por Priscila Almeida Cunha Arantes

Antes de iniciar meu depoimento, gostaria de recorrer a um mito antigo que versa sobre a história de um sobrevivente. Refiro-me ao poeta Simônides, considerado o inventor da arte da memória na Grécia antiga. Diz o mito que o poeta teria estabelecido as bases da mnemotécnica – a arte da memória – em função de um acidente vivido por ele próprio. Simônides foi o único sobrevivente do desabamento do teto do salão de um banquete onde se comemorava a vitória do pugilista grego Skopas.

O que importa nessa história é o que aconteceu após tal tragédia. Os parentes das vítimas, que queriam enterrar seus familiares, não conseguiam reconhecer os mortos que se encontravam totalmente desfigurados pelas ruínas. Recorreram, então, a Simônides, o único sobrevivente, que graças à sua memória conseguiu se recordar dos participantes do banquete, na medida em que se lembrou do local ocupado por cada um deles durante a comemoração.

Se a história de Simônides está muito distante do nosso tempo, por outro lado, ilustra bem o embate contra o esquecimento da história.

Aquele que testemunha, de certa forma sobreviveu a uma situação limite, traumática, no meu caso e de meus familiares: à época da ditadura militar no Brasil. Como filha de pais que foram presos, torturados, foragidos e clandestinos – e eu mesma presa com minha mãe e meu irmão quando tinha 3 anos de idade, no sertão de Alagoas, apesar de não ter lembrança desse episódio – deixo aqui meu depoimento na esperança que possa contribuir não somente para a construção de uma memória coletiva mas que, de alguma forma, ele possa servir de dispositivo para que essa história não se repita nunca mais no nosso país.

Recentemente meu pai me pediu um depoimento sobre as memórias da minha infância. Gostaria então de compartilhar aqui alguns trechos desta carta que recebeu o título de Identidade, Nome e o Paradoxo da Liberdade: Carta aos meus Pais.

Talvez um dos dispositivos mais antigos da humanidade seja o de dar nome às coisas. Dar nome às coisas significa dar a elas vida, história, identidade. É assim que uma criança recebe um nome ao nascer, carregando-o para o resto da vida. Escolher, dar um nome a uma criança é fazer uma espécie de doação de uma história simbólica familiar. Doação que a insere na continuidade de uma filiação, a inscreve nas linhagens maternas e paternas: uma espécie de fio de Ariadne que lhe indica um caminho, sem traçá-lo de antemão.

Priscila Almeida Cunha Arantes. Foi este o nome que os meus pais me deram em 1º de maio de 1966 quando nasci, mas não foi este o nome que utilizei até meus 11 anos de idade, quando, então, meu pai foi preso e minha mãe ficou foragida, na época da ditadura militar em nosso país.

Até os meus 11 anos, sempre fui Priscila Guimarães Silva; uma criança feliz que vivia como muitas outras de minha idade na periferia de São Paulo com a família.

Existia, por vezes, uma sensação velada que talvez, pela minha idade na época, não conseguia entender. As janelas da casa na avenida Itaquera eram forradas de papel e sempre me davam a impressão que estávamos escondendo algo que eu não tinha muito claro o que era. Muitas vezes quando ouvia meu pai escutar a Internacional em seu rádio pequeno, em seu quarto, bem baixinho, ficava sempre uma pergunta no ar: por que ele tem de escutar o som tão baixo? Mas os natais eram sempre muito gordos ao meu olhar. Recebia sempre várias roupas que, apesar de serem usadas, vinham sempre envoltas em um lindo papel celofane vermelho, que somente a minha mãe sabia fazer. A casa da avenida Itaquera tinha um quintal grande que, apesar de receber, às vezes, a visita de alguns amigos indesejáveis, enormes ratos – só recentemente vim a saber que vivíamos nos fundos de um açougue –, brincava com minhas bonecas e com meu exército de formigas, minhas companheiras inseparáveis.

Certo dia, fomos tirados às pressas da avenida Itaquera e levados por meu tio Bruno, irmão da minha mãe, de carro, até Belo Horizonte para a casa de minha avó materna. Não entendia ao certo porque estávamos indo para Belo Horizonte e muito menos o que de fato acontecera. Mas sabia que era algo muito grave, e alguma coisa acontecera ao meu pai. Ele e minha mãe tinham combinado de que se o meu pai não voltasse de uma viagem em uma determinada época é porque alguma coisa tinha ocorrido. E de fato ocorreu. Meu pai fora capturado em plena estação Paraíso, do Metrô – nome engraçado! – pelos militares, em dezembro de 1976.

Não me lembro desse dia com detalhes. Mas me recordo do desespero de minha mãe, levando-nos às pressas, eu e Andre, à casa de tio Bruno. Na viagem a Belo Horizonte fomos parados por um policial. Acho que o tio Bruno dirigia muito rápido e senti um nervosismo grande no ar. Chegamos à casa da minha avó. A casa era muito grande, tinha quase quarenta cômodos, e fomos acolhidos em clima de festa e com muito carinho pela família de minha mãe, uma família que, no entanto, eu nunca tinha visto (a única exceção era a querida Tia Tei, que nos acompanhou por diversas vezes na época da clandestinidade). Eu e Andre moramos por lá até minha mãe poder viver em liberdade.

Encontramo-nos, acho, somente um ano depois, na casa da tia Diva. Minha mãe estava magra, pálida, fruto da dieta forçada em macrobiótica que teve de passar quando ficou escondida na casa de conhecidos no Rio de Janeiro. Seu corpo enfraquecido me chamou a atenção naquela época. Uma imagem que eu jamais esquecerei.

Foi em Belo Horizonte que pude de fato me tornar Priscila Almeida Cunha Arantes. Anos antes, meu pai, quando ainda morávamos na avenida Itaquera, tinha comentado comigo e meu irmão que nosso sobrenome não era Guimarães Silva. Naquela época, apesar da surpresa, o comentário não teve significado nenhum para mim. Eu continuava sendo Priscila Guimarães Silva, vivendo com meus pais na avenida Itaquera.

Também foi em Belo Horizonte que uma nova realidade se abriu para mim. Talvez hoje, mais madura, eu possa reconhecer o paradoxo daquela sensação. Por um lado pude descobrir que tinha um nome de fato real, outro, este sim verdadeiro, que trazia consigo uma família, uma história; uma outra identidade. Era um mundo completamente novo que se abria para mim.

Mas ao mesmo tempo, e talvez este fosse o fator que mais me assustou, assumir a minha verdadeira identidade e meu nome trouxe a perda da convivência com meus pais. E mais do que isto: a consciência de que eles estavam em uma situação de perigo iminente. É exatamente no momento que nossos nomes podiam ser utilizados, que meu pai foi preso e minha mãe ficou foragida.

Obviamente este paradoxo de identidade se tornou mais acentuado em um momento de adolescência quando essas questões já são colocadas à mesa. Para além de uma mera crise de identidade era uma real crise de identidade: seria melhor continuar sendo Priscila Guimarães Silva e poder viver clandestina com meus pais em liberdade? Ou seria melhor ser Priscila Almeida Cunha Arantes e poder viver em liberdade com os meus pais presos? Pois, para mim, os dois estavam presos. Só depois soube que minha mãe estava escondida no Rio de Janeiro. Independentemente da minha opção na época, eu não tinha escolha real a fazer.

Essa sensação paradoxal veio acompanhada por outra experiência que foi muito marcante na minha adolescência. Estávamos em Belo Horizonte quando dois ou três homens entraram na casa da vovó Isa dizendo que eram amigos de meus pais. Não me lembro exatamente quem foi me avisar das supostas visitas. Olhei à espreita por uma das portas da sala e tendo a nítida sensação de que aquela visita vinha carregada de alguma ameaça, me escondi debaixo de uma das mesas redondas que havia na sala de minha avó. Foi exatamente em volta dessa mesma mesa que minha avó, minha tia e os dois visitantes sentaram-se para conversar. Fiquei ali um bom tempo a escutar a conversa que não vou esquecer nunca mais: a conversa, em tom de ameaça – pois o que eles queriam saber era onde a mamãe estava – descrevia com minúcias e detalhes a tortura recebida pelo meu pai: espancamento, pau de arara, corpo inchado… quase morte. Anos depois vim saber que esses visitantes faziam parte da equipe de torturadores de meu pai.

Nessa época fui acometida por uma série de desmaios, pequenos lapsos de consciência, talvez um desejo real de esquecer, por um pequeno espaço de tempo, algo que me incomodava em profundidade.

Meu grande refúgio, no entanto, eram as aulas de pintura. Certa vez fomos à casa da tia Leda. Em uma das salas de sua casa, vislumbrei uma tela em branco presa num cavalete. Ao seu lado, um pequeno livro que continha, na sua capa, a imagem do carteiro de Van Gogh. Não tive dúvida: peguei um carvão e desenhei na tela em branco a imagem do pintor impressionista. A partir desse dia Tia Leda me matriculou em um curso de pintura. Esse contato com o mundo das artes, nessa época, talvez tenha sido uma das molas propulsoras de minha profissão atual e de meu interesse pelo mundo das artes.

Assim que voltamos de Belo Horizonte fomos morar na Bela Cintra. Nessa época eu, minha mãe e meu irmão íamos, com frequência, visitar o meu pai no presídio Barro Branco. Lembro-me da ambrosia, dos desenhos em pirogravura, das conversas com o Ariston, das pinturas do Guerra, da revista da polícia, da greve de fome vivida pelo meu pai.

Mas, talvez, um dos dias mais marcantes de minha vida, foi o dia em que meu pai foi solto, o mesmo da aprovação da Lei da Anistia. Ele descia a rampa do presídio, com uma pequena mala na mão. Estávamos ali, novamente, a família reunida, fora do espaço confinado das quatro paredes da prisão.

Hoje, tenho 47 anos e com muito orgulho me chamo Priscila Almeida Cunha Arantes, filha do Aldo e da Dodora, irmã de Andre, casada com Wagner e mãe de Tiago e Carolina.

Para muitos, o nome é um bem. A continuidade do nome como referente da pessoa pode, em alguns casos, não se interromper com sua morte necessariamente. Alguns nomes permanecem vivos na memória de outros homens, principalmente quando se referem a nomes que contribuíram para a construção de uma história coletiva.

Trago comigo esta história marcada por um duplo nome: um nome clandestino e um nome verdadeiro. Sinto orgulho dos meus pais: pessoas, nomes, que lutaram e contribuíram para a construção de um mundo melhor e que possibilitaram a mim, Priscila Almeida Cunha Arantes, desfrutar da vida em liberdade!

Priscila Guimarães Silva: presente!

Priscila Arantes, formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é pós-doutora em Arte Contemporânea pela Penn State University (EUA). É professora universitária em cursos de graduação e pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretora e curadora do Paço das Artes, Museu da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Entre suas publicações destaca-se Arte @ Mídia: perspectivas da Estética Digital, finalista do 48 prêmio Jabuti, Arte: História, Crítica e Curadoria (org.). e Re/escrituras da Arte Contemporânea: História, Arquivo e Mídia (prelo).


Aldo Silva Arantes

Nasceu no dia 20 de dezembro de 1938, em Anápolis (GO). Iniciou suas atividades políticas no movimento estudantil secundarista.

Estudante de direito da Pontifícia Universidade Católica, do Rio de Janeiro, foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em julho de 1961.

Em dezembro de 1963 casou-se com Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes. Após o golpe militar de 31 de março de 1964, que derrubou o presidente Goulart, exilou-se em Montevidéu.

De volta ao Brasil em 1965, passou a viver na clandestinidade. Em 1968, quando realizava trabalho político junto aos camponeses no sertão de Alagoas, foi preso. Após cinco meses e meio fugiu da prisão.

Em 1972, juntamente com a maior parte dos militantes da AP, ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), cujo comitê central passou a integrar.

Em dezembro de 1976 foi novamente preso quando participava de uma Reunião do Comitê Central do PCdoB, no bairro da Lapa, em São Paulo, episódio conhecido como Chacina da Lapa.

Em julho de 1977, foi condenado a cinco anos de prisão. Permaneceu preso até agosto de 1979, quando foi beneficiado pela anistia aprovada pelo Congresso.

Em 1979, filiou-se ao partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Exerceu o mandato de deputado federal por quatro vezes e foi constituinte em 1988.

Autor dos livros : História de Ação Popular – da JUC ao PCdoB, co-autor, com Haroldo Lima (1984) ; O FMI e a Nova Dependência (2002); Meio Ambiente e Desenvolvimento – em busca de um compromisso (2010); Alma em Fogo – memórias de um militante político (2013).

[Fonte: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001]

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, a Dodora

Nasceu em 5 de novembro de 1940, em Belo Horizonte (MG). Foi uma das fundadoras da organização Ação Popular (AP), na década de 1960. Em 1968 foi presa em Alagoas junto com seus filhos Priscila e Andre. Após sair da prisão seguiu com a militância clandestina de combate à ditadura militar.

Foi uma ativa e importante militante da luta pela anistia no Brasil. Participou da fundação do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo (CBA/SP) e foi dirigente dos Movimentos Nacionais pela Anistia (1978-1982).

Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi coordenadora Geral de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (2009-2010). Foi membro das Comissões de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e do Conselho Federal de Psicologia ( 2004-2008 e 2011-2013).

Autora dos livros: Pacto Re-Velado: Psicanálise e Clandestinidade Política (1994) e Tortura (2013).

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