Meu marido, Devanir José de Carvalho, era militante desde a época do sindicato. Ele começou fazendo reuniões, ações, manifestações. Até esse momento, nós sabíamos o que estava acontecendo. Fomos para o Rio de Janeiro, onde ficamos morando por um tempo. Ele era militante do PCdoB. Depois, voltamos para São Paulo, onde ele entrou na Ala Vermelha. [Em 1969, desligou-se da Ala Vermelha e, com outros companheiros, fundou o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) em outubro daquele ano]. O Carlos, meu filho mais velho, nasceu um pouco antes do golpe, em 2 março de 1964. E o Ernesto nasceu em 1968.

Em 1964, nós estávamos morando em São Paulo. E a militância do Devanir era tranquila. Ele participava de reunião na casa de um, de outro. Quando houve o golpe, eu estava de dieta do Carlos e tive que ir à casa do Derly [irmão de Devanir] para tirar as coisas dele de lá. Como ele era diretor do sindicato, houve intervenção e ele teve que fugir para não ser preso.

Devanir trabalhou nas empresas Villares e Toyota. Em 1969, a coisa ficou mais complicada, porque companheiros começaram a ser presos e ele teve que entrar na clandestinidade. Na nossa vida, o que mudou com a entrada na clandestinidade foi que os garotos não podiam mais ir à escola, só se fosse com documento falso. O Carlos só pôde ir para a escola quando nos mudamos para o Chile, já aos 7 anos. Nesse período de clandestinidade, mesmo sem eles poderem ir à escola, eu procurava ter uma vida normal. O Devanir participava de reuniões, saía para fazer ações, mas a gente não sabia onde eles estavam.

Quando os irmãos do Devanir foram para o Chile [Derly, Daniel, Joel e Jairo foram presos em maio de 1969, ficaram incomunicáveis durante o mesmo período. Foram libertados (e banidos) em janeiro de 1971, em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher] até os advogados diziam que era para o Devanir ir embora. Mas ele dizia: “Eu não vou desbundar. Se você quiser ir embora com os meninos, tudo bem, mas eu não vou”. Eu disse: “Não, tudo bem”. E fiquei até o final.

Desde que entramos na clandestinidade, em 1969, muita coisa mudou. Ficamos afastados da família. Eu não podia visitar meus pais, apenas tinha notícias. Moramos em vários lugares. Foram umas cinco casas. Nos mudávamos a toda hora e quando algum companheiro era preso, tínhamos que sair das casas só com a roupa do corpo e documento. Ficamos juntos até sua morte, em 1971.

O Carlos era o filho mais velho, então ele percebia mais o que se passava. Meus filhos não tinham muito contato com outras crianças, só em 1970 quando eu comecei ter amizade com uma vizinha e as crianças passaram a brincar no quintal com os filhos dela. Na nossa casa, tínhamos muitos documentos de militância. As crianças tinham acesso normal ao local onde os documentos ficavam, mas os vizinhos não. Então, ninguém de fora podia vir na nossa casa.

Também não podíamos ir ver nossas famílias. Um dia, em 1970, fomos de madrugada para visitar os pais do Devanir. Acho que foi a última vez que a mãe dele o viu. A notícia da prisão dele chegou da seguinte forma: nós tínhamos um ponto de emergência. Caso ele não chegasse em casa até tal hora, é porque havia sido preso e não iria voltar.

Então eu teria que ir encontrar um companheiro às nove da manhã, do dia seguinte, em Santo Amaro, onde tem a estátua do Borba Gato. Como ele não apareceu, eu fui para esse lugar e encontrei o Dimas [Antônio Casemiro, companheiro de organização de Devanir]. Era dia 6 de abril de 1971. Nessa hora eu já imaginei que o Devanir tinha sido preso. O Ivan [Seixas] também estava nesse ponto. Nem voltamos para casa, fomos direto para a casa do Dimas, com apenas uma peça de roupa. Lá ficamos até dia 17, quando Dimas foi morto. Depois disso, os companheiros foram até a nossa casa, porque nós havíamos deixado tudo por lá. Os meninos sentiam o clima, ficavam quietinhos sabendo que tinha alguma coisa errada. Eu falava, “calma, vai dar tudo certo”.

No período que ficamos na casa do Dimas, o pequeno Ernesto perguntava do pai a toda hora e a gente dizia: “O pai viajou” para ele se acalmar. Mas o Carlos, que já estava maior, entendia, ficava triste e queria vingar a morte do pai.

A notícia da morte do Devanir chegou quando estávamos na casa do Dimas: “Terrorista morto”. Foi muito difícil. Eu dizia para os meninos: “Vai ficar tudo bem, vamos ficar na casa da vó, têm os tios no Chile, nós vamos para lá”.

Eu fui presa no dia que mataram o Dimas. Eu tinha 25 anos. Estava na casa dele com as crianças e foi terrível. Os homens disseram que iam levar meus filhos para o Juizado de Menores e eu disse: “Não! Ele tem avós dos dois lados”.

Nesse dia, o Dimas saiu junto com o Gilberto Faria Lima e eles falaram: “A janela fica aberta, qualquer coisa vocês fecham”. E a Maria Helena, mulher do Dimas, estava saindo com o filho deles quando os homens chegaram. Foi um susto. Quando eu escutei uma voz diferente, corri para o quarto para fechar a janela. Mas eles acharam que eu ia pegar uma arma que estava no quarto. Acho que eram cinco homens. Eles disseram: “Vocês tiveram muita sorte de termos pegado eles na rua [estavam falando do Dimas, que tinham matado]. Se não, não íamos poupar nem as crianças”.

Meu medo era levarem as crianças para o juizado, mas deixaram eu ir até a casa da minha sogra para deixar as crianças lá, antes de ser levada para a Operação Bandeirante.
Nos interrogatórios, faziam tortura psicológica, ameaçavam buscar meus filhos, alegando que assim e eu iria falar. E eu dizia “não tenho nada para falar”, dizia que quem tinha os contatos era meu marido. Eles falavam que iam me levar ao Rio, me colocaram num carro, rodaram comigo pela cidade, me deixaram sentada numa praça para ver se alguém vinha. Fiquei presa por um mês e saí de lá pesando 54 quilos. Eles me diziam “olha como você está acabada”.

No período em que estive presa, embora eles nunca tenham falado nada, imagino que o Carlos e o Ernesto tenham sofrido muito. Foi muito terrível para eles. O Carlos ajudou a cuidar do Ernesto.Fiquei presa durante um mês e quando fui solta, todas as terças-feiras eu tinha que ir à OBAN assinar um papel. Eu não aguentava mais. Eu não tinha mais vontade de ficar no Brasil. Um dia, a Isaura Coqueiro me disse que um companheiro da ALN falou: “Diga à Pedrina que se ela quiser ir para o Chile tem um pessoal lá esperando por ela”.

Resolvi ir embora, mas não podia falar para ninguém, nem para a minha mãe. Disse à ela: “Estou pensando em ir para Cachoeira Paulista, na casa da vó”. Ela disse: “Ah, é bom mesmo, vá, sim”. Arrumei uma mala e fomos pra a rodoviária. Chegando lá, tinha um cara de bigode. Logo o reconheci. Era um policial. Não sei o nome, mas era da OBAN. Ele me perguntou: “Está fugindo, Pedrina?”, e eu respondi “Não, estou indo para a casa da minha avó”.

Entrei no ônibus apavorada e saí pelo Paraguai, com as duas crianças. Chegamos em Assunção e só conseguimos passagem para o dia seguinte. Passamos a noite sentados em um banco da rodoviária. Foi uma viagem muito difícil.

Quando chegamos no Chile, estavam todos da família do Devanir. O Joel, o Daniel, meus cunhados. Foi uma época tranquila, uma beleza, eu pude trabalhar… Se não fosse o golpe do Pinochet, acho que eu nem voltava. O golpe foi terrível, vi aviões fazendo bombardeios… vi tanques de guerra.

Nos refugiamos na embaixada da Argentina, onde ficamos por uns quatro meses. Lá os meninos pegaram piolho, nós passamos fome. E também pegamos um terremoto. A embaixada tremeu feio. Então fomos morar na Argentina. Nos refugiamos na embaixada da Argentina, onde ficamos por uns quatro meses. Lá os meninos pegaram piolho, nós passamos fome. E também pegamos um terremoto. A embaixada tremeu feio. Então fomos morar na Argentina. Lá, para os meninos, acho que o melhor período foi quando ficaram juntas crianças brasileiras, uruguaias, chilenas, depois do golpe do Chile na Argentina. Chegamos a ficar um ano na Argentina. Minha mãe foi duas vezes nos visitar lá.

Depois resolvemos ir para Portugal por causa da língua. Fomos em 1974, Jairo e eu. A mulher dele já estava lá. Lá eles se soltaram, pegavam bonde, ônibus, andavam sozinhos, iam ao cinema. E eu relaxei, ia para a praia com eles. Ficamos morando lá de 1974 a 1978. Mas eu tinha muitas saudades do Brasil. Eu ouvia Chico Buarque e sentia uma saudade…

Quando cheguei ao Brasil, fiquei quatro horas sendo interrogada no aeroporto. Minha mala foi revirada, queriam saber como eu tinha documento, se alguém havia me dado. Minha mãe ficou apavorada, toda a minha família estava me esperando. Também chegaram a ir na minha casa. E a readaptação foi muito difícil, principalmente para o Carlos, porque não aceitavam o boletim dele. Hoje ele é um professor, um bom professor. O Ernesto canta músicas de protesto, faz shows nas escolas e conta a história do pai. O Ernesto também jogava bola, foi até técnico de futebol.

Aqui retomei a vida, fui trabalhar, arrumei um companheiro. Em Portugal também tive um companheiro com quem tive um filho. O companheiro não quis vir para o Brasil, mas meu filho veio comigo. Tive mais um filho com meu atual companheiro, Roberto. Tenho quatro filhos: Carlos, Ernesto, Pedro Gil e Roberto.

Pedrina José de Carvalho conheceu Devanir em Diadema (SP), no começo da década de 1960. Em 1963 casaram-se e tiveram dois filhos, Carlos e Ernesto Guevara, nascidos em 1964 e 1968, respectivamente. Em 1969, a família entrou para a clandestinidade. Viveram em várias casas e não podiam receber nem visitas familiares. A família ficou junta até a morte de Devanir, em 1971.Dias depois do assassinato, Pedrina chegou a ser presa nas dependências da Operação Bandeirante (OBAN) por um mês. Após a prisão, passou a ser perseguida pela ditadura. Exilou-se com os filhos. Primeiro foi para o Chile, depois para a Argentina, passou por Portugal e retornou ao Brasil depois da Lei de Anistia promulgada em 1979. Teve mais dois filhos. Hoje, vive em Diadema (SP).

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