Eu acho que, de certa forma, esta infância roubada que nós tivemos, por conta da ditadura, nós começamos a recuperar em Cuba e, com a ajuda da Damaris, que foi esse muro poderoso, mesmo ela não estando muito bem de saúde na época em que saiu da cadeia. Ela nos ajudou muito a superar a nossa infância roubada. E, principalmente, eu quero fazer um agradecimento à Revolução Cubana, que foi a pátria de muitos brasileiros e a casa de muitos brasileiros que lá estiveram.

A gente começa a relembrar das nossas fases em Cuba, e me lembro também que lá, inclusive, nós chegamos a instituir, com a ajuda dos cubanos, uma escolinha onde a gente aprendia Português, História do Brasil, Geografia. Acho que até conseguiram uns discos. A gente cantava o hino do Brasil e comemorávamos o 7 de Setembro no ICAP (Instituto Cubano de Amizade com os Povos). Os cubanos sempre lutaram para que os nossos pais não deixassem a gente esquecer o nosso idioma pátrio. E nunca faltavam comemorações pátrias nossas, quando nos reuníamos para cantar as nossas músicas.

Lembro-me que o grande herói da Revolução Cubana, das lutas pela independência, José Martí, dizia que ele queria colocar na Constituição de Cuba, quando triunfasse a luta contra o colonialismo espanhol, que a lei primeira da República fosse a dignidade do homem. E isso nós encontramos em Cuba. O eixo principal daquela sociedade é a dignidade plena do homem.

Então, todos nós que passamos por lá nos tornamos marxistas, porque Marx é uma ferramenta para a gente entender o que acontece nesta sociedade. Mas acho que, com certeza, nos tornamos martianos.

Quem aqui não escutou a Guantanamera com os versos de Martí? Então, todos nós saímos de lá amantes do Martí. E aprendemos esse sentido da dignidade em Cuba, de valorizar o ser humano em primeiro lugar. A respeito da nossa vida, não guardo mágoas. Todos nós somos pessoas muito alegres. Atualmente, eu agradeço a Cuba porque sou professor de espanhol. Cuba também me deu um idioma, me deu a cultura. Agradecemos muito, aprendemos muito da cultura cubana, aprendemos muito do Brasil em Cuba. Os cubanos sempre tiveram essa preocupação.

E a respeito da nossa vida na clandestinidade, eu lembro das muitas mudanças de casa quando os meus pais entraram na clandestinidade. E sempre aquela agitação, muitas reuniões nas casas por onde a gente passou. Estivemos em Santos, em Embu Guaçu e outros lugares, até que a gente foi parar em Atibaia. E como não conseguíamos mais frequentar a escola por conta dessa clandestinidade, a Damaris estava nos alfabetizando no dia em que a casa foi cercada. Foi muito rápido. Muito nervosismo. Todo mundo sabe o que acontecia com os militantes quando caíam na mão da polícia. E o meu pai, de origem nordestina, dizia: “Nunca vou me deixar pegar vivo!”. E, de fato, foi o que aconteceu. Eles entraram e houve um tiroteio dentro de casa. Acho que eu fui o primeiro a sair quando cessou o tiroteio. E quando eu saí, ele estava sentado ao lado do tanque. Acho que ele já estava praticamente morto. Estava sem camisa. Tinha tomado muitos tiros. E eu fiquei desesperado, enlouquecido.

A minha mãe saiu com a Telma no colo e depois atrás veio a Denise. Depois entramos de novo e aí se gerou aquele impasse dentro de casa porque eles nos encurralaram em um canto da cama. Uns achavam que deviam matar a gente ali mesmo. Outros, diziam: “Não, vamos esperar, vamos aguardar”, e ficava aquele impasse, aquela tortura em cima da gente com as armas apontadas. Talvez, pelo fato de quererem tirar informação do que estava acontecendo, naquele momento foi poupada a nossa vida.

Depois, quando nós saímos lá da casa, a região estava toda cercada de soldados do Exército. Eu nunca tinha visto tantos soldados em minha vida. Inclusive, no caminho que nos levava até a estrada principal, eles postaram soldados a cada dez metros. De lá, nós fomos levados para a delegacia de Atibaia. Parece-me que o fato se tornou público e, quando chegamos à delegacia, tinha milhares de pessoas na porta para ver a gente, como se fôssemos selenitas. Ficamos na delegacia até a noite. Até que nos tiraram de lá (primeiro fomos levados para o lar Mariquinha Lopes que era um orfanato em Atibaia). Posteriormente, ficamos sabendo que a Damaris começou a ser torturada ali mesmo na delegacia. E lá permanecemos uma etapa da nossa prisão.

E de vez em quando, acho que umas duas ou três vezes, a polícia veio me buscar para me levar na casa novamente. Aquilo era massacrante para mim. Eu tinha estado ali uma pequena parte da minha infância. Cheguei lá e vi toda a casa revirada. A poça de sangue do meu pai ainda estava ali. E eles queriam que eu desse conta de um buraco de lixo que nós tínhamos num canto da casa. Eles consideravam que talvez tivessem armas ali e eles me bateram com a bainha de facão do meu pai para eu contar o que tinha naquele buraco. Como eu não sabia, chorei e acho que, talvez, eles deixaram de lado porque pensaram que de fato não sabia se havia alguma arma naquele local.

Posteriormente, nós fomos tirados desse orfanato e levados para São Paulo. Lembro que percorremos várias instituições religiosas e eu via que as irmãs acenavam negativamente com a cabeça. Eles queriam nos deixar naquelas instituições e as irmãs não queriam aceitar. E eu escutava os comentários, que diziam que nós éramos filhos de terroristas.
Então, em vários lugares, realmente, não fomos admitidos.

Até que nos levaram para um Juizado de Menores, em São Paulo. Tive muita má impressão porque quando chegamos lá de noite, dormiam três crianças em cada cama. E lá permanecemos durante toda a prisão, com castigos constantes. Às vezes, a gente ficava na sala de tevê, mas tínhamos que ficar com a cabeça para baixo sem poder assistir à TV. Imagine uma criança que gosta de ver TV não poder ver as coisas que gosta. Foi realmente muito massacrante.

Até que um belo dia, a Valquíria, que era a diretora da instituição, foi nos buscar, nos banhou, nos vestiu uma roupa mais ou menos e disse que a gente ia sair do país. E fomos em direção ao DOPS. Pela primeira vez em vinte e tantos dias de cativeiro, nós vimos a Damaris. Estava magra, a coitada. E macabra. Acho que a Telma nem a reconheceu de tão magra que ela estava.

Entramos no ônibus. Havia uma escolta muito grande. Estavam os companheiros que saíram naquele sequestro e fomos em direção do aeroporto. Acho que era Congonhas. Quando nós subimos no avião, estava lá o Mario Japa sentado. Anos depois ficamos sabendo que entraram escondido com ele por trás do avião porque ele não conseguia andar, tinha sido muito torturado. E aí tinha outros companheiros também – a Madre [Maurina Borges da Silveira], o Diógenes [Carvalho de Oliveira], o Otávio Ângelo.

E eu lembro que, também, no avião, foram dez policiais da Polícia Federal para o México. E eles queriam, inclusive, algemar Damaris e ela fez o maior escarcéu. E aí ela já brigou com eles dentro do avião e até que eles acabaram não algemando. Nós chegamos ao México. Lá, aquela movimentação da imprensa internacional e houve uma briga dos policiais brasileiros, inclusive uma pancadaria porque a gente queria descer do avião para falar com a imprensa e a Polícia Federal não queria. Até que acabamos descendo e fomos falar com
a imprensa.

A Damaris deu as primeiras declarações que, aliás, foram muito importantes porque acabou salvando a vida da Eliana Rollemberg. Denunciou para a imprensa internacional que a companheira estava sendo muito torturada. De lá do aeroporto, nós fomos para o hotel. Lembro-me também como foi solidário aquele moço que cuidava da gente, o comandante. Ele encheu uma sacola.

[Neste momento, a mãe de Adilson, Damaris Lucena, o interrompe e complementa:]

Era o comandante do avião. Ele encheu uma cesta de frutas, de doces e disse: “A senhora leva porque não sabe onde vai parar com essas crianças pequenas. Leva isso aqui para eles e a senhora comerem”. Não sei se ele era de esquerda, sei que ele ficou muito penalizado. Ele ficou com a Telma no colo na hora de descer. Eu estava tão fraca que não aguentava segurar a menina. Aí ele pegou a menina no colo e me deu a cesta de lanche. Para mim, foi uma ação muito humana.
E aí nós fomos para o hotel, onde estava toda aquela movimentação. E, de repente, a minha mãe falou: “Bom, agora estão convidando a gente para ir para Cuba”. Nós éramos pequenos, mas imagine o significado para ela, que lutou toda uma vida, ser convidada para ir para Cuba!

Eu acho importante a gente revelar a nossa dor às novas gerações, aos jovens, aos que não vivenciaram essa etapa a história do Brasil. Pobre do povo que deixa esquecer sua memória. Fiquei muito contente quando vi recentemente aquela juventude fazendo escrachos na porta dos torturadores porque a gente pensou: “A nossa causa está garantida, não vão deixar morrer nossa memória”.

O meu consolo é que a juventude está carregando essas bandeiras. E deixar aqui para as novas gerações a memória histórica do país. Até agora nós tínhamos a versão dos torturadores e estamos aqui para ter a versão do povo, contar a sua história e vamos deixar esta memória para as gerações futuras.

Adilson Lucena nasceu em São Paulo no dia 2 de outubro de 1960. É Graduado em Letras com Habilitação em Português e Espanhol pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Trabalha como professor de espanhol. Dá aulas particulares e atua como professor voluntário em vários movimentos sociais.

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