Meus parentes por parte de pais são africanos. Meu bisavô foi vendido aqui no Brasil com toda a família. Só ficou um pequenininho com minha bisavó. Então eu sou de gente que não se conforma com injustiça. Fui crescendo sempre achando que as coisas não eram daquele jeito. Que era injustiça que se fazia. E me casei com um homem também que não gostava de injustiça. No fim, paramos em São Paulo. A minha história está aí, todo mundo sabe. E aí nos envolvemos com a luta armada e com a reforma deste país, deste grande Brasil, desta maravilha que é este país, cheio de riqueza, cheio de gente boa, cheio de cultura. Mas, infelizmente a riqueza deste país é mal dividida, a cultura é mal dividida, tudo é aqui é mal dividido. Mas nós vamos tocando. Quem sabe amanhã ou depois de amanhã isso será bem dividido.

Eu cheguei em São Paulo, me envolvi com os movimentos sindicais, fui para o Rio de Janeiro, e todo esse itinerário de vida aí no meio de todo mundo que lutava. Eu assisti à Segunda Guerra, achava aquilo terrível. Eu lia os jornais para meu pai. Quando a guerra começou, eu tinha 12 anos. Quando terminou, eu tinha 17.

Sempre fui uma mulher lutadora contra a injustiça. E graças à minha disposição de luta, fui presa, fui torturada, mataram meu marido, maltrataram meus filhos, torturaram meu filho. As freiras “batiam cabeça”, não queriam nossos filhos, que eram os filhos terroristas. As freiras, imagine, as religiosas, as irmãs de caridade, tudo de chapeuzinho branco na cabeça, se benzendo toda hora.

E eu parei em Cuba, graças à Revolução Cubana. Estudei, botei meu pé dentro de uma faculdade, que para mim foi uma das coisas mais maravilhosas que eu já vi, entrar em uma faculdade. Uma faculdade Cubana. Estudei. Faltou só um aninho para eu me formar. Acho que eu ainda volto lá em Cuba para me formar. De forma que eu sempre fui uma mulher batalhadora. Procurei educar meus filhos não dizendo para eles serem comunistas, ou revolucionários.

Uma vez eu vi meu pai conversando com uma russa e ela falou para ele: “Senhor Manoel, os vermelhos tomaram o poder lá na Rússia”. Os vermelhos? Eu pensei: “Será que eles tinham a pele vermelha?” Eu tinha 7 anos quando saiu a Revolução Russa.

Eu vim escutar a palavra comunismo aqui em São Paulo, quando eu cheguei. Eu perguntei: “gente, o que é comunismo?”. “Ah, companheira, comunismo é as pessoas que querem que as pessoas tenham escola, tenham alimento, hospital”. Ah bom, então eu pensei. “Eu sou comunista porque eu quero que tenha tudo isso para todo mundo”. Então, por isso eu me envolvi com a luta de beneficiar todo mundo.

E para nós foi muito duro. E no governo do Presidente João Goulart, todo mundo na rua lutando por reforma. Reforma agrária, reforma urbana, reforma educacional. Nem ninguém falava em comunismo, nem ninguém falava em religião. Se falava na reforma. Nosso entusiasmo era tão grande pela reforma, e ninguém queria criar partido, criar religião. Aí uma boa parte da igreja, com o senhor Lincoln Gordon, representante máximo daquela grande potência norte-americana aqui no Brasil, dono do mundo, dono da maior riqueza, que hoje estão pedindo esmola. E lá em Cuba não tem isso, graças à Revolução Cubana. Nós tínhamos tudo do bom e do melhor.

Então, foi uma coisa assim, deram um golpe brutal, mas brutal. Quando nós demos conta, a costa brasileira estava cheia de navio americano. Olha, o presidente se não tivesse ido embora ele tinha sido assassinado como assassinaram o [Salvador] Allende lá no Chile.

Quando chegamos no México, o Mário Japa, [codinome de] o Shizuo Osawa, foi ao consulado cubano e lá tinha uma carta do Comandante Fidel Castro oferecendo asilo para mim e as crianças. Que se eu quisesse, eu podia ir para Cuba. Quando ele me falou isso, foi uma das maiores satisfações da minha vida, receber um convite de um estadista. Eu, que era uma simples trabalhadora, semianalfabeta. Foi uma das maiores alegrias que eu tive na minha vida.

Houve coisas terríveis na minha vida: quando eu vi meu marido morto e eles com a arma em cima de mim, dizendo: “Mata ela! Mata os filhos dela!”. Outra vez quando tiraram meus filhos e disseram que iam nos matar. Foi muito triste, eu estava presa junto com a Drª Eliana Rollemberg, chegou a polícia com o Capitão Homero [César Machado] e não sei quem mais com os meus filhos. Eu estava em uma janela, e quando os vi, me deu uma crise tão grande que quase morro. Teve um momento que eu pensei que eu ia perder o juízo. Eu pensei: “Vieram torturar os meus filhos para eu ver, e falar onde estavam os meus companheiros”. Para mim foi uma das coisas mais tristes da minha vida. Eu pensei: “Se torturarem os meus filhos aqui, eu morro”. Eu falei para eles: “Olhem, me matem e matem os meus filhos. Está tudo terminado”. Para mim foi muito terrível. Foi um momento duro da minha vida. Eu procuro esquecer, mas, de vez em quando, eu lembro das barbaridades da ditadura.

Damaris Oliveira Lucena nasceu em 22 de agosto de 1925 em Codó, (MA). De família pobre, começou a trabalhar aos 7 anos. O trabalho no campo estendeu-se até os 16 anos. Durante cinco anos trabalhou como fiandeira e depois encarregada de compras na indústria manufatureira. Por conta dos baixos salários, decidiu mudar-se para São Paulo onde acreditava que as condições de trabalho seriam melhores. Chegou à cidade onde o marido Antônio Raymundo de Lucena já estava, em 1º de junho de 1950.Trabalhou na empresa de tecelagem Jafet por um ano e posteriormente foi transferida para a creche como cozinheira.
Damaris filiou-se ao Sindicato dos Têxteis em 1950. Pela sua atuação junto aos trabalhadores recebeu o cargo de delegada sindical. Participou do Congresso de Mulheres Operárias realizado no Rio de Janeiro em 25 de maio de 1956. Na volta, foi demitida “por causar distúrbios na população fabril”. Passou a militar no Partido Comunista.Em 1958, no governo de Jânio Quadros, ajudou na organização da greve dos dez dias. Em 1967, pediu afastamento por tempo indeterminado do Partido Comunista. Tinha uma intensa militância mesmo sem estar vinculada a nenhum partido. No final de 1967 entrou para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e logo seu marido entrou para a clandestinidade. Com a prisão de vários militantes no início de 1969, foram obrigados a entrar definitivamente para a clandestinidade.No dia do assassinato de seu marido, Damaris estava em casa com as crianças. Ela conta que Lucena, atingido, caíra ao lado do tanque, já fora da casa, quando um último tiro foi disparado em sua têmpora, na presença dela e dos filhos. Damaris foi barbaramente torturada na OBAN e seus filhos foram levados ao juizado de menores. Saíram da prisão por ocasião do sequestro do cônsul japonês na capital paulista, Nobuo Okuchi, em março de 1970. Assim foram banidos do território nacional: Chizuo Osava, Madre Maurina Borges da Silveira, Diógenes José de Carvalho de Oliveira, Otávio Ângelo e Damaris, que seguiu com os três filhos menores: Adilson Oliveira Lucena, 9 anos, Denise Oliveira Lucena, 9 anos, e Ângela Telma Oliveira Lucena, 3 anos e meio para o México, onde ficou por dezenove dias. Logo depois, recebeu o convite de Fidel Castro para viver em Cuba. Damaris chegou à Cuba e permaneceu internada por vários meses para se tratar das torturas sofridas nos cárceres brasileiros. Na Ilha viveu e criou seus filhos. Voltou ao Brasil em maio de 1980 onde seu filho Ariston tinha permanecido preso por 9 anos.

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