Sou filha de Aderval Alves Coqueiro, assassinado pela ditadura em 1971 e o primeiro preso político banido – enviado à Argélia – a retornar ao Brasil após o seu exílio. Ele foi um dos
quarenta presos políticos trocados pelo embaixador alemão Von Holleben, em junho de 1970.

Essa é a primeira vez que nós filhos somos ouvidos. É a primeira vez que temos a oportunidade de abrir o coração e falar sobre essas mazelas e sobre um momento histórico que para nós, crianças naquela época, foi muito difícil.

Nós, como crianças, não tínhamos capacidade de compreender tudo. Isso é um pouco problemático, e o momento histórico era aterrorizante.

A importância deste momento é conseguirmos relembrar e falar pela primeira vez sobre os efeitos daqueles momentos difíceis nas nossas vidas. Eu nasci em 1960, tinha 4 anos quando se deu o golpe.

Na época, acho que ainda estávamos em Brasília, porque meu pai era baiano e migrou para Brasília quando eu era muito pequena. Foi candango lá e viemos para São Paulo quando eu ainda era muito pequena. Em São Paulo, começou a trabalhar como operário, no ABC.

Lembro bem da nossa vida a partir do momento que moramos no ABCD, em Diadema. Ele já era integrado à luta, porque foi em Brasília que entrou no movimento. Minhas primeiras lembranças, apesar de vagas, são dos desaparecimentos, porque de vez em quando ele sumia por uns dias, não havia muita explicação para isso. E, por vezes, havia algumas reuniões lá em casa. E quando a situação foi ficando mais aguda e começaram as perseguições mesmo, aí começaram a se dispersar.

Foi nessa época que começamos a deixar um pouco de viver a vida familiar, porque cada vez menos dava para vivermos juntos. E comecei a ouvir que tínhamos que ter cuidado com o que falávamos na escola, não podíamos brincar com a amiguinha da vizinha, não podíamos ficar fora do portão na rua brincando. Era uma série de coisas que não conseguíamos entender na época. Eu tinha 7 anos e não conseguia entender o porquê daquela situação.

Comecei a perceber o que estava acontecendo quando tivemos que fugir para valer pela primeira vez, porque o meu pai já estava sendo procurado. E nós tínhamos que começar a viver nos chamados aparelhos, que eram casas
e apartamentos clandestinos, considerados mais seguros.

Nós moramos no Mato Grosso, na Bahia, voltamos para São Paulo. Mudávamos constantemente, não podíamos ficar em uma mesma escola o tempo todo. Tínhamos muito medo, muita insegurança. Depois comecei a entender que eu podia perder o meu pai. Eu acho que foi aí que comecei a sentir mais medo. Quando meu pai teve que ir para a clandestinidade, a vida ficou complicada.

Quando tivemos que nos mudar de Diadema, eu tinha 7 ou 8 anos. Nós fomos de Kombi para o Mato Grosso e ficamos na casa de um primo da minha mãe ou meu pai, que tinha um sítio, onde moramos por um tempo. Meu pai ficou um período curto conosco, logo depois voltou para São Paulo. Eu acho que a maior preocupação dele naquele momento era garantir a segurança da minha mãe e das filhas.

No regresso a São Paulo, numa noite, foi alugada uma casa, em Santo Amaro. Lá não tinha fogão, camas, geladeira. Porque a gente simplesmente mudava de um minuto para o outro. Alugamos a casa num dia, e na manhã seguinte, num posto de gasolina, os companheiros foram avisar que meu pai tinha sido preso. Nós tivemos que sair novamente da casa por questões de segurança.

Quando meu pai ainda estava preso, me magoou muito eu não poder vê-lo em todas as visitas na cadeia porque tinha que estudar. Eu tinha que avançar no estudo porque estava atrasada.

Quando ele foi preso, passou-se um tempo sem que ninguém soubesse dele. Minha mãe saía constantemente, de delegacia em delegacia, porque ela sabia que ele tinha sido preso, só que não sabia se estava vivo, morto, em que lugar ele estava. Lembro-me desta procura constante.

Foi um alívio quando ficamos sabendo que estava preso, foi a confirmação de que ainda estava vivo. Mas ele estava na condição de incomunicável, não podíamos ir visitá-lo.

Logo que começamos visitar o meu pai, ele tinha sido muito torturado.

As visitas continuaram por um tempo, e depois a troca dele pelo embaixador alemão, junto com outros companheiros, que foram para a Argélia. E veio o medo novamente, porque achávamos que como ele havia sido banido e desterrado, não fôssemos vê-lo nunca mais.

Além disso, naquela época, financeiramente, ao menos para nós, uma viagem, era algo inalcançável, não éramos de família rica ou de família de classe média, que tinha condições de pagar uma passagem internacional para visitar o pai no exterior.

Quando meu pai foi banido, a sensação foi de mistura de um sentimento de felicidade, porque ele não ia mais ser torturado, não ia ser mais magoado, não ia ser mais ferido, com uma sensação de perda, porque eu achei que não o veria nunca mais. Ou, talvez, que fosse vê-lo apenas quando fosse uma adulta e
fosse visitá-lo, porque ele não poderia voltar nunca mais.

Para mim, o exílio do meu pai foi uma perda porque não havia possibilidade de vê-lo nunca mais. Como efetivamente não houve. Só tornei a vê-lo já no caixão para enterrar.

Então, para mim, o exílio do meu pai foi realmente a despedida.  Porque a segunda despedida foi a mais cruel, já no caixão, pois ele foi assassinado depois que retornou ao Brasil em 1971. O momento do enterro do meu pai foi muito complicado, porque deu-se a notícia nos meios de comunicação, com manchetes, como: “Terrorista banido volta ao Brasil e morre”.

Meu pai não era terrorista, para mim ele nunca foi terrorista. O choque foi enorme, porque para nós ele ainda estava no exterior. Nós não sabíamos que ele tinha voltado. Ele foi banido em 1970, e demorou coisa de um ano para voltar.

Nós recebíamos cartas, não com frequência. Eu tenho cópia de várias cartas que ele mandava para a minha mãe. Em todas, falava o tempo todo que morria de saudades de nós. Ele era uma pessoa muito ligada à família. E os companheiros que encontramos aqui e em Cuba falam que ele falava muito em nós, constantemente.

Tenho certeza que essa volta rápida para o Brasil ocorreu porque ele não conseguia viver longe de nós. Ele tinha uma dificuldade enorme com isso. Quando ele foi assassinado, no Rio de Janeiro, nós ficamos literalmente perdidos, perdemos o chão. A pessoa está no exterior e de repente você recebe a notícia que o ser que você ama tanto está morto e está no teu país e você sequer chegou a vê-lo novamente.

Meu avô, que na época não era perseguido, nos deu muita força. Ele falou para a minha mãe: “Nós vamos enterrar o meu filho”. Aí fomos para o Rio de Janeiro. Acho que por muitos anos fiz questão de não lembrar desta viagem.

Quando chegamos ao Rio, era Carnaval. Ficamos num hotel pequeno e barato, numa rua movimentada cujo nome também não lembro. Meu avô foi ao IML para fazer o reconhecimento. Tudo aconteceu de forma muito rápida, não havia tempo para fazer o luto. Acho que nenhum de nós teve tempo de viver o luto na época.

Meu avô reconheceu o corpo, e na hora do enterro, abriram o caixão, a minha mãe beijoulhe a mão, eu olhei, fecharam o caixão, levaram, enterraram e nós voltamos para São Paulo. Foi uma coisa super rápida, sem tempo de assimilar, sem tempo de trabalhar na cabeça sem tempo de pensar.

Depois, em São Paulo, não demorou muito para nós recebermos a informação de que estavam procurando a minha mãe, pelo menos foi o que ouvimos na época. Nós não tínhamos estrutura psicológica, não tínhamos condições de continuar morando na cidade. Aí veio o processo de organização para nos levar ao Chile. Este processo também foi terrível. Não tivemos tempo de luto, de nada. Nem tempo de despedir da nossa família.

Nós sempre tivemos uma dificuldade enorme de relacionamento com a minha própria família biológica, como tias, tios, primas, primos porque não tivemos contato com eles.

Nossa viagem para o Chile foi de horror, parte de Kombi e outra de ônibus. E os companheiros que nos levaram eram clandestinos também. Para chegar ao Chile, passamos pela Argentina. Eu lembro do vento gelado das Cordilheiras dos Andes, até chegar em Santiago, isso tudo uma coisa atrás da outra.

Quando chegamos ao Chile, eu tinha 10 anos. Quando pensamos que teríamos um pouco de tranquilidade, veio a preparação do golpe militar. Chegamos lá um ano e pouco antes do golpe e ficamos por um ano. Também não tenho boas lembranças de quando comecei a estudar, e nem do país, por diversas razões, como essa vida de insegurança, ainda não tínhamos nem tempo de viver o luto e tivemos que chegar lá e continuar tocando a vida. Esta situação constante de estar de um lado para o outro mais as inseguranças e os medos, refletiram para o resto de minha vida.

Somos gratos ao Chile da época do presidente [Salvador] Allende, que foi o único país que naquele momento acolheu muitas pessoas, não só brasileiros. Mas a nossa experiência anterior aqui no Brasil tinha sido muito amarga.

Eu, na condição de criança, não estava preparada para nada naquele momento. Você não tem infância e o fato de não ter infância, é perder referências, não ter raízes verdadeiras. Quando criança, a gente precisa de uma referência de pessoas com quem se conversa, que vão guiar o teu caminho de certa forma.

E, como mudávamos muito, a gente não tinha isso. Porque lugares são referências. Eu fui entender muito tempo depois porque passei por isso, o quanto é importante para uma criança seguir o curso, ficar bastante tempo na mesma escola, com os mesmos amigos, com as mesmas relações. A cada mudança rápida na vida são referências que você vai perdendo e não recupera mais.

Depois, a situação no Chile, a sobrevivência, foi ficando muito crítica, porque começaram a faltar coisas no supermercado, porque a direita boicotava. Nessa época, os grandes empresários estavam junto com a direita, com o [Augusto] Pinochet. E quando se percebeu que no Chile estava havendo uma articulação de golpe, fomos para Cuba.

Um dia à noite chegaram em casa e disseram: “Vocês vão para Cuba”. Com 11 anos, o que significava ir para Cuba? Eu só sei que tudo aconteceu muito rápido. Mais uma vez saí da escola. Nós morávamos em uma casa junto com outra família de exilados, com a tia Ilda Gomes da Silva e moramos também com a tia Dina (Pedrina Carvalho) Aí, um dia nós pegamos a Cubana de Aviación em Santiago e no outro dia estávamos em Havana.

A chegada em Cuba foi na condição de criança que não sabe o que lhe espera, depois de tanta coisa que aconteceu. Mas foi a melhor coisa que aconteceu conosco. Lá nós fomos muito bem atendidos, recebidos, acolhidos.

Aí eu já estava com 11 para 12 anos. Acho que minha irmã tinha 5, 6 anos. Em Cuba, tinha os companheiros milicianos que usavam calça verde, camisa azul. Eu tinha medo de polícia aqui no Brasil, no Chile eu tinha medo de polícia e claro, quando eu cheguei em Cuba, eu tinha medo de polícia.

Os companheiros brasileiros falavam, “Olha, desta polícia aqui você não precisa ter medo. A polícia aqui é amiga, eles não fazem nada, ao contrário. Mas eu lembro que a gente, eu acho que não fui só eu, mas na época a gente queria manter distância de polícia”. Com o tempo, nós fomos entendendo que em Cuba a polícia realmente representava a proteção e não agressão, não assassinato como acontecia no Brasil. Foi lá que realmente eu comecei a ter infância porque aqui não tinha, nós não tivemos infância.

Lá, eu comecei a estudar, a ter círculos de amigos pela primeira vez na vida. Amigos da minha idade, amigos que podia marcar para se encontrar embaixo do prédio onde morava, fazer grupinho de teatro juntos. Os sobrinhos do Guevara inclusive moravam no mesmo prédio que a gente e faziam parte do mesmo grupinho de teatro. E onde morávamos tinha muitos exilados da América Latina, os bolivianos, argentinos, tinha chilenos e mais os cubanos.

Começamos a ter uma vida normal, a aprender como é ter uma vida normal, a gente tinha liberdade de ser criança. Os nossos anos em Cuba foram maravilhosos. Lá tínhamos vários tios e primas, que a gente foi construindo com o tempo, porque eram pessoas que viviam as mesmas experiências, as mesmas dores, viviam nos mesmos lugares e com quem a gente tinha uma identificação muito grande, como a tia Ilda, a tia Dina a tia Cida, tem a tia Clara, mulher do Marighella, tia Damaris, enfim construímos laços.

Nós nunca tivemos antes oportunidade de conversar sobre isso ou colocar para fora esta ferida que a gente carregou e estamos carregando há tantos anos. Porque foram momentos de terror e perda na vida da gente que nós carregamos a vida toda.

Nós não falamos sobre isso porque é um processo, quando se é uma criança, primeiro você quer esquecer. Quando você já passou por tanto terror, medo, perda, quando você chega num lugar onde encontra paz, você quer esquecer
o que aconteceu, prefere não falar, prefere não tocar no assunto e quer desfrutar ao máximo esta paz e segurança que te é oferecida.

E foi o que todos nós encontramos em Cuba. Aí eu retorno para o Brasil, veio a Anistia, aí já não éramos mais crianças, já éramos todos jovens. Todo mundo tinha 18, 19, 20 anos, maiores. Aí vem a proposta do retorno ao Brasil.

A partir de 1979, 1980 começamos a voltar. Se tivessem me dado a possibilidade de escolha, eu não teria voltado, porque as lembranças de quando nós saímos daqui não eram boas. Acho que foram as piores experiências da vida de cada um de nós, e a volta sem perspectiva nenhuma, em mim, provocou medo.

Você volta sem família porque perdeu a sua família biológica, criou novas famílias no exterior, que são os companheiros exilados. E as crianças dos exilados que estão lá que são os teus primos, os adultos passam a ser seus tios, passam a ser suas tias. Você é livre, estuda, aprende, enfim, passa a ser gente, respeitado e de repente volta para o lugar que é teu país, mas é o lugar que te causou as maiores dores de sua vida. E esse processo de retorno é muito difícil, para mim foi extremamente difícil.

Depois do nosso retorno ao Brasil, essa moçada que foi criança para Cuba e voltaram jovens, parece que nos dispersamos de novo. Sempre digo que foi a segunda vez que perdemos a família. Porque a família que nós tínhamos feito lá se dispersa novamente no retorno. Aí é outra ruptura na sua vida.

Depois de alguns anos a gente começou a se procurar, porque cada um viveu as suas experiências, se refez de certa forma, trabalhou, fez família. Cada um criou as suas famílias, casou, separou. Mas todo mundo conseguiu, achou o seu caminho, mesmo com dificuldades. Estamos querendo criar uma espécie de grupo dos Pátrias, da turma que esteve em Cuba. Porque Cuba, sem dúvida, é o nosso país também.

Em Cuba, a última escola que eu estudei foi a Héroes de Varsovia. E, antes eu estudei lá na Orestes Gutierrez que era do primário a secundário. A Héroes de Varsovia era uma escola onde eu ficava a semana toda. Só aos finais de semana eu ia para casa. E lá nós tínhamos trabalho voluntário, estudávamos, tinha atividades culturais, uma escola mesmo. Não era só tempo integral, mas era interna.

E aos finais de semana quando a gente ia para casa de vez em quando tinha atividade, porque os companheiros brasileiros exilados organizavam atividades. Eu não achava nem muito agradável ir a essas atividades, ia mais por uma questão de compromisso político em relação aos companheiros, mas não porque eu gostava. Acho que trazia à tona muitos traumas e lembranças amargas.

Aí depois a gente passa para uma etapa que quer lembrar porque depois de adulto começo a tentar entender o que tinha acontecido realmente comigo. Com alguns medos e inseguranças que eu tenho até hoje, eu queria saber de onde eles tinham vindo. Aí você começa a perceber que são daquela época. Mas isso nunca foi ouvido por ninguém também.

Primeiro, foi a sensação de insegurança. No início, eu não conseguia me adaptar de todo aqui no Brasil. Eu tive um problema sério de adaptação. Mesmo depois que eu voltei de Cuba, eu morei muitos anos fora do Brasil. Fui para a Nicarágua, como Brigadista de Solidariedade à Nicarágua. Voltei para o Brasil e recebi uma proposta de voltar para lá e trabalhar com o Centro de Educación y Promoción Agrária. Aí trabalhei lá por dois anos que foi quando eu conheci o meu ex-marido. Depois fui para a Alemanha, trabalhei, estudei, morei lá, enfim, vários anos. Voltei definitivamente para o
Brasil em 2006. Foi aí quando eu finalmente percebi que não tinha uma boa relação com o Brasil. Aí eu consegui entender isso, percebi porque comecei sentir uma necessidade de voltar para o Brasil.

Essa necessidade que eu senti de voltar para o Brasil não é porque eu consegui resolver todos os traumas do passado, porque eu acho que jamais ninguém de nós vai conseguir resolver completamente tudo o que aquela situação nos provocou, mas pelo menos você entende “Eu sou assim por conta de tal situação… a minha vida ficou muito mal resolvida de tal a tal época, por isso… eu nunca consegui resolver a minha vida naquela época por tal situação”. Ou seja, todas as experiências ruins que preferimos esquecer por anos e anos refletem-se na vida adulta, de alguma forma.

Eu acho que esse trabalho que está se fazendo hoje de nos ouvir, para mim especialmente, está sendo fundamental. Porque a gente consegue falar pela primeira vez com o coração, sobre isso… sobre aquela época.

O meu avô foi um homem muito especial. Ele era um operário e apesar de não entender direito o que acontecia, ele dava apoio incondicional ao meu pai, ficamos muito tempo sem contato com ele. No que precisamos dele, ele esteve presente. Cheguei a vê-lo vivo depois que voltamos de Cuba. Ele ainda estava vivo e nós tivemos a felicidade de conviver um pouco com ele.

E como eu disse, foi uma pessoa muito importante na minha vida, que sempre nos apoiou muito. Inclusive, foram ele e uma prima minha que nos deram o maior apoio depois que nós voltamos de Cuba, porque nós não tínhamos para onde ir, não tínhamos casa. Você volta sem casa, sem família, sem raízes, é um horror. Até hoje eu sinto a sensação e sem dúvida nenhuma Cuba para mim representa o meu porto seguro. E eu me propus ir a Cuba todos os anos, se der.

Eu estive lá em novembro do ano passado e a primeira coisa que fiz foi ir em frente ao prédio que eu morava. Quando eu chego lá é assim: grito o nome de um ou de outro e o pessoal já sai dos apartamentos, vem, abraça, a gente morre de rir e relembra os velhos tempos. O mais impressionante para mim é que mesmo com os anos fora de Cuba, cada vez que a gente chega lá é como se tivesse continuado lá. Essa sensação é muito boa.

Se hoje eu pudesse fazer a escolha, eu moraria em Cuba, sem dúvida.  Tenho grandes amigas lá, amigos, e pessoas que são muito importantes para mim.

Eu tenho uma filha, a Janaína, que está morando na Alemanha. Ela nasceu aqui mas cresceu lá e ficou difícil para ela voltar quando eu decidi retornar. Agora moro em Brasília e minha mãe em Campinas, no interior de São Paulo.

Acho que sem dúvida nenhuma, um dos pontos fundamentais que levaram à volta do meu pai ao Brasil foram as saudades que ele sentia. Há pouco tempo eu li um livro Seu Amigo Esteve Aqui A História do Desaparecido Político Carlos Alberto Soares de Freitas, de Cristina Chacel, em que um dos companheiros que esteve com ele na época fala sobre isso. Ele conheceu bastante o meu pai e disse que duas coisas que fizeram meu pai retornar ao país foram: um era a saudade insuportável da família e a outra coisa era a necessidade de continuar a luta.  Eu jamais vou culpar o meu pai por causa disso. Ele fez o que achou certo e eu o respeito e admiro, mas logicamente se ele tivesse ficado no exterior e tivesse trabalhado um pouco mais este sentimento, talvez estivéssemos juntos hoje.

Eu não acho que o Brasil seja um país que proporciona segurança para ninguém. Eu nunca tive a sensação de acolhimento aqui. É uma coisa que eu tento entender até hoje, não conversei isso com o resto dos amigos, dos companheiros da minha geração que voltamos do exílio, mas tenho certeza de que cada um de nós tem esta sensação. Apesar de ter voltado, todos nós tivemos uma dificuldade muito grande de readaptação.

Primeira dificuldade que nós tivemos é que você sabe da história da colonização da América Latina pelos espanhóis, aprende história não com Pedro Álvares Cabral, mas com Cristóvão Colombo. Aprende literatura, mas estuda Rodolfo Becker, Cervantes (literatura espanhola). Nós saímos daqui daquela maneira como crianças, fomos exilados, de forma involuntária e quando você volta ao seu país, o seu próprio Estado, o Ministério da Educação olha para você diz: “Não, o que você estudou não serve, nós não vamos reconhecer”. Você se sente novamente rejeitado, se sente novamente não filho deste país. Se você se forma em Cuba, reconhecer o diploma aqui é uma dificuldade.

Uma coisa para mim foi crucial: a emoção que eu sinto cada vez que eu volto para o Brasil. Comecei a entender de forma mais profunda porque Cuba para mim é muito mais pátria que o Brasil. O meu sentimento com relação a Cuba cada vez que eu desembarco lá e o meu sentimento cada vez que eu desembarco no Brasil são diferentes, emoções diferentes. Porque lá eu fui acolhida, eu fui respeitada, aqui eu nunca fui realmente acolhida.

Quero expressar a minha gratidão aos companheiros que ficaram no Brasil e continuaram a luta de resistência contra a ditadura, presos ou soltos e clandestinos, foram parte  fundamental para a redemocratização do nosso país.

Suely Coqueiro nasceu em Prado (BA), em 29 de novembro de 1960. Atualmente mora e trabalha em Brasília (DF).

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <strike> <strong>