Queria parabenizar o deputado Adriano Diogo e todas as pessoas envolvidas nessa luta. Acho que a nossa geração tem a obrigação política e moral de passar a história a limpo, como a geração de 1968 teve a obrigação de resistir à violência do Estado.

Eu sou filho de um operário que se chama Devanir José de Carvalho, morto em abril de 1971. A versão oficial é que ele resistiu à prisão no dia 5 de abril e acabou sendo morto em conflito. Meu pai era mineiro, de onde saiu no meio da década de 1950. Foi morar no ABC com meus tios e meus avós, começou a trabalhar como metalúrgico, era ferramenteiro e se envolveu nas lutas sindicais do ABC, na formação do sindicato e depois ingressou no Partidão. Dali foi para a Ala Vermelha e depois o Movimento Revolucionário Tiradentes, que é o MRT, organização que ele liderava.

Quando cheguei aqui e vi esse seminário “Infância Roubada”, fiquei refletindo um pouco sobre isso. E quando a assessoria pediu meu nome para preencher a plaquinha, passei o meu nome de registro. Na hora de passar o meu nome, sempre tenho esse problema, penso numa parte roubada da minha infância. Uma das coisas que foram roubadas da minha infância foi o meu nome.

O meu nome de registro é Ernesto José Carvalho, mas era para ser Ernesto Guevara José de Carvalho, que era uma homenagem que meu pai estava prestando ao comandante. Eu nasci em janeiro de 1968 e o Che [Guevara] tinha morrido em 1967. Isso foi, inclusive, tema de discussão dentro da organização política, se o meu nome poderia ser esse ou não. Porque eles tinham medo, os cartórios estavam sendo vigiados e o meu pai nessa época já vivia na clandestinidade.

Quando eu entendi a história, já na Europa, comecei a usar o Guevara. Até meus tios e as pessoas mais próximas me chamavam de Guevara, de Che, de comandante e comecei a usar, mas nunca me preocupei em ir ao cartório e mudar o nome nem nada. Hoje, muita gente me conhece pelo Guevara. Eu apresento um programa de TV e uso o nome no GC de Ernesto Guevara. Eu tive o nome roubado por conta dessa história.

Quando o meu pai foi morto, em abril de 1971, eu tinha 3 anos e meu irmão, Carlinhos, tinha 7. Nós morávamos na Zona Sul e meu pai foi capturado no Tremembé, Zona Norte de São Paulo. Logo depois disso, fomos morar num aparelho, que foi invadido pela polícia dez dias depois. Então houve um tiroteio e morreram mais duas pessoas. Neste dia, minha mãe foi presa e o Dimas Casemiro assassinado.

Eu e meu irmão assistimos a tudo e em seguida fomos levados para a OBAN. Chegando lá, tem um detalhe dolorido, mas importante de se falar, porque dá um pouco a dimensão não só da violência física, mas também moral. Alguns policiais estavam usando os objetos pessoais do meu pai, como uma jaqueta e um relógio. Enfim, de lá, fomos entregues aos meus avós e minha mãe ficou trinta dias presa. Quando ela saiu, foi montada uma operação para sairmos do país e fomos para o Chile. E nós montamos uma operação, na qual eu, meu irmão e um companheiro chamado Caio Venancio, também tínhamos a tarefa de entrar na embaixada da Argentina, que era o único lugar onde poderíamos ficar. Vários companheiros brasileiros já estavam lá. Conseguimos entrar numa ação violenta, na qual o Caio acabou sendo ferido. Ficamos lá três uns ou quatro meses.

Chegamos na Argentina no final de 1973, eu já estava com 5 anos. Muitos brasileiros foram para lá, inclusive os meus tios paternos, Daniel [José de Carvalho] e Joel [José de Carvalho], que eram militantes e são desaparecidos. Lá, a gente vivia aparentemente numa certa tranquilidade, apesar de vivermos em um local específico separado pela ONU para os refugiados. Havia um clima de terror porque a operação Condor já estava a todo vapor e o governo brasileiro tinha uma estratégia de atrair os refugiados, por meio de emboscada. Foi isso que aconteceu com os meus tios, Daniel e Joel, na Argentina. Eles foram atraídos por uma emboscada feita por “cachorros”, que eram militantes que tinham passado para o outro lado e tinham a tarefa de ir até onde estavam os refugiados nos países do Cone Sul e convencê-los a voltar.

Meu pai morreu com 27 anos, e meus tios com 20 e poucos também.

A minha memória fica muito clara a partir da nossa chegada no Chile. No Brasil, quando eu tinha 3 anos, por exemplo, não me lembro de nada da figura do meu pai, não me lembro de nenhum momento com ele. Até para reconstituir a imagem dele eu levei muito tempo, porque nem fotos a gente tinha. Temos uma foto dessa época em que ele está distante, é a única e última foto que temos com ele: estamos eu, meu irmão e ele.

Acho que essa parte roubada da nossa vida tem um significado muito grande. Quando nós chegamos ao Chile, à Argentina e a Portugal, eu convivia com pessoas que tinham a mesma afinidade ideológica que os meus pais. Cresci em cima dessa crença, dessa firmeza ideológica, desse orgulho que a gente tem da história do meu pai, dessa geração. Mas quando voltei ao Brasil, em 1979, ainda vivíamos sob a ditadura e eu fui morar com a família dos meus avós maternos e tios, em Diadema. Para mim foi um choque. Eu tinha até um tio do outro lado, que era milico. Cheguei e as pessoas me tratavam como filho de bandido. Inclusive na escola, logo que eu cheguei, comecei a ter problemas, porque a história que eles contavam não era a mesma história que eu conheci e concordava.

Então, quando meu tio mais velho que também foi refugiado [Derly José de Carvalho] voltou ao Brasil, em 1982, aí eu comecei a ter uma referência diferente da que eu estava tendo. Então eu acho que a nomenclatura deste seminário é muito, pelo menos para mim, pertinente.Eu acho que a Eliana [Paiva] falou um pouco dessa estratégia que a gente tem na adolescência, na infância, de ter uma defesa. Eu continuo tendo isso. Tenho 45 anos, já vivi quase vinte anos a mais do que o meu pai viveu, já sou avô e continuo tendo essa questão de talvez maximizar um pouco, carregar na tinta. Por exemplo, eu até ia fazer um ato simbólico de escrever Guevara no meu nome aqui embaixo, porque é mais um ato afirmativo.

Quando eu era mais novo, já tive problemas ao dar entrevista para a imprensa burguesa e os caras me provocarem com essa questão do nome, questionando se não seria oportunismo meu. Como eu sou músico, já ouvi provocações de várias formas, mas o que eu faço, apesar de também ser fã do comandante Guevara, é mais uma homenagem à escolha que o meu pai fez. Nesses momentos, eu vivo dizendo que tenho orgulho enorme da história do meu pai, dos meus tios, e de todos que resistiram ao golpe de 1964, de toda essa geração. Nem sei se a gente teria essa capacidade, se a minha geração teria essa capacidade, mas sou um defensor, inclusive dos atos mais extremos que essa geração tomou, como a luta armada. Eu acho que essas situações são completamente justificadas, a violência era do Estado, e não dessa geração, que estava resistindo a uma violência, que foi o golpe.

Essa questão que a gente carrega, de promover as ações afirmativas em defesa da memória dessas pessoas, eu continuo tendo problemas com isso. Hoje, a internet é um campo democrático, para o bem e para o mal, então a gente ouve barbaridades. Na minha página do facebook eu faço questão de ter o meu nome, a história do pai. Outro dia recebi uma provocação na minha página do twitter. Até mudei a apresentação. A pergunta é “Quem você é?”. Eu coloquei: “Sou Ernesto Guevara, sou filho de guerrilheiro”. Esse embate causa incomôdo e acaba roubando uma parte da sua vida, porque ele não é só ideológico. Talvez ele seja muito mais emocional do que ideológico.

Eu sou músico e já tive dificuldades de trabalhar por conta do meu nome, apesar de meu trabalho ser muito mais voltado para essa história. Eu tenho um espetáculo que se chama Canções da Resistência, que conta essa história por meio da música e de depoimentos, da apresentação do filme 15 filhos, e isso naturalmente acaba tendo provocações, discussões. Continuamos tendo fases, energias roubadas por conta dessa história toda.

Esses dias o cantor Lobão, que é de praxe falar algumas besteiras, (ele já disse que a ditadura arrancou umas unhazinhas) disse numa entrevista que ele queria que as vítimas da ditadura se “fodessem”.

A gente continua tendo uma parte da nossa vida roubada nessas agressões no campo ideológico. As forças que deram o golpe militar em 1964 continuam exercendo seu poder na democracia. E do ponto de vista pessoal é um desgaste enorme ouvir um cara como o Lobão que na minha geração foi muito ouvido, contestador dizendo um absurdo desse.

Meu pai tinha quatro irmãos: Daniel e Joel estão desaparecidos desde 1974, o Jairo que era o caçula e o Derly que era o mais velho. O Derly mora aqui no ABC Paulista, voltou do exílio em 1981, 1982 salvo engano, mora no ABC. O Jairo, caçula, acabou casando na Europa, constituiu família e não conseguiu voltar de vez para o Brasil até hoje. Meu irmão é professor de história.

Nós recebemos o pedido de perdão do Estado brasileiro e fiquei emocionado em receber o pedido de perdão feito pelo ministro José Eduardo Cardozo, que é um cara que eu adoro e é um companheiro. Quando cheguei a Brasília e entrei no Ministério da Justiça e veio o José Eduardo, pensei: “Puxa, a gente mudou mesmo, o país está muito melhor”. Lá em Diadema tem uma escola linda com o nome do meu pai, tem rua no Rio de Janeiro e aqui em São Paulo.

E acho que os torturadores têm que ser punidos. E não é por revanchismo. Uma vez eu dei uma entrevista e disse que não me interessava conhecer o algoz do meu pai, o cara que foi lá e o assassinou. A gente até sabe disso, mas eu disse que o problema era o sistema, não indicar a pessoa. Mas isso não quer dizer que eu não ache correto que essas pessoas tenham a sua punição. Uma coisa que eu aprendi, com a história do meu pai, é que a luta não pode ser uma coisa pessoal porque estamos falando de um projeto político, de luta de classes. Na verdade, eu torço para que todos eles fiquem vivos até a velhice extrema e possam ver triunfar um país mais justo, fraterno e democrático, sonho da geração do meu pai e que esses facínoras mataram, torturaram e roubaram, para que o sonho não se realizasse, e o pior castigo seria assistirem à vitória da classe trabalhadora.

O modus operandi que a polícia usa hoje é o mesma. A polícia hoje, no Estado democrático, continua achando que o método de investigação mais eficiente é a tortura e isso é uma herança que a gente recebeu, que o regime militar deixou.

Ernesto José Carvalho nasceu em 31 de janeiro de 1968, filho de Devanir José de Carvalho e de Pedrina José de Carvalho, é músico.

Devanir José de Carvalho nasceu em Muriaé (MG), em 15 de julho de 1943, filho de Ely José de Carvalho e Esther Campos de Carvalho. Assassinado em 7 de abril de 1971, em São Paulo, foi dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Casou-se com Pedrina José de
Carvalho, com quem teve dois filhos, Carlos e Ernesto.Nos anos 1950, seus pais se mudaram para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Ele e seus irmãos, Derly, Joel, Jairo e Daniel, foram trabalhar no ABCD paulista no início da instalação das indústrias metalúrgicas e automobilísticas. Ainda adolescente, aprendeu com o irmão mais velho o ofício de torneiro-mecânico e desde então passou a trabalhar nas indústrias da região, como Villares e Toyota.Em 1963, ajudou a fundar o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, participando ativamente de sua organização e da realização de greves. Ingressou no PCdoB e, após o golpe de 1964, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro (RJ), onde passou a trabalhar como motorista de táxi. Em 1967, começou a militar na Ala Vermelha, uma dissidência do PCdoB, voltando para São Paulo (SP). Em 1969, desligou-se da Ala Vermelha e, com outros companheiros, fundou o MRT em outubro daquele ano.Devanir fez treinamento de guerrilha na China, participou e comandou inúmeras ações armadas contra a ditadura. Ele e Eduardo Collen Leite, o Bacuri, dirigente da Rede (Resistência Democrática), deram início ao que viria ser depois a Frente Armada Revolucionária, junto com a VPR ao realizar o sequestro do cônsul-geral do Japão em São Paulo (SP), Nobuo Okuchi, em março de 1970, quando cinco prisioneiros políticos e três crianças foram trocados pelo diplomata.Documento do Serviço de Informação do DOPS/SP informa que em “[…] 5/4/71 – 11h00 – 9:50 hs o terrorista Devanir José de Camargo [sic], ocupando o Volks, cor azul, chapa ‘fria’ AE-3248, portando metralhadora, manteve tiroteio com policiais, que resultou ferimentos graves no terrorista que não resistindo aos ferimentos morreu”. Segundo a requisição de exame necroscópico, foi morto em via pública na rua Cruzeiro, 111.Conforme o depoimento de Ivan Seixas, ex-preso político e militante do MRT à época, Devanir foi capturado ferido nessa Rua Cruzeiro, 111, no bairro do Tremembé, Zona Norte de São Paulo, quando tentava resgatar um companheiro e sua família que moravam nesse endereço. Levado vivo para o DOPS/SP, Devanir foi torturado até a morte durante três dias seguidos.

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