por Marta Nehring

Eu nasci em janeiro de 1964, o ano do Golpe. Minha mãe, à época, tinha 20 anos e estudava Ciências Sociais na USP, que nessa época ficava ainda na Maria Antônia. Meu pai, também jovem, trabalhava na Pfizer, como técnico industrial e fazia pós-graduação em Economia, na USP. Ambos eram de esquerda e militavam juntos, porém apenas o meu pai partiria para a luta armada.

Minha mãe teve uma criação liberal. Meu avô era um livre pensador, foi dono de livraria. E a minha avó, que tivera um pai repressor e violento, teve por princípio jamais levantar a mão para os filhos. Juntando os dois lados, resultou que eles cultivaram a irreverência como modo de ser. Tanto, que o meu tio João, irmão mais velho da minha mãe, também entraria para a guerrilha. Já na família do meu pai o espírito era outro. Minha avó vinha de uma história triste, perdera o marido cedo, quando meu pai tinha apenas 3 anos de idade – ele era o primogênito. Meu avô paterno morreu num desastre aéreo na Baía da Guanabara, deixando minha avó viúva e grávida do terceiro filho. Aliás, toda vez que eu pouso no aeroporto Santos Dumont, morro de medo.

Enfim, nasci e logo depois veio o Golpe. De forma que minha infância foi ligada à trajetória política dos meus pais e esta, por sua vez, à trajetória da ALN – Ação Libertadora Nacional. Inclusive, se eu tenho algum avô paterno, é o Toledo, Joaquim Câmara Ferreira, que estava sempre em casa e a quem reencontramos em 1969 em Havana, Cuba.

No que diz respeito à repressão política, não me lembro de nenhum evento especialmente traumático. Ainda assim, até hoje tenho pesadelos horríveis. Com frequência acordo – anteontem mesmo aconteceu – com a certeza de ter alguém no quarto. Depois fiquei sabendo que, numa das vezes em que a polícia esteve em casa, revirando tudo, entraram no quarto onde eu dormia, acho que devia ter uns 4 anos. E me lembro, na mesma época, de chegar na vila onde a gente morava, no Itaim, e as crianças virem correndo me contar que a polícia tinha estado na minha casa. Teria sido quando meu pai foi preso? Não sei se tem a ver, mas o fato é que até hoje acordo com essa sensação de ter alguém estranho no quarto.

No meu aniversário de 5 anos, meu pai conseguiu sair da prisão – ele foi liberado, por alguma razão. Tinha uma festinha na casa da minha avó e eu me lembro dela chamando “Marta, tem uma surpresa para você”. Ela me levou até o andar de cima e lá estava meu pai. Guardo a imagem dele ali, de camisa vermelha, sorrindo, pronto para me abraçar.

Depois só fui revê-lo em Cuba, para onde partiu ao fugir do Brasil. Ele fazia treinamento militar e minha mãe e eu fomos para lá, também. Mas mesmo em Cuba, nós demoramos para encontrá-lo, pois ele estava nas montanhas e nós em Havana. Lembro de uma ou outra cena com ele e de sua preocupação em me passar valores éticos: o que é certo, o que é errado; cuide de suas coisas; ajude a sua mãe; não dê trabalho; faça a sua ginástica; limpe os seus lápis de cor; não misture as cores da aquarela. Aliás, a aquarela eu guardo até hoje e os lápis de cor também. Acredite! Todos limpinhos. E assim o que mais lembro dele é essa tentativa – hoje entendo – de ser pai. No meio daquela correria toda, ele tentando me dar um norte.

E teve aquele episódio no Malecón – para quem não sabe, o passeio à beira-mar de Havana. Como estava programado que meu pai voltaria ao Brasil, para retomar a luta, ele deveria mudar de identidade: “Teu pai vai aparecer disfarçado”, me disseram. E toca minha mãe, eu e mais um cubano (cujo nome esqueci), esperando meu pai. E aí vinha vindo um negão de “dois metros e meio” e os adultos brincavam: “Ah, esse é o teu pai”. Detalhe: o meu pai era loiro de olho azul. Eles se divertindo à minha custa. Eu ficava olhando “Não. Não é o papai”. Aí vinha um anão, “Esse é o teu pai”. Não foi só tragédia. Pensando bem, até que podia ser muito engraçado. E, de repente, para minha surpresa, apareceu meu pai ali na calçada… A única diferença era o cabelo pintado de preto.

Finalmente ele viajou e mandou cartas dos países por onde passou antes de aportar no Brasil, Checoslováquia e depois Itália. A gente não sabe exatamente a data na qual ele desembarcou no Rio, mas sabemos que, na noite em que foi assassinado, eu tive uma febre muito grande e fui parar no hospital, ainda em Havana. E essas coincidências marcam.

A bem da verdade, ultimamente tenho pensado muito sobre quem era meu pai e o tamanho da dor de tê-lo perdido, sobre o que significou ter crescido sem pai. E apesar de ter negado essa dor a vida inteira, porque fui adestrada a não me fazer de coitadinha, a seguir adiante e olhar para frente, hoje me deparo com um rombo enorme. Talvez o mais terrível seja que nunca me permiti sequer imaginar o que teria sido nossa vida se meu pai não tivesse morrido. Esse é o legado mais estranho: perdi o espaço do sonho. É certo que a morte do meu pai é uma questão de Estado: foi morto porque combateu um regime ditatorial. Mas mesmo assim, sem ele… A vida ficou mais árida.

Tempos depois do meu pai voltar ao Brasil, clandestino, minha mãe e eu fomos para a França. Ele foi assassinado quando nós ainda estávamos em Cuba, conforme falei, mas não soubemos. Foi enterrado pela repressão no cemitério da Vila Formosa, com nome falso. A polícia só contou da sua morte meses depois, quando já estávamos na França, o reconhecimento foi feito por meio da arcada dentária, não permitiram autópsia. Lembro da minha mãe e da minha avó chorando e eu, na verdade, acho que estava confusa, não entendia direito, pois chorávamos um morto que já estava ausente há meses e sem um corpo do qual eu pudesse me despedir.

Aí começou o exílio e… Sei lá, eu tinha que me adaptar, ponto. Tempos depois o socialista Salvador Allende foi eleito presidente e lá fomos nós para o Chile, minha mãe, o segundo marido dela e eu. O Chile era pertinho do Brasil, a família poderia nos visitar e os telefonemas seriam bem mais baratos. Hoje parece ridículo, mas, na época, para fazer uma chamada internacional tinha que pedir para a telefonista e esperá-la completar a ligação, o que podia demorar horas. Enquanto isso, ficava todo mundo de plantão ao redor do telefone de bakelite. Quando finalmente o lado de lá atendia, tinha que falar rápido, porque era muito caro. De forma que ligar para o Brasil era ao mesmo tempo uma glória e um tormento: só dava pra dizer “Vovó, tô com saudade” e tinha que desligar. Era um negócio de louco. Acho que o mais excruciante, durante o exílio, foi a saudade da família, que ficara no Brasil, e do meu pai. Foi horrível. Mas eu me adaptei e afinal fui feliz, aprendi várias línguas, fiz amigos nas escolas que frequentei. Então veio o Golpe de 1973 e tivemos que fugir do Chile.

E assim voltamos para a França. Era adaptação o tempo todo: língua, escola, colega, vizinhança. Mas eu também fui feliz nesse retorno à Europa. Primeiro, era ótima aluna e querida pelos meus colegas. Ademais, ser exilado político era bem-visto, eu não precisava mentir sobre minha identidade, podia dizer que meu pai era um guerrilheiro que morreu na luta contra os fascistas. Os pais dos meus coleguinhas achavam o máximo: “Oh, que legal! Ela é filha de guerrilheiro”. Mas eu acalentava o sonho de voltar para o Brasil. Tinha muita, muita saudade da minha família. E mesmo sendo bem quista, continuava sendo estrangeira. Cheguei a brigar na escola com uma menina xenófoba. Em suma, o exílio não era só glória, também havia aqueles que não iam com a sua cara porque você era brasileira e, pior ainda, filha de comunista.

Voltamos para o Brasil em 1975, ainda durante a ditadura. Para minha enorme decepção, foi quando a coisa realmente ficou horrível. A começar, não podia dizer quem eu era. Tinha que mentir que meu pai havia morrido num acidente de automóvel e que éramos uma família de diplomatas, daí morarmos no exterior. Se alguém perguntasse mais alguma coisa, mudava de assunto.

Pra completar, em 1974 teve a Revolução de Abril, em Portugal, que acabou com a ditadura do Salazar e libertou as colônias. Um momento histórico maravilhoso, sem dúvida, porém que redundou na vinda a São Paulo de levas de direitistas egressos tanto de Portugal quanto da África. Ou seja, não só eu não podia contar quem eu era, como tinha que aguentar na minha classe angolanos, moçambicanos e portugueses brancos de extrema direita, que eram vistos como “os coitadinhos obrigados a abandonar suas casas por culpa dos comunistas”. E havia aquele clima opressivo de ditadura, que é tão difícil de explicar para quem não viveu. Esse “não poder dizer quem se é” fica terrivelmente entranhado na gente.

Logo minha mãe passou a escrever no Movimento e no Em Tempo, que eram jornais de esquerda. A AAB (Aliança Anticomunista Brasileira) mandou para ela cartas ameaçando a mim, caso não parasse com a militância. Então ela achou por bem me botar numa escola de rico, acreditando que ali eu estaria protegida. E lá fui para o Nossa Senhora do Morumbi – antigo Des Oiseaux – um colégio de freiras onde o pesadelo bateu o auge, porque convivi com a juventude do milagre brasileiro endinheirado, para quem a ditadura era uma glória. Enfim, eu era a pessoa errada no lugar errado.

No primeiro colegial me transferi para o Colégio Palmares, que pelo menos era uma escola de esquerda, onde os professores sabiam mais ou menos quem eu era, o que facilitou muito minha vida. Lá eu estudava com os filhos da Dodora, o André e a Priscila Arantes. Mas a gente sequer se cumprimentou no intervalo ao longo dos dois anos em que estudei lá! Eram tão sérias as regras de segurança, era tanto o medo, que nunca trocamos uma palavra. Inclusive, eu evitava contato para não ser vista perto deles, e vice-versa, acho eu. Convém deixar claro, eu não me sentia perseguida. Eu me sinto, até hoje.

Mas as obrigações dessa quase clandestinidade não eram uma imposição. Era uma questão de sobrevivência. Em Cuba, por exemplo, eu tive nome falso, Sofia, e passava por portuguesa. De tal forma que – eu descrevo esse episódio no filme 15 Filhos – eu fui capaz de encontrar meu pai no elevador do hotel em que morávamos e fingir que não o conhecia. Eu tinha apenas 5 anos de idade. No hotel, quando as pessoas falavam comigo em português, eu respondia em espanhol. Na época, tudo isso me parecia muito natural.

Mas voltando ao Brasil, o fato é que sobrevivi. Mas é difícil avaliar o quanto isso custou… Eu era menos alegre que os meus colegas, não conseguia ter aquela coisa que brasileiro tem, de abraçar todo mundo. Sentia-me terrivelmente francesa. Primeiro, porque de fato tinha uma formação europeia, mais reservada fisicamente. Segundo, não entendia da onde vinha aquela alegria toda. Para mim era inconcebível como as pessoas podiam estar risonhas, felizes, tão abertas umas com as outras! E assim eu fui me sentindo ainda mais excluída, porque não dava conta de ser tão feliz quanto eram as pessoas ao meu redor. Eu era aquela que estava sempre de cara fechada. E isso me era cobrado: “Por que você é tão tristinha?”.

E assim fui tocando a vida até que engravidei da minha primeira filha, a Cleo, em 1991. Foi quando senti a urgência de recuperar a história do meu pai. Não foi a primeira vez que fizemos essa tentativa, claro. Por volta de 1977, estimulada pelo exemplo da família de Vladimir Herzog, que havia entrado com um processo contra o Estado, minha mãe procurou um advogado para provar que meu pai também fora assassinado. Mas este advogado nos disse que pelas vias da justiça criminal isso nunca seria possível, porque faltavam testemunhas. Ou seja, continuei com o atestado de óbito de um suicida, no qual constava que meu pai se enforcara com uma gravata fantasia no Hotel Pirajá. Continuei a carregar comigo a mentira oficial, literalmente.

Quando fiquei grávida da minha Cleo, surgiu desejo de recuperar a história da família. Cheguei a conhecer o malfadado Hotel Pirajá, que se tornara uma pensão. A pesquisa resultou num projeto de filme, no qual contaria a história do meu pai: Procura-se uma Testemunha era o título. Mostrei o roteiro para meu querido padrinho Juca Kfouri, que deu a dica: o mais interessante seria contar a história para os jovens, que ignoravam o que acontecera durante a ditadura militar. Engavetei o projeto, mas o roteiro acabou sendo útil como o primeiro passo para a realização do dossiê sobre meu pai, que anos depois encaminhamos para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

A criação dessa Comissão Especial, em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, marcou uma nova etapa da recuperação da verdade: ganháramos um foro para avaliar os crimes cometidos pelo Estado, num regime de exceção. Logo depois de os integrantes serem nomeados, tornou-se necessária uma pressão pública para que sua atividade fosse efetivada. Aliás, como está acontecendo em relação à Comissão da Verdade, com as devidas diferenças: a sociedade pressionando o governo por resultados.

Assim foi que a minha mãe organizou um evento na UNICAMP, “A Revolução Possível”, para acender o debate. Estavam lá organizações de direitos humanos, familiares dos mortos e desaparecidos, ex-guerrilheiros etc. Eu fiquei a cargo de montar uma mesa para debater a questão dos filhos. O que era um problemão, porque eu só dispunha das minhas memórias de infância. Quem tinha o que dizer eram nossos pais, que haviam optado pela luta e poderiam fazer um balanço da situação.

Foi aí que entrei em contato com a Maria Oliveira, filha de um casal de ex-presos políticos, Eleonora Menicucci e Ricardo Prata. Maria e eu éramos do mesmo grupo de amigos, a gente já tinha até passado férias na Bahia, na mesma pousada. Os amigos comentavam em baixa voz, para mim, que ela tinha uma história parecida com a minha. E eu sabia, pela minha mãe, que era filha de presos políticos. Do lado da Maria, acho que foi a mesma coisa. Mas, entre nós, nunca tocamos no assunto. O engraçado é que os amigos ficavam discretamente espiando quando a gente conversava, para ver se saía “aquele” assunto, e as duas mudas. Porque essas coisas de clandestinidade, de sigilo, elas colam. Não tem como sair falando.

Mas enfim, quando surgiu a necessidade de organizar a mesa para debater a questão dos filhos, fui procurar a Maria porque a gente “tinha aquela história em comum” e ela trabalhava efetivamente com cinema. Decidimos gravar depoimentos de vários “filhos” e depois editar para, quem sabe, juntando as memórias, que a gente conseguisse passar para as pessoas da plateia algo que resultasse no retrato de uma experiência comum – que nós mesmas não sabíamos qual era, pois cada uma vivera “aquele história” no mais absoluto isolamento.

Mas uma coisa era certa: todo mundo tinha as suas memória de infância. Contudo, a memória é uma coisa tortuosa e nem eu, nem a Maria, íamos sentar diante da plateia para falar das nossas pequenas lembranças. Era necessária uma síntese. O primeiro passo foi fazer uma autoanálise: o que, das nossas infâncias, tinha a ver com a opção política dos nossos pais? Ou seja, nós tentamos descobrir o que era específico da nossa experiência sendo a Maria filha de ex-presos políticos e eu de um guerrilheiro assassinado, que vivera o exílio.

O pessoal da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, sobretudo a Amelinha e a Crimeia, nos ajudou a contatar outros “filhos”. Gravamos com quem pôde ir nos dois dias de estúdio que a Maria conseguiu emprestado. Optamos por fundo neutro e exibir em preto e branco, para uniformizar ao máximo a imagem, aplainando as diferenças de tipo físico, cor da roupa, cenário de fundo etc. A proposta foi anular as diferenças para destacar as falas e, assim, constituir um corpo de depoimentos capaz de reproduzir uma experiência comum. E aí saiu o 15 Filhos, o filme que não era pra ser filme, que foi exibido em março de 1996 na UNICAMP, e depois percorreu o mundo e ganhou prêmios.

Eu comecei este depoimento falando sobre a dor, o trauma, o buraco. O 15 Filhos foi o momento no qual os “filhos” descobriram que tinham uma experiência coletiva. Faziam parte da mesma tribo. Para mim, foi o primeiro passo em busca da minha identidade, porque ficava sempre a dúvida: eu era “tristinha” porque nasci assim, ou como resultado da clandestinidade, exílio etc.? É muito difícil separar o que é da índole e o que é da vida. Tem gente que é tímida. Tem gente que é bom aluno. Você não é tímido e bom aluno porque o teu pai morreu na tortura, entendeu?

Quer dizer, qual era a minha identidade? O que era meu e o que era da história? Realizar o 15 Filhos ajudou muito. E acho que foi um passo importante para entender que a gente, apesar de não ser ativa na história – a gente era “filho” –, temos um legado difícil de administrar, exatamente porque ele independeu da nossa escolha. Na verdade, o 15 Filhos foi um tremendo alívio. Pelo menos para mim, toda vez que assisto o filme fico alegre, é uma angustia a menos: “Ok, eu não estou mais sozinha. Eu faço parte desse grupo. Essa é a minha turma”. Não sou o único ET. Têm vários etezinhos espalhados por aí.

Mas é um processo. E se nem todo processo é lento, esse em todo caso o foi, e ainda está em curso. Após mais de trinta anos de terapia, descobri que carrego em mim dor e violência que não consigo processar. Tendo a crer que ter vivido uma infância assombrada por uma instância arbitrária a ponto de matar meu pai, me expôs a uma tremenda fragilidade e potencializou todos os medos. E talvez a pior sequela dessa violência seja a própria violência que sinto em mim agora. A verdade é que eu não aceitei o que foi feito à minha família. Se engoli, não digeri.

Hoje, leio minha dor e minha tristeza no olhar das minhas filhas, toda vez que entro em erupção. Tanto, que não precisou muito para convencê-las a participar comigo das Clínicas do Testemunho. E para mim é muito importante que elas ouçam os depoimentos de outras pessoas do grupo de terapia como forma delas me entenderem, da mesma forma como eu preciso do olhar delas para me entender.

Outro dia minha filha caçula, Sofia, me mostrou a biografia do advogado e poeta Luiz Gama, que estava lendo para a escola. Ali consta que a mãe do Luiz Gama mantivera a religião africana, recusando-se a ser batizada. Era uma revolucionária nata, aliou-se à Revolta dos Malês e à Sabinada. Quando Luiz Gama tinha cerca de 10 anos de idade, ela foi deportada para o Rio e, ao que parece, presa quando fazia um ritual de candomblé. Desde então desapareceu, junto com os demais participantes do ritual. A verdade é que desaparecido político, nesse país, tem faz tempo. Mas Luiz Gama logrou superar a dor e foi ser advogado, mesmo sendo negro em tempos de escravidão. Se hoje não é fácil, imagina naquele tempo?

Mas porque estou falando da questão da violência nestes termos? Porque a violência, para nossa sociedade, não é um detalhe. A cada geração somam-se os “desaparecidos” da repressão gerada por um Estado que tem por prática perpetrar o terror, de uma polícia que tortura e some com as pessoas, e o pior é que muitas vezes o policial também é negro, também é bisneto de escravo e carrega dentro de si uma violência que ninguém, no fundo, consegue engolir, quem dirá digerir. E assim vamos, tentando ser felizes. Afinal, não é o samba filho da dor?

Essa é, acho eu, a natureza profunda da violência que está aí a nos assombrar. E é por este motivo que eu acredito que vale a pena falar disso para vocês. Porque se eu não visse em mim o horror… Talvez não conseguisse entender as suas raízes em nossa sociedade. E acredito que é algo que merece ser olhado, a fundo, se pretendemos fazer do Brasil um país melhor para se viver.

Marta Nehring nasceu em São Paulo, em janeiro de 1964, filha de Norberto Nehring e Maria Lygia Quartim de Moraes. Estudou literatura e cinema, trabalha como roteirista de cinema e televisão.


Norberto Nehring

Nasceu em 20 de setembro de 1940, em São Paulo (SP). Era o filho mais velho de Walter Nehring e Nice Monteiro Carneiro Nehring. Morto em 24 de abril de 1970. Militante da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Era economista e professor da Universidade de São Paulo. Maria Lygia Quartim de Moraes, sua esposa, escreveu uma pequena biografia a seu respeito:

Norberto ficou órfão de pai muito cedo, mal chegara aos 4 anos. Foi criado, assim como seus dois irmãos menores, pela mãe e pelos avós maternos (…)

Uma pessoa marcante na sua adolescência foi um vizinho, judeu-comunista e empresário, Simão, que lhe revelou as atrocidades nazistas e o despertou para a causa do socialismo. Norberto sempre foi interessado e aplicado. Estudou nas boas escolas públicas da época. Terminando o ginásio, optou por um curso técnico de química industrial no Mackenzie que lhe possibilitasse trabalhar enquanto seguiria os estudos universitários à noite.

Norberto foi meu primeiro namorado, aos 16 anos. Juntos começamos a participar da vida intelectual nos primeiros anos da década dos sessenta (…)

Em 1963, começa nossa vida adulta: Norberto já trabalhava, entramos ambos na USP (ele, Economia, e eu, Ciências Sociais) e nos casamos. Em janeiro de 1964 nasceu Marta (…)

Mas 1964 também trouxe tristezas: o golpe militar de 1º de abril. (… ) Tínhamos ingressado no PCB assim que entramos na faculdade.

Filiei-me primeiro, o que era fácil, na medida em que a esmagadora maioria dos meus colegas já pertenciam ao PCB. Na Faculdade de Economia as coisas eram bem mais complicadas: a esmagadora maioria do corpo docente era de direita. (…) Foi através do marido de uma colega minha, que por coincidência era colega de Norberto, que o contato com o PCB concretizou-se (…)

Norberto militou no PCB até a ruptura do grupo Marighella – passou, então, a fazer parte do grupo que trabalhava diretamente com Joaquim Câmara Ferreira, “Toledo” ou “Velho”, na coordenação da ALN em São Paulo.

(…) Especialmente dotado para matemática, Norberto se distinguiu na faculdade recebendo várias ofertas para ser instrutor (…)

Uma vez formado na USP (…), começou imediatamente a trabalhar em planejamento econômico, no Grupo de Planejamento Integrado – GPI, um dos primeiros do gênero, formado por economistas e arquitetos competentes (…)

Ao mesmo tempo, sua militância na ALN intensificava-se. Integrava o grupo da “casa de armas”, dado seus conhecimentos de química e a enorme confiança pessoal que nele depositava a coordenação da organização (…)

Na manhã do dia 7 de janeiro de 1969 uma cena insólita perturbou a tranquilidade da vila em que morávamos: nossa casa foi cercada por um grupo de policiais do DOPS, que levaram Norberto preso. Logo que foi solto, após mais de dez dias na carceragem do DOPS, Norberto “passou para a clandestinidade” sabendo que voltaria a ser preso e torturado como aconteceu com todos os acusados do mesmo caso.

Muitos dos acusados estavam sendo brutalmente torturados e houve uma tentativa de suicídio numa tarde em que fui visitá-lo. Além da equipe do DOPS, Norberto foi interrogado por um “polícia federal”, que já gozava de grande consideração entre os torturadores do DOPS, e que veio a se tornar muito conhecido no país: Romeu Tuma.

Em abril de 1969, Norberto saiu do país com destino a Cuba. Marta e eu fomos ao seu encontro alguns meses depois. Ele retornou ao Brasil em abril de 1970, depois de uma estada em Praga, desembarcando no aeroporto do Galeão. As circunstâncias exatas de sua morte nunca puderam ser estabelecidas (…)

Ficamos sabendo da morte de Norberto na França, através de mensagem que recebi de Toledo, segundo a qual, no dia 24 de abril, um caixão teria saído da OBAN carregando Norberto, morto na tortura, nas mãos da equipe do delegado Fleury. Um dos documentos encontrados nos arquivos do DOPS/SP é uma nota à imprensa, assinada por Romeu Tuma, confirmando a versão oficial de suicídio (…)

A versão oficial é de que se suicidou, enforcando-se com uma gravata no quarto que ocupava no hotel Pirajá, então conhecido bordel de policiais no centro de São Paulo. Não foram encontrados a perícia de local, o laudo necroscópico nem as fotos do corpo.

A versão de suicídio consta no inquérito feito pelo delegado Ary Casagrande, onde há um bilhete que Norberto fizera à família. Buscando esclarecer os fatos, seu sogro foi até o hotel e lá soube que ali ninguém se suicidara. O próprio inquérito contribui para desmentir a versão oficial. Na requisição de exame, consta que teria se afogado, e no laudo necroscópico ali citado, mas nunca localizado, consta a informação de que a morte se dera por asfixia. Norberto foi enterrado com nome falso no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, mas a família foi comunicada apenas três meses depois. Após a exumação do corpo, realizaram seu reconhecimento por meio da arcada dentária, comprovando sua identidade. Seus restos mortais foram transferidos, então, para o jazigo da família.

Maria Lygia Quartim de Moraes

Nasceu em São Paulo (SP), em 18 de maio de 1943. Aos 8 anos de idade conheceu Norberto Nehring que foi seu maior amigo e primeiro namorado. Em 1963 casaram-se e iniciaram suas vidas universitárias. Ela cursou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) (1963-66) e ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) também em 1963.

Marta, única filha do casal, nasceu em janeiro de 1964, antes do golpe de Estado que viria a mudar radicalmente a vida do país e de seus pais. O casal integrava a Ação Libertadora Nacional (ALN) e, em janeiro de 1969, Norberto foi preso vindo posteriormente a fugir do país. Em julho do mesmo ano, Maria Lygia e Marta foram se encontrar com ele em Cuba onde permaneceram por quase uma ano. Norberto foi preso e morto ao regressar ao Brasil, em abril de 1970.

Marta e Maria Lygia viveram no Chile até o golpe de Estado que derrubou Salvador Allende e depois foram viver na França. Retornaram ao Brasil em julho de 1975.

A partir de então, Maria Lygia adotou o nome de Maria Moraes e ajudou a criar o jornal feminista
Nós Mulheres. Também foi jornalista na publicação O Movimento e uma das fundadoras do jornal
Em Tempo.

Doutorou-se em Ciência Política pela USP (1982) iniciando sua carreira como professora universitária na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi professora da UNESP-Ar e ingressou na UNICAMP em 1993.
Publicou livros, capítulos de livros e artigos no país e no exterior. A partir de setembro de 2013, preside a Comissão da Verdade e Memória Octavio Ianni da UNICAMP.

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