Eu sou José Paulo De Luca Ramos, filho de Derlei Catarina De Luca e Nilo César Sobral Ramos. Nasci em 1972, em Londrina (PR). Na época, meu pai e minha mãe passavam por lá fugindo da polícia. Quando eu tinha 1 ano de idade, minha mãe já havia sido presa e torturada, e precisou fugir do Brasil para não ser morta. Acabou indo para Cuba. Ela foi na frente e eu um ano depois. Cheguei à Ilha com 2 anos de idade, em 1974, onde morei por cinco anos. Minha mãe, por seis. Tenho lembranças da gente voltando em 1979, na época da Anistia.

Da infância em Cuba eu não tenho do que reclamar, porque foi uma fase muito boa. No período em que morei lá, dos 2 aos 7 anos, tinha educação, saúde, mas, óbvio não tinha o meu pai. Ele ficara no Brasil. Antes de irmos para Cuba, meus pais se separaram. Então, até os 7 anos não tive nem a presença do meu pai nem a falta dele, o que é diferente de se perder um pai. Então, como criança, naquela época, eu não sofria por conta disso.

Em Cuba, tive muitas crises de asma. Mas como lá o sistema de saúde já era avançado, quando as crises começavam eu era internado e devidamente tratado. Acho que foram 22 internações nesses cinco anos por crise de asma. Não sei se isso é diferente de outro asmático que não teve uma mãe torturada. Não faço essa relação. Tive crises até meus 15, 16 anos. Depois, deu uma parada e ficou mais psicológico, eu diria. Quando tem algum desafio, quando eu fico um pouco angustiado me dá uma crise. Hoje meu filho de 8 anos tem asma também, mas bem mais amena porque conseguimos tratar desde cedo.

Também tem a história dos psicólogos, que faz parte das coisas que eu não lembro, mas que minha mãe sempre conta. “Você teve ajuda psicológica em Cuba”. Talvez, hoje, os poucos momentos de crise de asma sejam um mecanismo de defesa da minha mente.

Mas ir em busca de ajuda psicológica foi uma das razões que fez a minha mãe ir para Cuba. Quando voltamos para o Brasil tive algumas conversas com psicólogo e foi por isso que fomos morar no interior. Para estar junto da família.

Uma vez no Brasil, tive toda a estabilidade de ter uma família grande, de conhecer meu pai, meus avós. Isso foi em 1980, eu tinha de 8 para 9 anos. Considero que tive uma infância normal, não me acho diferente de outras crianças por conta do que ocorreu com minha mãe no período da ditadura. Lógico que tem a lacuna da ausência da família durante cinco anos, mas naquele momento eu não tinha a consciência dessa falta.

A minha infância e juventude foram muito normais. Estive envolvido com a política, com a luta pelas Diretas Já, também me lembro da criação do PDT em Santa Catarina.

Depois, mais velho, eu posso até repetir o ditado: “Mãe liberal, filho conservador”, porque eu procurei muita segurança. Fiz engenharia, administração e busquei o lado da racionalidade. Não sei se inconscientemente ou não. Depois de me formar, fui estudar fora, fiz MBA em finanças e voltei para o Brasil. Não sei se foi uma escolha inconsciente ou consciente de eu procurar esse lado da racionalidade, de ir para o lado da segurança.

Na infância, meu nome permaneceu sempre o mesmo, José Paulo, mas tinha algumas certidões com sobrenomes diferentes porque meus pais usavam nome falso. Essa questão foi se resolvendo ao longo da minha juventude, quando eu tinha entre 15 e 18 anos. Mas nunca foi um trauma. Simplesmente tinha algumas coisas na vida diferente das outras crianças, mas nada que me traumatizasse. Minha mãe estava ali, meu pai estava ali, minha família. Eu cresci no interior de Santa Catarina, o que fez muito bem para mim. Ter essa base sólida de família, de ter todo mundo lá. Então, mesmo que meus pais fossem separados, eu tinha a figura do pai, a figura da família. Nunca ficou um elo faltando.

Tem algumas coisas que a gente, como filho, sente, mas evita falar para os pais. Minha mãe sempre falou das coisas. Da tortura, ela foi falando mais tarde, porque como é uma coisa que machuca quando a gente fala, e evitávamos.

Quando minha mãe foi para Cuba, eu tinha entre 1 e 2 anos, fiquei um ano perambulando em Santa Catarina pela casa de algumas famílias para a polícia não me prender. Foi um período que só conseguimos refazer no ano 2000 quando descobri a casa onde fiquei num período de dois, três meses. Havia essa lacuna na minha história. Claro que essa experiência diferenciou a minha infância da de outras crianças da época.

A maior parte desse período fiquei com minha avó. Mas fiquei, também, com padres em seminários, conventos e uma família em Itajaí. Tem também histórias de alguém ir me buscar em algum lugar, levar para minha avó me ver e voltar. Por conta disso, muitas vezes eu me questionei, brincava com a minha mãe, perguntando: “Será que eu sou eu mesmo, não me trocaram em algum lugar?” E aí isso foi se materializando, diminuindo. Depois, fui vendo a semelhança física com meu pai, então é uma ferida sarada.

A minha mãe conta a história que embora eu tenha chegado em Cuba com 2 anos, só fui chamá-la de mãe quando eu tinha 3. E queria sempre voltar para minha avó, que era meu ponto de referência. Mas isso, de novo, é a minha mãe que conta, as famílias que me acolheram naquela época me contam, porque eu não lembro disso.

Mas essas histórias não era eu quem buscava e sim minha mãe. Não é que a gente, como filho, negue. Mas a gente evita falar. Nossos pais buscam toda informação possível. E a gente não. Eu fico mais na minha. Por exemplo, eu não participo assiduamente das coisas que minha mãe busca. Apoio, mas não é uma coisa que eu queira buscar. E talvez isso seja assim para não me abalar emocionalmente. Eu estou bem sem ir buscar.

Fora isso, eu tenho muito orgulho de ser filho da Derlei, ela é uma verdadeira heroína por tudo o que ela passou, por tudo o que ela viveu, de querer mudar o Brasil. Ela fez de uma forma, e eu procuro fazer, também, da minha maneira.

Hoje tenho três irmãos por parte de pai. A gente tem um relacionamento, não diria de irmãos, mas de amigos. É um relacionamento bom. E meu pai existe, está lá. Eu não busco a falta de um pai. Eu não tenho que preencher uma lacuna. Elas estão todas saradas. Ou espero, eu acho que estão.

José Paulo De Luca Ramos nasceu em Londrina (PR) em 1972. É filho de Derlei De Luca e Nilo Ramos. Estudou engenharia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), administração na ESAG e fez MBA em finanças na Universidade de Michigan. Hoje mora em São Paulo, é casado com Luciana e tem dois filhos, João Paulo, que nasceu em 2005 e Ana Lúcia, que nasceu em 2009. É executivo no setor financeiro.

Derlei Catarina De Luca nasceu em Içara (SC), em 17 de setembro de 1946. Era estudante secundarista quando houve o golpe de 1964. Foi militante da Juventude Estudantil Católica (JEC) e da Ação Popular (AP). Foi presa em Ibiúna junto com outros estudantes catarinenses que participaram do XXX Congresso da UNE, em 1968. Entrou para a clandestinidade em 13 de dezembro de 1969 e logo depois, de acordo com definição da organização, integrou-se na produção, indo trabalhar numa tecelagem, em Curitiba. Foi deslocada pela organização para um trabalho em São Paulo, onde foi presa pela Operação Bandeirante (OBAN), em novembro de 1969. Torturada no pau de arara, foi submetida a choques elétricos e chegou a entrar em coma. Quando saiu da prisão, em abril de 1970, foi para Florianópolis (SC), sendo acolhida por Dom Afonso Niehues, arcebispo da cidade. Ficou lá por dois meses, acompanhada por médicos. Em seguida, foi mandada para a Bahia por sua organização. Ficou em Feira de Santana até começo de 1972, de onde saiu com o nome de Maria Luiza Vitali. De lá, seguiu para Londrina (PR), grávida de vários meses. Seu filho, José Paulo De Luca Ramos nasce em 11 de janeiro de 1972. Em abril, seu marido, Nilo Ramos, é preso. Obrigada a fugir, Derlei deixa seu filho na porta de um hospital em Londrina e segue para o Chile. Com o golpe que derrubou Salvador Allende, vai para Cuba. O menino percorre um longo caminho até ser entregue em Havana, já com 2 anos e três meses de idade. Estudou história na Universidade do Oriente, em Santiago de Cuba. Após a Lei Anistia em 1979 e de retornar do exílio em Cuba, Derlei participou das buscas pelos catarinenses mortos e desaparecidos políticos.Fundou e coordenou o Comitê Catarinense Pró Memória dos Mortos e Desaparecidos Políticos, hoje Memorial dos Direitos Humanos.
Em 1988, recebeu o título de Cidadã Honorária de Criciúma e, em 2001, recebeu da Assembleia Legislativa de SC a Medalha Antonieta de Barros. É autora de diversos livros, entre eles Os jasmins do Jardim de Paolo, À sombra da Figueira e No corpo e na alma, Além da lenda e o livro didático de história e geografia do município de Içara.
É professora e coordena o Coletivo Catarinense pela Memória Verdade e Justiça. Membro do CASC e da Rede Brasil Memória, Verdade, Justiça.

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