Quando recebi a mensagem por e-mail me convidando para participar [da Audiência sobre as crianças atingidas pela ditadura], num primeiro momento pensei que não tinha nada para contribuir, que não tinha nada que pudesse ajudar porque eu conheci crianças, especialmente quatro crianças, e diante dessa situação que eu sei que eles viveram, eu achava que não tinha muito a acrescentar. Um deles, que tem a minha idade, aos 2 anos de idade foi fichado no DOPS como subversivo perigoso, o Ernestinho [Ernesto Nascimento] e os seus primos.

Eu nasci em 1968, em Osasco, em plena greve geral. Uma confusão, um caos no país, especialmente na região de Osasco. O meu pai, Darcy Rodrigues, servia no quartel de Quitaúna. Era sargento na época e lugar tenente do Capitão [Carlos] Lamarca.

Quando eu tinha seis meses de idade, meu pai, ciente da gravidade da situação, tentou, e conseguiu, obviamente, poupar a minha mãe e eu de qualquer problema que ele sabia que estava por vir e nos mandou para a Europa no mesmo voo com a esposa do Capitão Carlos Lamarca e seus filhos.

Então, quando recebi esse convite, pensei: “O que é que eu tenho para falar? Eu fui poupada de tudo. Eu não vi nada”. Felizmente não perdi meu pai, porque apesar de tudo o que passou, ele está vivo. A minha mãe fez de tudo para transformar nossas vidas em vidas normais.

Eu estava com seis meses e a minha mãe encontrava-se grávida na época. Ela não sabia, nem meu pai, que meu irmãozinho estava chegando. Nós fomos para o exterior, passeamos por alguns lugares – passeamos entre aspas – até conseguir asilo político em Cuba, onde fomos todos, a esposa do Lamarca, os filhos, minha mãe, eu e meu irmãozinho que nasceu lá.

Vivi minha infância inteira em Cuba até meus 11 anos de idade. É um país que eu amo, que me deu a base para o que sou hoje. Um país onde aprendi que pessoas como meu pai, como os pais da Priscila [Arantes] e do André [Arantes], da Iara [Lobo], da Raquel [Rosalen], são pessoas que a gente tem de respeitar e admirar. Que tinham um ideal e passaram o que passaram para hoje, quarenta e poucos anos depois, nós termos um país melhor.

Até hoje eu não sei tudo que o meu pai passou. Durante esses onze anos de vida fora do país, e depois, quando voltamos, em 1980, para o Brasil, não sabíamos – meu irmão e eu – exatamente o que estava acontecendo, mas sabíamos que alguma coisa ruim estava por trás daquela situação toda.

A Iara Lobo mencionou uma coisa muito importante, que é a questão do respeito à imagem dos nossos pais. Hoje, na internet, tem muita coisa que eu descobri sobre o meu pai que ele não contou para nos poupar.

Lembro-me que, em 1999, tinha o hábito de ler a revista IstoÉ, pela internet, toda segunda-feira. Fazia isso no meu horário de almoço e não lia a revista inteira porque não dava tempo. Numa segunda-feira, abri a revista numa reportagem de capa que falava sobre o assalto ao cofre do Ademar de Barros. Comecei a ler a matéria e pensei: “Não me interessa”. E continuei lendo a revista, as outras matérias. Mas fiquei com aquilo na cabeça porque eu não sabia o que era o assalto ao cofre do Ademar, mas alguma coisa me falava que já tinha ouvido aquela história, que aquilo tinha a ver comigo.

Eu li outras partes da revista e quando acabava minha hora de almoço, resolvi voltar à matéria. Eu não sabia o que era, mas, de repente, vi a foto do meu pai naquela reportagem. Dezenove anos depois de eu estar de volta ao Brasil, ainda não sabia o que tinha acontecido com meu pai. Eu me assustei. Não sabia de nada daquilo e, por ter passado todos os anos da minha infância com os meus pais me protegendo, até hoje não corro atrás de certas informações. Eu as descubro a conta gotas em livros, pela internet.

Alguns sites falam do meu pai de uma maneira muito pejorativa e triste. Isso magoa demais, porque eu sei que meu pai é guerreiro, é briguento, é bravo. Quando se trata de justiça ele é muito bravo. E tenho muito orgulho dele, por saber que não teve medo de fazer justiça. Não me interessam os métodos que usou, mas ele tentou fazer justiça. Meu pai sempre foi muito honesto. E é isso que eu levo de toda essa história. Que a esperança, como disseram os demais nesta Audiência, e a justiça sejam feitas; e a esperança de que nós não tenhamos mais pessoas que enxergam a verdade que querem enxergar, e não a verdade de fato.

O André [Arantes] comentou que diferentes olhares trazem diferentes visões do mesmo fato. E a gente sabe que muita gente neste país ainda acha que pessoas como os pais do André e da Priscila, os pais da Iara e da Raquel, os meus pais, os pais das quatro crianças que eu mencionei, são terroristas. O que eu mais quero com essa Comissão
da Verdade é que um dia ninguém mais pense assim.

Nós chegamos em Cuba quando eu tinha mais ou menos 6 meses de idade. O meu irmão, Darcy, nasceu em Cuba. Meu pai ficou aqui no Brasil, na clandestinidade, no Vale do Ribeira. Ele esteve preso, foi torturado e foi um dos quarenta que foram trocados pelo embaixador alemão. Entre esses quarenta, estão as quatro crianças que mencionei. E o meu pai finalmente chegou a Cuba quando eu já tinha 2 anos de idade e o meu irmão já tinha um ano de nascido.

Nós passamos dez, onze anos em Cuba vivendo como cubanos. Estudamos em escolas como cubanos. Mas tinha um grupo grande de brasileiros exilados que se reunia com alguma periodicidade e ouvia o hino do Brasil com muita emoção, ouvia gravações da Voz do Brasil e trocava informações. Porque, na época, era muito difícil ter notícia do que acontecia no Brasil, ter notícias dos familiares. Eu lembro que quando chegavam correspondências dos nossos familiares, elas eram motivo de muita alegria e de muita apreensão. Era muito difícil receber informações naquela época, as correspondências chegavam todas violadas, fotografias chegavam rasgadas e demoravam meses para chegar.

Em uma dessas correspondências chegou a notícia de que eu tinha perdido meu avô materno, que não cheguei a conhecer. E lembro dessa sensação, que eu acho que é a mesma que a Priscila menciona, de que a gente não sabia exatamente o que acontecia, mas que a gente sabia que alguma coisa ruim ainda podia acontecer.

Os meus pais sempre deixaram claro para mim e para o meu irmão que aquele não era o nosso lugar e que a qualquer momento podíamos ir embora, que precisávamos voltar para o nosso país. Então, nós passamos dez anos da nossa vida sem poder nos apegar a amigos, a brinquedos, a lugares, aos professores, a escola, porque a qualquer momento iríamos embora.

Queríamos muito ir embora, porque sentíamos a paixão dos meus pais pelo país, a necessidade que tinham de voltar, além do desespero de voltar para o convívio dos familiares aqui.

Em 1980, quando voltamos para o Brasil, fomos morar no interior de São Paulo, em Bauru. Eu lembro que foi uma época muito difícil porque depois de mais de dez anos fora do país os meus pais não tinham mais casa, não tinham mais nada do que eles deixaram aqui. Além de que, nenhuma escola em Bauru queria matricular a mim e a meu irmão. Por dois motivos: porque era tudo muito recente, as pessoas tinham medo de envolvimento com pessoas perigosas; e também porque o Ministério da Educação demorou para validar os estudos que fizemos em Cuba.

Mesmo assim, felizmente, com a ajuda de companheiros, conseguimos assistir, participar em uma escola como pessoas transparentes. A diretora do SESI de Bauru aceitou que eu e meu irmão assistíssemos às aulas na série em que meu pai afirmava que nós estávamos, independente do MEC validar ou não. E ficamos por um período, eu na sexta série e meu irmão na quinta série, sem ter o nome na lista de chamada, fazendo as provas às escondidas, separadas e, obviamente, com isso tudo sabíamos que éramos vistos como diferentes, apesar do meu pai e da minha mãe tentarem nos fazer acreditar que estava tudo bem.

O André também comentou sobre a chegada de um momento em que ele podia “ser quem ele era”, contar para as pessoas quem ele era. Da sexta série até o colegial eu também vivi esse momento de não poder falar muito porque eu tinha morado em Cuba, quem eu era, quem era meu pai. Só depois de alguns anos que percebemos que as pessoas começaram a entender melhor. E quando eu entrei no colegial, eu estudei no Colégio Técnico da UNESP em Bauru, tinha uma professora de história que nos mandou ler o livro Feliz Ano Velho.
Até então eu tinha muito medo de falar do meu passado. E fiquei muito feliz de saber que tinha uma professora que incentivou o debate e que, finalmente, eu podia falar o que pensava daquilo tudo, que finalmente eu tinha encontrado pessoas que eram solidárias a tudo isso e aceitavam toda essa situação. Então eu fico feliz de ser a última aqui [a falar] porque, juntando o depoimento de todos, descobri que eu tenho coisa para falar.

Queria comentar que hoje eu sou casada, meu marido é Jorge Mukudai, descendente de japoneses, pessoas simples, uma família que não tinha, nunca teve participação política, nem entendimento político nenhum. E eu sou muito grata a ele e à minha filha, porque eles sempre entenderam e tiveram orgulho dos meus pais e da minha família. E queria também agradecer uma pessoinha muito especial, que meu pai tentou poupar o tempo inteiro, pela sua fisionomia e seu físico frágil, delicadinha, professora. Meu pai poupou muito essa mulher, sem saber que ela é uma pessoa extremamente guerreira. Ela segurou toda essa onda com muita, com muita garra e com muita classe, com muita elegância. Apoiou o meu pai até hoje, que é minha mãe. Hoje eles estão separados, mas são muito, muito amigos, e ela sempre apoiou meu pai, apesar de não ter sido muito ativa em todo esse processo.

Dora Augusta Rodrigues Mukudai nasceu em 6 de agosto de 1968. Filha de Darcy Rodrigues e de Rosalina de Freitas Anselmo. É bacharel em Ciência da Computação e trabalha com gestão de pessoas na área de Tecnologia da Informação.

Darcy Rodrigues nasceu em 19 de novembro de 1941, em Avaí (SP). Sargento do Exército, resistiu ao golpe de 1964 junto com militares resistentes. A aproximação com o capitão Carlos Lamarca, no Quartel de Quitaúna, em Osasco, fortaleceu o grupo. Em 1969, já ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), abandonou a carreira militar. Darcy e Lamarca foram os principais atores da fuga do Quartel de Quitaúna, em janeiro de 1969.
Foi preso em abril de 1970, junto com José Lavechia, numa área rural do Vale do Ribeira, onde a VPR fazia treinamento de guerrilha. Ficou preso por 57 dias, sendo torturado diariamente. Saiu do país em 15 de junho de 1970, trocado junto com outros presos, libertados no sequestro do embaixador alemão, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben.
Levado inicialmente para a Argélia, depois exilou-se em Cuba, onde sua mulher e filha já viviam desde pouco antes de deixar o Exército. Morou dez anos em Cuba, onde trabalhou como professor e estudou Economia. Lá, nasceram dois dos seus quatro filhos. A família voltou ao Brasil em 1980, onde Darcy estudou direito. Em 1983 exerceu o primeiro de muitos cargos públicos na cidade de Bauru, onde vive até hoje. Em 2010, Antonio Pedroso Junior, lançou o livro: Sargento Darcy, Lugar Tenente de Lamarca, sobre a trajetória do militante.

Rosalina de Freitas Anselmo nasceu em 7 de setembro de 1943, em Três Lagoas (MS), onde se formou professora. Casou com Darcy Rodrigues em 1963. Foi para Cuba em janeiro de 1969 onde se especializou em educação infantil e trabalhou como professora. Retornou para o Brasil em 1980 indo morar em Bauru (SP). Tem quatro filhos e duas netas.

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