por Rosemary Reis Teixeira

O ideal de uma pessoa jovem é muito forte. Eu era jovem e possuía essa força. Desejava mudar, corrigir erros, fazer justiça. Lutar por um mundo melhor, eliminar as diferenças. Ver pessoas desprotegidas doía na minha consciência de jovem idealista, que acreditava ser possível transformar a sociedade e viver em um mundo mais justo.

Em função da repressão advinda da ditadura militar, eu e Gilberto [Gilberto Franco Teixeira] tivemos de optar por deixar a vida normal e viver na clandestinidade. Isso naturalmente acarretou mudanças radicais para nós e para nossa filha.

Nessa época, Rita era uma menina de 5 anos, saudável, alegre, vivia em Goiânia, em um porto seguro. Rodeada por uma família grande, muitos primos da sua idade, amigos.

Com a ditadura, para sobreviver à repressão, nós, Gilberto e eu tivemos que adotar outra identidade: “Juarez e Rosa”, e nos mudamos para o sertão alagoano.

Essa mudança de vida, o convívio com pessoas muito pobres (camponeses sem terra e sem o mínimo necessário à sobrevivência) foi o lado bom, o lado benéfico de toda essa história. Aprendi muito nessa época, principalmente em termos de relacionamento humano. Por incrível que pareça, aprendi com a Rita, a criança que imediatamente se integrou com todos, com a criançada do lugar, com a pobreza, com a alimentação diferente e escassa. Aprendeu a brincar com as coisas que o lugar oferecia. Para crianças, não existem fronteiras ou obstáculos para se viver com as diferenças, seja de cor, religião, situação econômica e social. A relação social é profunda, pura, sincera. Eu já me norteava por esses princípios, mas vi através da Rita que a prática vai muito além da teoria, tudo é muito simples e verdadeiro. Se nós, adultos, aprendêssemos mais com as crianças, certamente teríamos um mundo melhor.

Se eu pudesse, falaria somente do lado bom da história mas não seria a história verdadeira. O estrago foi muito grande. A repressão militar destruiu sonhos e projetos de vida que previam uma vida digna para todos. Causou muitas feridas e deixou muitas cicatrizes.

Minha experiência de mãe nessa época foi muito sofrida. Sofri por ver a Rita passar por situações que foram frutos da minha escolha. Eu escolhi lutar por uma sociedade mais justa e sabia que isso envolvia risco, mas o ideal nos movia para a frente e o filho é parte de nós, não tem como separar a vida de pais e filhos.

O instinto de proteção de uma mãe não tem limites e eu me via impedida de exercê-lo, impotente numa prisão com a minha filha sem saber o que poderia acontecer no dia seguinte. A solução foi viver um dia após o outro tentando minimizar o sofrimento da criança com um suprimento muito grande de carinho, paciência, dedicação. Foi uma experiência muito difícil. Quando a Rita dormia, eu podia extravasar os meu próprios sentimentos: medo, angústia, ressentimentos, impotência, receios. Apareceria uma doença amanhã? O dente doeria? E se os militares tirassem a menina de mim? Ou me levassem para longe dela? Nossa família em Goiânia não sabia da nossa prisão porque fomos presos com outra identidade. Não havia como esperar ajuda. O que restava era apreensão e temor, dia após dia. Se os militares descobrissem nossa verdadeira identidade tudo poderia piorar ainda mais.

O pai da Rita, Juarez (Gilberto) também preso em outra unidade carcerária, conquistou a confiança de um agente e através dele conseguiu uma advogada para nos defender. Essa foi a fagulha de luz diante daquele futuro incerto. É com agradecimento e grande carinho que falo dessa jovem advogada, destemida, valente, que sem obter qualquer vantagem financeira evitou que o pior acontecesse. O nome dela é Maria Ligia Januzzi Jablonca.

Após cinco meses de prisão, conquistamos a liberdade, mas não o direito à vida normal, pois tivemos que viver com várias restrições por mais alguns anos. Tive, como mãe, que lutar para ajudar minha filha a vencer seus medos, inseguranças, limitações, inclusive na aprendizagem escolar pois ela somente se alfabetizou aos 9 anos de idade.

Muitas coisas ainda poderiam ser ditas, pois a missão de uma mãe é ver o filho se realizar como pessoa e o trabalho para alcançar esse objetivo nos acompanha durante toda a vida.

Vivi as dificuldades enfrentadas pela minha filha como se fossem minhas. As conquistas eu partilhei com ela na mesma intensidade. Em tempos difíceis, vivemos momentos muito marcantes. Devo registrar aqui um desses momentos. Faço uma homenagem à solidariedade humana.

A solidariedade é um sentimento que penetra fundo na alma e que vive para sempre em quem foi beneficiário dela. Eu vivi essa experiência.

Ao sair da prisão fui orientada a seguir para São Paulo com minha filha e encontrar, nessa cidade, em uma determinada praça, a pessoa que me ajudaria naquele momento. Eu estava frágil e desorientada após cinco meses de prisão e tinha pouquíssimo dinheiro. São Paulo, em 1969, vivia seus piores momentos de repressão.

Sentada em um banco da praça com minha filha, vi se aproximar de nós e se apresentar, aquele homem alto, de olhar bondoso que me inspirou confiança. Seu nome era João. Tempos depois soube que se tratava do Paulo Stuart Wright, ex-Deputado Federal pelo Paraná, torneiro mecânico e líder operário que estava sendo caçado por toda a cidade. Andamos a pé por um longo tempo e nos lugares onde o clima de guerra se acalmava ele carregava a Rita no colo e demonstrava a ela todo o seu carinho. Em outros momentos, ele caminhava à frente e nos orientava a segui-lo à distancia até chegarmos à casa de sua irmã onde nos deixou em segurança.

Essa lembrança me emociona muito, principalmente por saber que pouco tempo depois ele foi preso e torturado até a morte. Deixo minha homenagem ao grande homem Paulo Stuart Wright que muito lutou pelo povo brasileiro.

Hoje estamos aqui, vivas, minha filha Rita e eu, para contar essa história. Quantos ficaram pelo caminho, quantos tiveram seus sonhos rompidos, quantas vidas perdidas.

Dizem que o tempo cura todos os pesares. Acredito que as feridas provocadas pelas atrocidades da repressão nos tempos da ditadura permanecerão abertas para sempre na lembrança de todos aqueles que foram atingidos, seja pela perda da liberdade, pela infância roubada ou pela morte prematura de muitos cujos familiares não tiveram sequer a chance de enterrá-los com a dignidade que o ser humano merece.

Rosemary Reis Teixeira

Nasceu em 26 de março de 1944, em Goiânia (GO). Filha de Maria Reis Resende e Joaquim Resende Barros. Em agosto de 1962, conhece Gilberto Franco Teixeira, com quem começa a se relacionar (o casal segue junto até os dias atuais). Influenciada pela militância do avô, Pedro Doca, que foi do Partido Comunista, iniciou sua militância na Juventude Estudantil Católica (JEC), em 1963.

Depois, passou a militar na organização Ação Popular. Em 1965, ingressa no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goias (UFG). Em março de 1967, com o acirramento da repressão, Rosemary e Gilberto casam às escondidas e entram para a clandestinidade. Em abril do mesmo ano, o casal e a filha adotiva Rita vão viver em Pariconha, interior de Alagoas. Lá, Rosemary passa a usar o codinome de Rosa e Gilberto assume o codinome de Juarez Echeverria. Em Pariconha fazem trabalho de base com os camponeses do sertão alagoano. Rosemary atua na alfabetização de camponeses por meio do método Paulo Freire e na politização das mulheres da região. Em dezembro de 1968, é presa junto com sua filha e com Dodora Arantes e seus dois filhos. Seu marido também é preso. Após cinco meses de prisão, voltam para Goiás e seguem na vida na clandestinidade.

Em maio de 1971, nasce a segunda filha do casal, Uliana Reis Teixeira. Nessa época, Rita estava com 11 anos. No mesmo ano Rosemary retorna à faculdade, onde é impedida de colar grau com a turma sob o argumento de que o histórico escolar dos dois primeiros anos não foi encontrado. A colação de grau ocorreu somente em 1988 quando, depois de anos de busca, um amigo professor encontrou os referidos documentos “esquecidos” em uma gaveta da universidade. Em 1982 nasce o terceiro e único filho homem do casal, Juarez (nome escolhido em homenagem ao pai Gilberto por sua atuação política com esse nome na clandestinidade). Juarez viveu 10 anos e faleceu em em 1992. Hoje, Rosemary é servidora pública estadual aposentada.

Gilberto Franco Teixeira

Nasceu em 18 de junho de 1941, em Goiânia (GO). Filho de Anita Lombardi Teixeira e Adolpho Sindulpho Teixeira. Militante do movimento estudantil secundarista do Liceu de Goiânia. Em 1963 inicia a militância na JEC junto com sua companheira Rosemary. No ano seguinte, ingressa na Faculdade de Direito da UFG. É eleito presidente do centro acadêmico XI de Maio, onde atua intensamente.

Com o golpe militar de 1964, participa da luta do movimento estudantil contra a intervenção Federal em Goiás e a destituição do Governador. Em 1965, é preso em São Paulo com mais 13 militantes da Ação Popular e levado ao DOPS. Em 1966, é decretada a prisão de Gilberto em função de sua atuação no XI de Maio da Faculdade de Direito. Assim, interrompe o curso e entra para a clandestinidade para evitar a prisão.

Depois do período de trabalho de base junto aos camponeses de Pariconha e da prisão, já de volta a Goiás, Gilberto volta à universidade e termina o curso de direito.

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