todinha, viagem à URSS, cursos, Cuba, viagem, conferências. Se eu tinha apanhado na OBAN, me arrebentaram no DOPS. Costumo dizer que não é o pau de arara, e sim o que eles fazem em cima de nós, no pau de arara, e isso era diariamente.

Fiquei dezoito dias lá, mais doze na OBAN. Foram 30 no total. Minha última estada no DOPS foi quando arrebentaram o Olavo Hanssen. Depois, ele apareceu morto. Sempre elogiei a posição do Hanssen, a resistência dele. O DOPS era isso, uma máquina de matar.

No dia seguinte à morte dele, fui para o Tiradentes, era maio. Fui preso em abril de 1970. Lá, eu tive visita. Na visita, eu estava arrebentado, porque na OBAN levei um soco inglês nas costas. Fiquei com as costas arrebentadas. E na cela forte, sem assistência. No DOPS, levei pauladas na cabeça. O [Maurice] Politi me emprestou uma blusa de lã para eu me enfaixar com ela. Eu estava tão machucado que a minha família não podia me abraçar.

A família da gente sofre no lar, sofre na sociedade. Eu recusei sair no sequestro do embaixador suíço, e então minha fotografia saiu no jornal como terrorista. Aí ficam achando que a gente é terrorista mesmo e isso mexe com a família.

Com esse troço de terrorista, quem dava as aulas de educação moral e cívica nas escolas eram os capitões. E um capitão colocou meu filho Edson na frente e começou a arrebentar com os terroristas. E ai disse: “O Martinelli teve a coragem de dar o nome de Lenin para esse menino, vejam só”.

Mandei entregar um livro para meu filho, dizendo: “Leia Lenin e veja porque botei seu nome de Lenin, veja o bandido que ele é”. Ele tinha 7 anos, ele nasceu em 1953.

A família sofre muito com as consequências. Na cadeia, eu fazia cestas de vime, uma por dia, e eles vendiam para ajudar com as despesas da família.

Minha mulher, filha de portugueses, tinha os filhos sempre em primeiro lugar. Nesses três anos e meio, todos foram muito bons filhos.Tem uma carta do meu filho mais velho [Jaime] que é uma coisa espetacular. Ele escreveu para o Médici arrebentando e colocando o pai lá em cima: “Onde já se viu, esses homens que deviam estar governando o Brasil”. Esse meu filho quase nunca ia me visitar, ele não aguentava. Ele não queria me ver preso. Os filhos sofrem, mas temos que dar continuidade à vida.

Raphael Martinelli nasceu em São Paulo (SP), em 16 de outubro de 1924. Filho de Maximino Martinelli e Yoli Pistorezzi Martinelli.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa empresa de anilina (Produtos Químicos Sucuri), depois numa vidraria (Santa Marina) e em seguida como ajudante de ferreiro, na empresa de produtos de aço Tupi.
Em 1941, entrou para a Estrada de Ferro São Paulo Railway. Apaixonado por futebol e bom de bola, jogou em times da várzea paulistana até que a ferrovia e a militância ocuparam a maior parte de seu tempo. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde a adolescência, seguindo os passos de seu pai, filia-se ao sindicato dos ferroviários.
Foi dirigente da Federação Nacional dos Ferroviários e um dos mais importantes líderes sindicais do Brasil até 1964. Quando houve o golpe, foi cassado por dez anos. Foi para a clandestinidade e entrou na luta armada.
Junto com Carlos Marighella, foi um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 1970 foi levado à Operação Bandeirantes (OBAN).
Ficou preso durante três anos, três meses e 10 dias.
Hoje é advogado e presidente fundador do Fórum dos Ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo. Tem quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos.

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