por Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes

No início dos anos 1960 participei da fundação da organização política Ação Popular, de matriz católica, que ampliou suas posições no campo marxista-leninista e passou a ser denominada APML (Ação Popular Marxista-Leninista). Mais à frente, a Organização abraçou concepções maoístas que influenciaram política e ideologicamente seus militantes e suas práticas. Casei-me com Aldo Arantes, também fundador de AP, em dezembro de 1963 e recebemos convite para integrar o governo de João Goulart em Brasília.

Chegamos a Brasília em janeiro de 1964. No dia 1º de abril de 1964 ocorreu o golpe militar. Eu estava dentro da nossa casa em Brasília e, de repente, a casa começou a tremer, o chão do quintal tremia, vi ratos correndo na rua, para lá e para cá. Um barulho diferente e trepidante provocado por um desfile de tanques de guerra que seguia para a Esplanada dos Ministérios. A partir de então começaram a ser editados os primeiros Atos Institucionais. Aldo poderia ser cassado e preso. Saímos de Brasília imediatamente, deixei tudo na casa. Saímos de Brasília para uma longa noite que foi terminar somente quinze anos depois. De 1964 até 1979, vivi entre o exílio, a prisão e a militância clandestina severa. Passei a usar nomes frios com identidades falsas. Nesse momento não tínhamos filhos e nossa primeira decisão foi ir para o exílio. Os exilados de primeira hora que tinham intenção de voltar imediatamente ao Brasil seguiram para o Uruguai, que era mais perto. Fiquei grávida do meu primeiro filho, o Andre, que nasceu em Montevidéu. Foi um dos primeiros filhos de exilados políticos brasileiros, nasceu em 13 de junho de 1965. Decidimos voltar logo para continuar no país, a luta de resistência. Já no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1º de maio de 1966, nasceu nossa filha Priscila.

A situação política foi recrudescendo rapidamente e houve uma decisão da APML: os militantes e os dirigentes deveriam partir, como militantes clandestinos, para a integração na produção. Aldo e eu seguimos para a integração na produção no campo. Tomamos um ônibus na rodoviária em São Paulo e partimos para o interior do estado de Alagoas. O Andre tinha 3 anos, a Priscila tinha 2. Fomos para Água Branca. E de lá, para um subdistrito de Água Branca, Pariconha. Era uma região de camponeses pobres e meeiros que plantavam feijão.

Fomos morar com Gilberto, Rosa e a filha Rita, de 7 anos, que nos antecederam na integração nessa região. Tínhamos diferentes funções. Eu fui designada para ser professora de alfabetização de adultos na região. Era o ano de 1967. Atravessamos o ano e entramos em 1968. Tínhamos o hábito de ouvir, todas as noites a Hora do Brasil. Anoitece cedo no campo, às 21 horas, já era noite alta no dia 13 de dezembro de 1968. Ouvimos passos no jardim e no quintal. Na varanda, vozes de homens. Rosa e eu nos levantamos. As três crianças dormiam. A porta da frente foi sacudida com violência. Abram a porta. Aqui é o Coronel. Tínhamos acabado de ouvir no rádio, o decreto do A1-5 e mal havíamos assimilado suas implicações, ao anotar apressadamente seus artigos. Não houve tempo. Conhecemos na prática seu significado. Não abriremos a porta, respondemos. Estamos sós com as crianças. Com os gritos e as violentas pancadas, na porta da frente, dos fundos e nas janelas, as crianças acordaram. A gritaria aumentou, e com nossos filhos nos braços, vimos a porta ser violentamente sacudida e finalmente arrombada, a pontapés e golpes de fuzis. Entraram vários homens, não sabíamos a princípio quantos. As lamparinas de querosene estavam apagadas. Percebemos que eram muitos. Nossa casa foi revirada. Colchões, armários prateleiras, tudo vasculhado. Perceberam que havia apenas roupas, mantimentos e brinquedos. Onde estão as armas? perguntavam aos berros. Disseram que iam nos levar para Água Branca e depois Maceió. Temos ordens. Agora tudo é permitido. Foi feito um decreto e tudo o que achamos suspeitos, vamos investigar. Gente suspeita, vamos prender. Vocês são professoras, seus maridos, gente de São Paulo. Vamos levar todo mundo. Resolveram que tínhamos que ir presas. Argumentamos sobre as crianças, que queriam que deixássemos para trás. Afinal, depois de muita conversa, decidiram que eu iria só com eles. Rosa ficaria com as três crianças.

Partimos para uma viagem que me parecia interminável. O tempo todo ouvi gracejos e perguntas. Não disse uma palavra. Chegamos a Maceió. Era dia 14 de dezembro de 1968. Fiquei dormindo no quarto dos investigadores. Estava exausta. Entravam e saiam o tempo todo, falavam alto, faziam comentários. Perguntavam por Aldo, quando voltaria de São Paulo. Fiquei quatro ou cinco dias em Maceió. Fui levada de volta para Pariconha. Um ou dois dias depois, Aldo chegou tarde da noite. Soube na estrada o que acontecera.

Nesta mesma noite, 22 de dezembro, fomos todos presos: Aldo, eu, Andre e Priscila, Gilberto, Rosa e Rita. Prenderam também toda a liderança camponesa militante. Passamos o Natal entre as cadeias de Água Branca e de Maceió. Começou uma noite longa, para nós, especialmente para os pequeninos presos. Ficamos todos, nos primeiros dias no DOPS de Maceió, as crianças e eu na mesma cama e no mesmo quarto dos investigadores.

Depois do Ano Novo, Andre, Priscila e eu, fomos deslocados para uma delegacia de bairro. Apesar de a cela ter uma das paredes totalmente de grade, ficávamos sufocados, trancados o dia todo, sem que qualquer brisa ou vento amenizasse o calor. Tivemos problemas gravíssimos de saúde. Todos os três desidratados tivemos estomatite e Priscila teve uma crise aguda de difteria.

Quase não conseguimos nos alimentar. Priscila ficou magrinha, só aceitava leite em pó, às colheradas. Os dois tiveram furunculose. Andre chegou a ter vinte furúnculos enormes e Priscila, outros tantos. Não tínhamos qualquer espécie de atendimento médico ou de saúde. Ficamos, literalmente depositados, sequestrados até o final de janeiro.

Depois fomos levados para a Escola de Aprendizes de Marinheiros nos arredores da cidade. Um lugar cheio de coqueiros à beira-mar. Alojaram-nos na ala dos oficiais. Na primeira noite almoçamos na sala dos oficiais, a contragosto. Em um desses dias, ao final da refeição, o oficial do dia aproximou-se de mim e disse: “Estive conversando com minha esposa e como não temos filhos, resolvi pedir que a senhora me dê seu filho. Podemos criá-lo muito bem. Olhe bem para a senhora. Que futuro a senhora tem? Seu marido está preso, a senhora está presa, ninguém da sua família apareceu, não vai ter condição nenhuma de educar esta criança”. Emudeci, não consegui responder, não gritei, não chorei, fiquei petrificada. Fui andando para trás, segurando o Andre, até sair da sala. Não voltamos a ver esse oficial, nunca mais entramos nessa sala. Pedimos para almoçar na cozinha com os marinheiros. O resto do dia ficávamos no quarto. Depois conseguimos circular pela escola quando já havia terminado o expediente. Estávamos profundamente debilitados. Nessa época, estávamos novamente com a Rosa e a Rita, duas mulheres e três crianças. Durou pouco a estadia aí. A Marinha não queria se envolver mais.

Resolveram então nos levar para o hospital da Polícia Militar, no centro de Maceió. Era um hospital antiquíssimo, cheio de torres, perto da cadeia pública conhecida como Presídio da Morte onde Aldo ficou preso com os demais companheiros. Fomos confinados num quarto, sobre o qual havia uma porção de histórias, era o quarto onde ficavam os desenganados. Um quarto grande, muito abafado, ao lado de um outro quarto menor, sem iluminação, sem janela, cuja porta dava para o quarto do capitão Fontes, que saía cedinho, voltava à noite.

Os dias pareciam intermináveis. Não sabíamos o que fazer com as crianças. Só podíamos sair do quarto por quinze minutos para as refeições. Conseguimos licença para um banho de sol, depois das 16 horas. Nesta hora, o pátio de descarte do hospital não recebia mais o sol, apenas um facho fugidio que caía sobre os degraus da escada, onde as crianças ficavam sentadinhas, vendo ratos enormes brincarem de entrar e sair pelos restos de pernas e braços de gesso, entre curativos usados, caixas vazias, bandagens, cacos de vidro, tudo jogado no meio de um mato que crescia. A gente dizia para as crianças que os ratos eram os primos do Jerry dos desenhos animados. Mesmo assim, com as energias recuperadas, não conseguimos cansá-los.

Dentro do quarto-cela, inventamos uma programação rígida de ginástica, brincar de roda, joguinhos. Depois vinham as atividades de contar as tampas de borracha coloridas dos vidros de antibióticos, empilhar caixas de remédio vazias, formar uma carreira com as serrinhas de seringas. Depois do almoço as crianças dormiam, e o que sobrava de tempo passavam dentro de uma banheirinha de plástico debaixo do chuveiro. Às quintas-feiras visitávamos o Aldo na cadeia. Depois de algum tempo apareceu uma advogada contratada pelos nossos companheiros.

Quando finalmente conseguimos ir à primeira audiência da Auditoria Militar de Recife, Andre e Priscila fizeram tanta bagunça na Audiência que o juiz, irritado, mandou que se retirassem da sala os três menores. Dra. Lygia lhes comunicou: “Excelência, estas crianças são presas. Foram presas em dezembro juntamente com suas mães”. Fomos dispensadas, os homens continuaram presos. Saímos da Auditoria, voltamos para Maceió e de lá para São Paulo. Aldo ficou preso ainda na delegacia de Maceió de onde fugiu juntamente com o Gilberto, em uma operação montada por APML.

Exatamente dez anos depois, em dezembro de 1976, Aldo foi preso na Lapa, em São Paulo, no episódio conhecido como Chacina da Lapa. Andre e Priscila, com 12 e 13 anos, passaram a frequentar novamente os presídios, agora como visitantes de seu pai, durante dois anos e seis meses até a Anistia de 1979. Eu me integrei de corpo e alma à construção da campanha pela Anistia ampla, geral e irrestrita.

Sobre minha prisão com meus dois filhos tenho hoje a clareza de que fomos sequestrados, não há qualquer notícia da prisão das crianças, não consta de nenhum documento. Consta meu julgamento e a absolvição. Sobre eles, nada. Poderiam ter sido sumariamente sequestrados sem papéis que comprovassem sua presença no cativeiro. Depois que saímos da prisão e do Nordeste, voltamos para São Paulo, continuamos a militância clandestina, fomos morar nos bairros mais periféricos, no Morro Grande, Itaquera, Vila Formosa, e permanecemos clandestinos mais oito anos. As crianças foram para um parquinho da prefeitura e depois foram alfabetizadas em escola do estado e da prefeitura. Fizeram toda a escola com nomes frios: Andre e Priscila Guimarães Silva. Esse tempo teve fortíssimo impacto sobre eles, pois já estavam maiores e percebiam que havia muito segredo e muito não dito sobre as coisas e as situações que vivíamos. Somente saímos da clandestinidade quando o Aldo foi novamente preso no episódio conhecido como Chacina da Lapa que massacrou dirigentes do PCdoB então reunidos.

Sobre a vida clandestina, posso afirmar que foi uma experiência que até hoje reverbera na alma. Hoje percebo com mais clareza o quanto marcou o Andre e a Priscila e a mim mesma. Tanto é que, quando retornei à universidade, após a anistia de 1979, fiz minha dissertação sobre a experiência da clandestinidade política, através de uma abordagem psicanalítica. A incidência que teve sobre a vida dos meus filhos, somente agora, passados quase quarenta anos é que posso perceber melhor, a partir do que eles mesmos contam em seus testemunhos. Sempre nos surpreendemos negativamente com as reverberações que a ditadura civil-militar impôs a todos nós e que ainda continuam pulsantes.

Aldo Silva Arantes

Nasceu no dia 20 de dezembro de 1938, em Anápolis (GO). Iniciou suas atividades políticas no movimento estudantil secundarista.

Estudante de direito da Pontifícia Universidade Católica, do Rio de Janeiro, foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em julho de 1961.

Em dezembro de 1963 casou-se com Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes. Após o golpe militar de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente Goulart, exilou-se em Montevidéu.

De volta ao Brasil em 1965, passou a viver na clandestinidade. Em 1968, quando realizava trabalho político junto aos camponeses no sertão de Alagoas, foi preso. Após cinco meses e meio fugiu da prisão.

Em 1972, juntamente com a maior parte dos militantes da AP, ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cujo comitê central passou a integrar.

Em dezembro de 1976 foi novamente preso quando participava de uma Reunião do Comitê Central do PCdoB, no bairro da Lapa, em São Paulo, episódio conhecido como Chacina da Lapa.

Em julho de 1977, foi condenado a cinco anos de prisão. Permaneceu preso até agosto de 1979, quando foi beneficiado pela anistia aprovada pelo Congresso.

Em 1979, filiou-se ao partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Exerceu o mandato de deputado federal por quatro vezes e foi constituinte em 1988.

Autor dos livros : História de Ação Popular – da JUC ao PCdoB, co-autor, com Haroldo Lima (1984) ; O FMI e a Nova Dependência (2002); Meio Ambiente e Desenvolvimento – em busca de um compromisso (2010); Alma em Fogo – memórias de um militante político (2013).

[Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001]

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, a Dodora

Nasceu em 5 de novembro de 1940, em Belo Horizonte (MG). Foi uma das fundadoras da organização Ação Popular (AP), na década de 1960. Em 1968 foi presa em Alagoas junto com seus filhos Priscila e Andre. Após sair da prisão seguiu com a militância clandestina de combate à ditadura militar.

Foi uma ativa e importante militante da luta pela anistia no Brasil. Participou da fundação do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA/SP) e foi dirigente dos Movimentos Nacionais pela Anistia (1978-1982).

Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi coordenadora Geral de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (2009-2010). Foi membro das Comissões de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e do Conselho Federal de Psicologia ( 2004-2008 e 2011-2013).

Autora dos livros: Pacto Re-Velado: Psicanálise e Clandestinidade Política (1994) e Tortura (2013).

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