Meu nome é Célia Silva Coqueiro, sou filha de Isaura Silva Coqueiro e Aderval Alves Coqueiro. Meu pai era militante. Primeiro ele foi do Partido Comunista, fez um trabalho de base com os metalúrgicos do ABC, participou da Fundação do Sindicato dos Metalúrgicos e com o avanço do golpe ele acabou caindo na clandestinidade e participando das organizações armadas. Então foi para a Ala Vermelha do PCdoB, e depois, numa divergência, fundou com o Devanir de Carvalho o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), que foi a última organização na qual meu pai militou. Ele foi preso em maio de 1969, quando eu ainda não tinha 4 anos completos. Foi preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, levado ao DOPS/SP e torturado. Ficou três meses incomunicável, sendo torturado, e depois foi levado para o presídio Tiradentes, onde ficou mais uns sete meses.

No total, ele ficou preso um ano e só saiu trocado pelo Embaixador alemão. O rapto do embaixador alemão ocorreu em junho de 1970, um ano depois da prisão de meu pai. O nome dele foi um dos que foi solicitado entre quarenta presos políticos trocados pelo embaixador. Banido, foi para a Argélia e de lá para Cuba, fazer treinamento de guerrilha porque a ideia dele era retornar ao Brasil para continuar a luta.

Depois do treinamento em Cuba, ele retornou ao Brasil num esquema da VAR-Palmares, que foi comandado pelo James Allen. Foi morto fuzilado em 6 de fevereiro, seis dias depois de sua entrada no Brasil, em 30 de janeiro. Na verdade, o aparelho onde ele estava no Rio de Janeiro foi entregue por um dos companheiros com quem treinou em Cuba e que retornou antes ao Brasil. E, naquele momento, trabalhava para a repressão.

Quando eu nasci, em julho de 1965, meu pai militava tanto no sindicalismo como na Ala Vermelha do PCdoB. Ele era muito ativo dentro das atividades políticas e, portanto, muito visado pelas forças de direita, pela polícia política. Lembro-me muito pouco disso porque era muito pequena. Minha irmã, que é cinco anos mais velha, deve se lembrar de muito mais coisas do que eu.

Acho que o nosso psicológico é muito estranho. Às vezes apagamos coisas que não queremos lembrar e lembramos de coisas que queremos. As pessoas me perguntam muito se me lembro do meu pai e o que eu posso dizer é que me recordo de uma visita que fiz a ele quando foi preso. Eu fui ao presídio Tiradentes, onde era proibido receber cigarros e o meu pai fumava muito.

Eu tinha só 3 anos e meio, mas me lembro de uma cena muito clara. Minha mãe me conta que isso realmente aconteceu. Estávamos muito próximas do presídio, já quase entrando. Minha mãe me vestia com aquelas calcinhas cheias de renda e ela enfiou os maços de cigarro na calcinha para poder dar ao meu pai.

Também me recordo que, enquanto meu pai estava preso, minha mãe tinha pontos com os companheiros de organização de meu pai, como o Devanir. Ele pedia para a minha mãe passar informações para o meu pai. E, numa determinada época, ele passou um bilhete todo enroladinho. Minha mãe costurou esse bilhete na barra da saia dela para poder
levar essa informação, que nem ela podia ler, para o meu pai.

Eu não me recordo da fase em que meu pai saiu banido, em junho de 1970, trocado pelo Embaixador alemão. Mas minha mãe conta que nós não fomos ao aeroporto. As notícias saíam no jornal, e meu pai escrevia muito para nós da Argélia. Eu tenho todas as cartas, que anexei junto ao processo de Anistia dele. Tem uma das cartas, inclusive, que ele manda para os companheiros do presídio

Tiradentes. Eu as guardo com muito cuidado, já estão todas amarelinhas, se desfazendo.
Ele sentia muitas saudades, e as cartas erammuito íntimas. Ele sabia que todas as cartas seriam interceptadas, e por isso não falava além do que tinha que falar, de saudades da família, das filhas.

Num dos meus aniversários ele me mandou um cartão com um cachorrinho. Eu tive um cachorrinho dado por ele e que se chamava Brinquedo, mas, sem querer, meu pai acabou o matando atropelado. Tenho esse cartão até hoje. Tenho todas as coisas, como uma caneta que ele fez para nós no Presídio Tiradentes. São coisas que a gente guarda com muito carinho. Na verdade, é um tesouro familiar. Papai sabia que as cartas estavam sendo interceptadas. Ele mandou uma para os companheiros do presídio Tiradentes, principalmente direcionada aos Carvalhos, com quem tínhamos uma relação muito especial. Éramos como uma família, da mesma organização política e tínhamos um vínculo muito forte de amizade. Meu pai mandou cartas para minha mãe mesmo sabendo que seriam interceptadas. Ele enviava as cartas de Cuba para Argélia e de lá um companheiro mandava com endereço da Argélia para a minha mãe. Então ela achava que ele, de fato, estava na Argélia. Nós nunca imaginamos que eles estivessem em Cuba treinando. Ele ficou pouco tempo na Argélia. Foi para lá em julho e no final do mesmo mês, começo de agosto, já tem registro dele em Cuba, visitando a Damaris, a tia Tercina. Ele ficou uns três, quatro meses em treinamento em Cuba. Foi um treinamento meio relâmpago e então ele pediu para o James fazer um esquema de retorno ao Brasil.

Recebíamos essas cartas e realmente achávamos que meu pai estava na Argélia, até porque dizia que estava preparando a nossa ida para lá: “Sinto muitas saudades, mas estou me estabilizando para poder trazê-los, uma vez que estou banido”. Ele sabia que a repressão lia essas cartas e as escrevia de propósito.

Minha mãe recebia cartas do meu pai semanalmente e por isso estranhou quando ficou quinze, vinte dias sem notícias, nem carta, nem cartão. Ela pensou que talvez ele estivesse viajando pelo interior da Argélia. E, então, ficou sabendo da morte dele por uma vizinha, que viu no noticiário, e foi até a casa da minha mãe e disse “Isaura, o seu marido é Aderval Alves Coqueiro? Acabaram de matar ele no Rio de Janeiro, num tiroteio”. O Vitor Papa Andreu, que foi a pessoa que entregou ele, sabia desse esquema.
Inclusive o próprio companheiro de organização, o Devanir que também estava clandestino aqui no Brasil, não sabia que meu pai estava retornando. A Pedrina, viúva do Devanir, conta que quando ele soube a notícia no aparelho e ele levou um susto tão grande quanto a minha mãe. Ele ficou enlouquecido quando viu a notícia no jornal. Ele jogou o jornal em cima da mesinha de centro e começou a chorar. Essa foi a reação que ele teve.

E a minha mãe leva um susto tal que a primeira reação dela foi ligar para a Dra. Nina, advogada que dava apoio à Ala Vermelha, MRT. Ela falou “Isaura, pegue as meninas, o seu sogro, vá ao Rio de Janeiro e peça o corpo dele. Você é a esposa dele”. E minha mãe fez exatamente isso. Lembro-me que foi uma Kombi que nos levou até a rodoviária para embarcarmos para o Rio de Janeiro. A única coisa que eu me recordo desse dia é a minha mãe chorando. Quando a vizinha foi avisá-la, ela abaixou a cabeça e eu deitei no colo dela para ver porque ela chorava. Eu não sabia que o meu pai estava morto, a minha mãe não falou.

Minha mãe é uma pessoa muito forte, raramente chora. Então eu acho que essa minha reação de deitar no colo dela e olhar é porque eu queria ter certeza que ela estava chorando. Só fiquei sabendo da morte quando chegamos no Rio. Foi uma viagem muito longa, nós fomos de ônibus, chegamos de madrugada. Logo cedo fomos procurar pelo corpo do meu pai. Era semana de Carnaval, dia seis, sete de fevereiro e me lembro que chegamos e tivemos de retornar para São Paulo sem ver meu pai. Chegando lá, minha mãe falou: “Mataram o pai de vocês. Ele voltou [para o Brasil] e fuzilaram ele e nós estamos aqui para poder enterrá-lo”. No Rio, disseram para minha mãe e para o meu avô, pai do meu pai, que não poderiam entregar o corpo, porque era Carnaval, feriado e eles estavam fechados.

Primeiro minha mãe foi ao DOPS, onde falaram: “Nós não sabemos, ele deve estar ali no IML em frente”. Ela foi ao IML e lá disseram que não iriam atender. “E quando vocês podem atender?”, minha mãe perguntou. “Nós podemos atender quando passar o Carnaval”, disseram. Retornamos a São Paulo, esperamos passar três, quatro dias e voltamos ao Rio no primeiro dia útil com o meu avô. Lá, falaram que era melhor o meu avó entrar para reconhecer o corpo, porque a minha mãe estava muito mal e o corpo estava muito machucado. Meu avô entrou. Acho que ele ficou com essa impressão na cabeça dele até os últimos dias de sua vida porque sempre que me via, falava: “Minha filha, quando puxaram a gaveta onde seu pai estava, tinha sangue embaixo, o sangue estava coalhado”. Porque passaram muitos dias e o corpo dele parecia uma renda.

Meu avô comparava o corpo do meu pai como uma renda. Foram mobilizados cinquenta homens para pegá-lo. Foi uma operação tão gigantesca, tão absurda para pegar um homem. E eles abriram fogo mesmo, como os vizinhos contam. Ano passado fui visitar o aparelho onde meu pai estava, e a companheira que levava alimentação no aparelho, contou que procurou os vizinhos, que contaram que ele tentou fugir, pulou o muro, correu e quando estava subindo, escalando o muro, que era muito alto, abriram um fogo assim sem tamanho e o fuzilaram. Então ele estava muito furado mesmo. Imagino que foi por isso que o meu avô ficou com essa impressão. Ele ficou falando isso até os últimos dias de vida. Toda vez que ia visitá-lo no aniversário ou no Natal ele falava isso. Morreu há cinco anos. Meu pai era o filho caçula. Eram duas meninas e um menino e nós, nem o meu avô, nem minha mãe, nunca mais fomos os mesmos depois desse fato.

Eu me lembro do meu pai no caixão e da minha mãe se debruçando, se jogando em cima e passando a mão na testa dele, onde havia um hematoma muito grande. Não sei se bateram nele depois dos tiros ou se o machucado foi porque ele caiu. Inclusive o meu avô disse que o corpo também estava muito machucado, tanto que a gente tinha dúvidas se não tinham levado ele vivo e o torturado. Depois é que ficamos sabendo que não, realmente ele morreu na hora. Lembro-me dela se debruçando em cima do caixão e me lembro muito claramente da cor dele, que era violeta escura.

E aí nós o enterramos, eu me lembro da caminhada dentro do cemitério, o caixão na frente. Retornamos naquela situação terrível. Também havia um monitoramento em cima da casa do meu avô. Nós morávamos com ele em Diadema e ele foi levado, inclusive, porque achavam que a minha mãe e o meu avô sabiam do retorno do meu pai. Quando levaram o meu avô para interrogatório, os companheiros começaram a ficar com medo de também levarem a minha mãe, que estava em frangalhos.
Todos estávamos, mas ela nunca se recuperou, nunca conseguiu recompor a vida amorosa, nunca mais se casou. Ela ficou com
um trauma muito violento. Guardou por muitos anos uma camisa do meu pai, a última camisa. Ela devia ter essa camisa guardada até pouco tempo. Temos também todos os documentos do meu pai (carteira de reservista, identidade, carteira de trabalho) até hoje guardados. Meu pai quando caiu na clandestinidade entregou para a minha mãe e disse à ela: “Isaura, esses documentos não me servem para mais nada, guarde que para você talvez algum dia sirvam”.

Então os companheiros acharam melhor começar a fazer a articulação da nossa saída para fora do Brasil. O viável seria o Chile, onde estava o Salvador Allende. O pessoal que corria perigo aqui no Brasil acabava indo para lá, que era um governo democrático, muito aberto e tal. Acabamos indo para lá. Meu pai foi morto em fevereiro de 1971 e nós saímos só em novembro desse mesmo ano, porque a minha mãe tinha muita resistência a sair do Brasil, ela não queria. Na verdade, ela queria ficar com o meu avô, mas os companheiros acharam que era melhor assim por uma questão de segurança. E fizeram muito bem, afinal depois ficamos sabendo que muitas viúvas acabaram sendo presas e até torturadas. E tudo porque achavam, embora não soubessem, que as esposas sabiam coisas. Tanto que a minha mãe conta que quando o meu pai foi preso, que ela ia ao DOPS pedir informações e falavam que ele não estava lá. E eles perguntavam para a minha mãe “Mas você sabia das ações do seu marido?” “Não sabia de nada”, ela dizia. Aí eles chegaram a falar assim: “Ela não sabe de nada agora, mas na hora que ela cair aqui dentro, fala tudo”.

Então existia essa ameaça em cima das esposas dos militantes, até dos próprios filhos. Ficávamos muito vulneráveis, porque não sabíamos o que podia acontecer conosco, existia um medo muito grande. Eu só consegui me sentir totalmente segura quando cheguei em Cuba. Nem no Chile me sentia totalmente segura. Sentia-me tão insegura nessa situação de ter que correr, porque a minha vida foi essa: nasci, logo depois o meu pai corria de aparelho para aparelho, porque estava clandestino e a polícia podia chegar a qualquer momento, toda vez que caía um companheiro preso, que sabia a localização do aparelho, a gente saía correndo, largava tudo, tinha que procurar outro espaço. A sensação de insegurança me acompanhou por muitos anos, inclusive no Chile, que era um lugar em que estava o Salvador Allende, e a gente podia se sentir segura. Mas só fui me sentir segura quando cheguei em Cuba, em 1973, por sorte cinco meses antes do golpe do Pinochet, e foram os cubanos, inclusive, que providenciaram nossa ida para lá.

Meu pai morreu muito cedo, com 33 anos, mas devo dizer que ele foi muito afortunado, porque teve os melhores amigos e companheiros que um homem poderia ter. Nós fomos muito, muito amparados pelos companheiros, foram a minha família. Eu digo que cresci no exílio, cresci em Cuba e as minhas tias são a minha família da Revolução, dos companheiros que foram presos com o meu pai, que foram torturados e que lutaram pela mesma causa, uma causa justa. Porque meu pai não era terrorrista, só queria a justiça social, acabar com a exploração, queria que todos pudessem ter uma vida digna, que, diga-se de passagem, naquela época os operários não tinham a vida que têm hoje, porque de lá para cá já tivemos muitas conquistas.

Eu perdi o meu pai, mas acho que não foi em vão ele ter lutado tanto. O preço foi alto, mas nós ganhamos a guerra moral. Perdemos a guerra bélica; mas ganhamos a guerra moral. Estamos aqui denunciando os assassinos, facínoras, torturadores, que não respeitaram nem crianças, porque até as crianças dos companheiros eram presas.

Falamos da família da Revolução porque crescemos juntos, foi essa família que eu conheci. Só fui conhecer a minha família de sangue com 14 anos, depois da Anistia. Eu não tenho vínculo muito forte com a minha própria família de sangue porque a ditadura me tirou isso. Claro que tenho o outro lado, a riqueza dos companheiros, como eu falei, o meu pai foi afortunadíssimo, porque teve companheiros que arriscaram as suas vidas para nos tirar dos aparelhos, quando o meu pai foi preso, como foi o caso do Roberto, do James Alley, que nos tirou do aparelho. E temos os companheiros que articularam a nossa saída do Brasil, os que nos receberam no Chile como o Rafael de Falco Neto, figura fantástica. Ele até aconselhou a minha mãe, que queria voltar do Chile para o Brasil: “Não, Isaura, vá para Cuba, lá as meninas vão poder estudar, vocês vão ter tranquilidade”.

Um ano, um ano e meio depois da morte do meu pai a minha mãe ainda estava totalmente desnorteada e ficou por muitos anos assim. Estou falando o nome de alguns companheiros, mas evidentemente temos inúmeros, inclusive os companheiros cubanos, que nos receberam com tanto amor e nos deram tudo.

Em agosto de 1979, retornei ao Brasil com a Anistia. Foi incrível, porque voltamos nos dia em que foi decretada a Anistia. O advogado Idibal Pivetta foi a Cuba justamente para poder formatar, estruturar o nosso retorno para o Brasil, porque como nós não tínhamos nem passaporte, precisávamos retornar com o salvo conduto da ONU. A Anistia estava para sair e o Idibal sabia disso. Ele alertou a minha mãe, mas ela não queria esperar, “Não, eu quero retornar”, já retornaram outros companheiros, faltavam cinco meses para a Anistia e a minha mãe falou “Não, pode fazer o meu retorno” e aí o Idibal começou a trabalhar nisso.

Quando saímos de Cuba, ficamos uma semana no Peru aguardando o salvo conduto da ONU, as passagens e tudo. E aí chegaram as passagens e, no dia que íamos embarcar, fomos ao centro de Lima, porque a minha mãe queria fazer umas compras. E quando retornamos, escutamos no rádio do táxi: “No Brasil acabou de ser decretada a Anistia ampla”. Ou seja, nós embarcamos meia-noite, chegamos cinco, seis horas da manhã e fomos os primeiros a pisar no solo brasileiro, já com a Anistia decretada. E o meu pai foi o primeiro banido a retornar morto.
Aí fomos reestruturar toda a nossa vida no Brasil, que não foi fácil. No meu caso, conhecer a família de sangue, que eu não conhecia, porque saí muito pequena do Brasil. A família que conhecia era a dos companheiros de luta dos meus pais. Tivemos infância perdida e meia juventude perdida também, porque a gente leva sequelas, que não são poucas, são muitas.

Voltei de Cuba com 14 anos. Já estava terminando o ginásio, cheguei aqui e fui concluir o ginásio no Colégio Equipe. Depois continuei fazendo colegial, fui prestar vestibular, fui aprender o português, porque falava português com a minha mãe em casa, mas não sabia escrever, não tinha gramática. Fui alfabetizada em espanhol. Então, a minha primeira língua pode-se dizer que foi o espanhol. Dessa forma, cheguei no Brasil e fui aprender a escrever o português, eu fui aprender geografia, história brasileira. Até então eu sabia a história, geografia de Cuba, os heróis cubanos,
Antonio Maceo, José Marti, mas não sabia quem era Tiradentes. Então, com 14 anos comecei a aprender o que era o meu país. Nos foi tirada muita coisa, sim.

A ditadura nos tirou a infância, nos tirou metade da juventude, nos deixou com sequelas. Nos tirou nossos pais guerreiros, militantes, tios. Paradoxalmente, nos deu uma bagagem de vida, que poucos têm, porque nós, hoje, temos maturidade. Nós, essas crianças, acabamos amadurecendo à força, a ferro e fogo. Com 13 anos, eu lia A Revolução dos Bichos e 1984. Porque o povo cubano é muito culto. Eles podem não ser ricos financeiramente, mas é um povo muito culto, porque se promove muito a leitura, o debate. Até nisso na escola, na volta ao Brasil, eu era muito mais madura que as minhas colegas. Foi muito difícil entender a linguagem, por exemplo, porque enquanto eu falava de militância política, elas falavam de outras coisas que para mim eram totalmente alheias ao meu conhecimento.

Isso é o que me lembro da minha infância. Foi uma infância dolorida. Tivemos uma perda grande. Não só a do meu pai mas a de outros companheiros. Eu cresci escutando histórias de companheiros que foram mortos, torturados (o meu pai, inclusive, porque as marcas das torturas eram evidentes quando íamos visitá-lo na prisão). Mas nunca se acostuma a escutar. Sempre que escutamos um novo relato é muito doído, dói demais. E é uma sequela que se leva, mas também levamos essa experiência, essa bagagem toda.

Postei a foto do meu pai uma vez, tirada no Presídio Tiradentes, e o Gregório, filho do Virgílio, que cresceu com a gente em Cuba, perguntou para mim “O que você diria para esse jovem, porque hoje você é mais velha do que ele?”. Porque meu pai era jovem, tinha 30 anos quando foi preso. Eu respondi: “Faria exatamente igual a ele, nem um milímetro diferente, nada”. Acho que ele foi um grande guerreiro. Eu o perdi, mas tenho certeza que até o momento do último suspiro ele não se arrependeu, porque estava lutando por aquilo que acreditava. Ele me deixou esse legado “Lute toda a sua vida por aquilo que você acredita, por aquilo que você acha justo. Mesmo que isso signifique a sua morte, nunca deixe de fazer isso”. É a entrega total de um ser humano para uma causa, isso não tem preço. É um orgulho total dele e dos companheiros dele. Faria tudo igual a ele, acho que ele fez tudo certinho.

Célia Silva Coqueiro nasceu em 25 de Julho de 1965 em São Bernardo do Campo (SP). Filha de Aderval Coqueiro e Isaura Silva Coqueiro, começou a estudar ballet clássico em Cuba e continuou no Brasil. Trabalhou na ASTC (Asociación Sandinista de Trabajadores de La Cultura) em Manágua/Nicarágua durante o processo da Revolução Sandinista (1987 a 1990). Trabalhou no Brasil implantando projetos de formação de técnicos na área cultural focado na dança para crianças carentes no Paraná e em São Paulo. Hoje faz faculdade de Gestão de Políticas Públicas e trabalha no Poder Público de São Paulo.

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