Na primeira vez que tivemos que fugir do Rio de Janeiro para São Paulo, eu tinha só 2 anos. Meu pai estava sempre viajando, e quando ele retornava, sempre tinha uma bonequinha, uma coisa assim. E da primeira vez, quando ele foi preso em 1970 eu vi que ele demorava a voltar, e eu sentia que as pessoas em volta, as pessoas próximas queriam me poupar de saber exatamente o que estava acontecendo com ele. Eu era muito menina e apegada a ele, sentia que as pessoas cochichavam e escondiam de mim.

Acho que se tem alguma coisa que aprendi quando eu era pequenininha, foi silenciar. Silenciar é a palavra que me vem imediato na cabeça. Era sempre “xiiiu, não pode falar”. Eu perguntava, e falavam “psiu”. Era sempre um silêncio e eu chorava muito porque sentia a falta dele. E lembro quando a minha tia, irmã do meu pai ficou sabendo que ele estava no DOPS. Eu nem sabia o que era DOPS, achava que ia visitá-lo em algum lugar, tinham encontrado meu pai.

Fui com minha tia. Ela me levou porque eu era uma criança que não estava mais dormindo à noite, e ela quis me aliviar. E eu me lembro que foi uma cena muito marcante nesse dia porque eu cheguei num lugar muito escuro, com paredes escuras. Cheguei muito feliz porque ia rever meu pai. Essa é uma cena muito marcante na minha memória, porque quando meu pai finalmente apareceu, dois homens o amparavam e ele estava irreconhecível. Eu não conseguia ver que aquele homem ali na minha frente era meu pai, ele era uma pessoa fisicamente diferente.

Ele chegou bem próximo de mim, colocou a mão na minha cabeça e foi nesse instante que eu vi que era ele. Eu não entendia nada, mas lembro de uma coisa que me chamou a atenção, quando eu fecho os olhos e lembro desse dia, era a camisa dele abotoada errada. E as mãos tremiam muito. E, novamente, eu caio naquela palavra silêncio porque na minha curiosidade infantil queria perguntar: “E aí, pai, o que está acontecendo? O que é aqui?” Me lembro da minha tia falando “xiu”, e então, foram duas coisas muito marcantes.

A segunda situação que eu lembro já foi no presídio Tiradentes, eu passava em revista junto com minha mãe. Numa das vezes, meu pai fazia aniversário e minha mãe quis fazer um bolo, passamos praticamente a sexta-feira inteira fazendo aquele bolo. Tínhamos pouco dinheiro e aquilo era um acontecimento. E o dia seguinte era um sábado, quando aconteciam as visitas. Fomos até lá, eu e minha mãe. E nos meus olhos infantis, era inconcebível ver aquela mulher [do presídio] cortando o bolo em pedaços. Ela praticamente destruiu o presente que a gente ia dar para o meu pai. E mais uma vez eu perguntei, “Mãe, porque ela está fazendo isso?” E minha mãe me mandou fazer silêncio de novo.

Eu passava na revista feminina e aquilo era para mim uma coisa absurda. Eu era criança, tinha que abrir a boca, tinha que abrir as pernas, eles vasculhavam meu corpo todo para poder entrar. Mas ali era sempre uma coisa boa para mim. Eu ficava feliz de ir até lá porque sabia que ia vê-lo e podia brincar. Era um pátio enorme, eu lembro dos dois pavilhões, onde, de um lado, ficavam os presos políticos e do outro, os presos comuns. E eu sempre estava perto dos presos comuns, porque eu fazia umas brincadeiras, eles me jogavam colares, jogavam pulseiras e eu ficava feliz.

Ali eu conheci outras pessoas como meu pai, mais jovens, com quem eu tinha afinidade por histórias. Sempre gostei de ouvir histórias, e recentemente eu tive a felicidade de reencontrar um senhor que esteve preso junto com o meu pai. Na época, ele era estudante, jovem. Eu pedia que deixassem ele andar comigo pelo pátio, porque ele era um grande contador de histórias. Eu tive a felicidade de reencontrá-lo e de promover também o encontro dele com o meu pai, o senhor Luis Paulino. Foi muito emocionante o encontro porque meu pai nunca nos fala sobre tortura.

Através desse senhor eu soube que eles se conheceram exatamente num dia em que meu pai estava indo para os porões, estavam entrando juntos para a tortura. Eles não se conheciam e ele, muito amedrontado, diz ao meu pai: “Puxa, eu tenho uma placa de metal na minha cabeça, eu fui operado. E eu tenho muito medo que eles me batam e eu possa morrer”. Ele mesmo me contou essa história. Meu pai tem uma grande dificuldade de falar nisso. Ele disse: “quando eu entrei, a primeira coisa que o seu pai fez foi falar: ‘não bata nele. Não bata na cabeça dele. Ele tem um problema assim, assim’”. E ele acha que ele foi salvo por conta de o meu pai ter dito isso.

O aniversário dele de 70 anos foi no ano passado e ele quis muito que meu pai fosse. Eu o levei, e ele colocou essa história publicamente. Eu achei muito bacana porque mostra bem a pessoa do meu pai, que é esse cara que sempre é pelos outros. Muitas vezes nós, filhos, ficamos muito a parte da vida dele, porque ele queria nos poupar de saber tudo que estava acontecendo. Eu, por muito tempo, não quis saber dessa história.

Por volta dos meus 30 anos, tive a curiosidade de recolher umas fitas cassete que meu pai deixava para alguns jornalistas na época. Eu praticamente roubei essas fitas para ouvir. Eram cinco. E na segunda eu já não conseguia mais parar de ouvir, ele falava muito da história dele e ali ele contava das torturas. Aquilo foi tão forte dentro de mim, aquele rombo de imaginar que um ser humano possa ser capaz de fazer isso com outro que eu tive uma catarse, eu queria entender como isso podia ter acontecido a ele.

Meu pai fala pouco a respeito disso, mas a marca que ficou foi muito grande em todos nós, os filhos. Porque você tem que recolher tudo isso para criar uma certa identidade, porque você veio dali. O que eu posso dizer é que nesse tempo todo eu vim perguntando a ele toda a história e fui sempre me interessando por tudo isso. Não só a história dele, mas a história da ditadura no Brasil ou em qualquer outro lugar, eu sempre tive um grande interesse, eu queria saber, esmiuçar, esmagar aquilo dentro de mim. Fiz terapia durante muitos anos e retomei porque eu tinha esse medo, medo da noite, medo deles irem embora, de pegarem meu pai, minha mãe, meus irmãos. Eu acho que eu convivi com esse medo. E acho que só conseguia colocar esse medo para fora quando escrevia. E aí eu comecei a escrever, muito. Escrevia compulsivamente.

Quando adoeci, em 2007, tive um câncer de mama e ganhei de presente do meu pai todas as nossas cartinhas. São quatro anos de cartas, que recebemos de meu pais e que enviamos para ele. Eu tinha 8, 9 anos. Ali pude ir formando o meu quebra cabeças. Fui lendo, relendo e sentindo o tamanho daquilo que era para mim naquela idade. E posso dizer que foi maravilhoso. Era um privilégio poder ver toda a história dos quatro anos que meu pai ficou no presídio. Meu pai, como todo revolucionário, tem essa veia poética. Ele não gosta que fale isso, mas ele tem. Ele foi o cara que através das cartas me empurrava a escrever, a fazer rimas. E todo sábado quando eu ia visitá-lo a gente trocava ideias sobre a leitura, sobre o que eu tinha escrito, aquele versinho, enfim. Eu acho que partiu dele isso.

Quando eu olho aquelas cartinhas, vejo a menina que eu era naquele período. Eu dizia: “eu te amo meu papai, papaizinho, você é meu galã, você é meu príncipe”, essas coisas que uma criança diz ao pai. Então, é como se eu tivesse feito isso naquele período, e de lá para cá eu não sei como se faz esse caminho. Eu não sei como se faz esse caminho com irmãos, com filho. Se tem algum lugar que a ditadura, a história me alterou, foi aí. Eu acho que foi no amor que eu não sei expressar. Eu não consigo nem com o amor maior do mundo que é amor de filho e ele sofre com isso também. Eu sei o quanto eu o amo, mas não consigo expressar. Eu tenho essa barreira. Eu acho que aí eu
realmente tenho as sequelas desse período, não é só pelo distanciamento do meu pai e tudo mais. É como se eu não pudesse falar porque o silêncio era a coisa mais importante naquele período. Eu aprendi direitinho o silêncio, e eu queria me livrar dele. E é difícil conseguir. Até os 50 eu não consegui.

Quando tudo começou a vir à tona na Comissão da Verdade, pensei “puxa, que bacana. Esses caras vão pagar pelo que eles fizeram”. Esses caras sádicos, psicopatas, não sei nem que nome dar para isso. Finalmente eles vão lá sentar e ser julgados pelos crimes que cometeram, aí eu me desiludo. Esse assunto para mim é muito visceral. Eu me incomodo profundamente da Lei da Anistia ter perdoado esses monstros, gostaria que essa lei pudesse ser novamente revista. É olhar para os vizinhos, Argentina, Chile, eles julgaram seus atrozes, eles realmente julgaram. Por que o Brasil não revê isso? Famílias foram destroçadas, então, falar da gente aqui, falar da própria dor é sempre muito difícil. Mas eu consigo ver a amplitude disso.

Até o que ficou em relação ao meu pai é sempre assim, existe uma certa distância. Existe algum lugar que dá para chegar no meu pai, e em outros momentos, ele mantém uma distância que é própria dele, de não querer falar no assunto, não querer te machucar, mas de toda forma quem passou por uma tortura, parece que já passou pela pior coisa do mundo. Então, para nós que somos filhos, muitas vezes temos problemas, fica difícil chegar nele com aquele seu probleminha. Parece sempre pequenininho, porque diante do que ele passou, não existe coisa pior no mundo. Então, sempre colocamos essa distância em relação a ele.

Meu pai tem uma fragilidade emocional muito grande. Ele não quer falar no assunto, ele sai de cena. Hoje, com um pouco mais de idade ele está um pouco mais flexível, eu diria. Ele se preocupa mais, quer que a gente ligue, enfim. Então, esse movimento que a gente faz para se aproximar passa por esse traço que ficou, que é um traço pesado. Talvez a memória daquele período tenha um peso tão grande que nos dificulta esse acesso hoje.

Para se ter uma ideia de como eu sempre tive relacionamentos difíceis, casamentos difíceis, alguns terapeutas chegaram à conclusão de que quando eu amo, eu amo a distância, porque quando meu pai foi preso eu vivia em pleno Édipo. Toda menina é apaixonada pelo seu pai, e exatamente nesse momento ele saía de cena. Então, eles chegaram à conclusão de que eu amo o distante. Quando esse distante se aproxima de mim, eu não sei o que fazer. Até é engraçado porque nos meus relacionamentos eu ficava pensando: “puxa, esse cara tem o quê? Ele deve ter alguma coisa muito problemática para eu poder estar gostando dele”. Enfim, falar de mim é falar um pouco disso porque essa relação com o outro sempre foi difícil para mim, e para o outro, claro, também.

Claro que hoje aos 50 anos, eu trabalhei tudo isso e não estou curada, mas me sinto muito mais consciente de que isso veio daquela época, porque eu amei meu pai à distância. Para se ter uma ideia, eu nunca disse ao meu pai que eu o amava. Nunca. Não consigo. É como se falar de amor fosse falar de uma coisa muito frágil e que pudesse quebrar. A história dele é uma história toda de amor, pelo seu povo, pelo seu país, é um cara que teria dado a vida pelo Brasil.

A minha mãe faleceu em 2003. Ela era descendente de português e toda a família dela era de Jundiaí. Acho que minha mãe era a pessoa da família que mais expressava o amor. Era a que nos unia. Ela sempre deu a vida pelos filhos. Ela não queria saber onde estava o meu pai, ela não queria saber das coisas que meu pai fazia. Ela não queria saber. Então, o meu pai tinha uma vida completamente a parte. Quando ela perguntava, “onde você estava?”, ele respondia “É melhor não saber por que eu não quero que eles venham aqui, peguem vocês e vocês sob tortura, contem”.

Então, ele nunca falava para ela as coisas que fazia. E nós ficamos muito a parte. Minha mãe era quem trazia aquela coisa de família, do almoço de domingo, de reunir os filhos, de ligar para cada um. Depois, os meninos casaram, e ela sempre estava em constante contato querendo que eles passassem por lá. Ela tinha esse apego, esse amor. Eu não sei por que a gente não aprendeu com ela.

Ela era a expressão máxima da humildade, tanto que existe uma história que meu pai conta que, durante a tortura, em um dos momentos em que ele estava apanhando muito, os torturadores falaram: “Já foram lá? Já viram a mulher dele? Vamos trazer a sua esposa aqui”. E aí um dos torturadores disse: “Ela não vale a pena, é uma mulher que anda descalça, maltrapilha”. E minha mãe não era uma maltrapilha, mas andava descalça. Era uma mulher humilde, simples, sem atrativo, uma mulher sem vaidade.

E por conta desse silêncio verbal que toda a nossa família tinha que ter, eu posso dizer que eu me salvei através de tudo que eu escrevi. Para mim, é bastante difícil falar sobre isso. Eu gosto mais de escrever. Então, eu queria terminar o meu depoimento lendo um conto que foi o meu primeiro conto publicado.

Quando eu fiquei doente, escrever para mim foi muito importante. E no meu primeiro conto, eu escrevia coisas para mim mesma.

Coisas que eu guardava. Até que um dia resolvi publicar e uma pessoa falou, “Rosa, deixa eu publicar seu conto”. E eu deixei. E esse conto expressa bem a minha visão de menina quando visitava meu pai no Tiradentes. O conto chama “Anos Setenta”.

Rosa Maria Martinelli nasceu em 16 de julho de 1962, em Jundiaí (SP). Filha de Raphael Martinelli e Maria Augusta Martins Martinelli (falecida em 2003) é formada em Educação Física e trabalha como personal trainer.

Maria Augusta Martins Martinelli, caçula de seis irmãos, nasceu em Jundiaí (SP), em 1925. Filha de Amélia e João Martins, ambos portugueses. Casou-se com Raphael Martinelli em 1947.
Faleceu em novembro de 2003, aos 78 anos, quando ia completar 56 anos de casamento com Martinelli. De acordo com Rosa, sua filha, era uma “cozinheira maravilhosa. Quem compartilhou da sua mesa, sabe. Fazia o melhor capeletti in brodo que se tem notícia. O fazia artesanalmente. Sua felicidade era nos ver repetir o prato. Todas as noites, até mesmo quando estava doente, esperava meu pai para colocar a conversa em dia. Ela nasceu para ser mãe, era muito presente e afetiva”. De acordo com Martinelli, a parceria da esposa “foi essencial para minha história como revolucionário”.

Raphael Martinelli nasceu em São Paulo (SP), em 16 de outubro de 1924. Filho de Maximino Martinelli e Yoli Pistorezzi Martinelli.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa empresa de anilina (Produtos Químicos Sucuri), depois numa vidraria (Santa Marina) e em seguida como ajudante de ferreiro, na empresa de produtos de aço Tupi.
Em 1941, entrou para a Estrada de Ferro São Paulo Railway. Apaixonado por futebol e bom de bola, jogou em times da várzea paulistana até que a ferrovia e a militância ocuparam a maior parte de seu tempo. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde a adolescência, seguindo os passos de seu pai, filia-se ao sindicato dos ferroviários.
Foi dirigente da Federação Nacional dos Ferroviários e um dos mais importantes líderes sindicais do Brasil até 1964. Quando houve o golpe, foi cassado por dez anos. Foi para a clandestinidade e entrou na luta armada.
Junto com Carlos Marighella, foi um dos fundadores da Ação Libertadora Nacional (ALN). Preso em 1970 foi levado à Operação Bandeirantes (OBAN).
Ficou preso durante três anos, três meses e 10 dias.
Hoje é advogado e presidente fundador do Fórum dos Ex-Presos Políticos e Perseguidos de São Paulo. Tem quatro filhos, sete netos e quatro bisnetos.

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