“Bagulhão”: A voz dos presos políticos

Neste ano de 2014, que marcará o encerramento dos trabalhos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, depois de privilegiada a reconstrução da memória das vítimas, é chegada a hora de reconstituir as cadeias de comando da repressão política envolvidas nas práticas das graves violações aos direitos humanos.

Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.

Nessa linha, o documento que agora é trazido à ampla divulgação para conhecimento de toda a sociedade brasileira guarda um valor histórico e político ímpar, além de poder colaborar para que se alcance o objetivo de esclarecer a estrutura das cadeias de comando da ditadura. Batizado pelos presos políticos da ditadura militar com o apelido de “Bagulhão”, trata-se da mais contundente iniciativa de denúncia das violências sofridas durante o regime militar.

Em 1975, ainda sob dura e violenta repressão política, 35 presos tiveram a coragem de expor seus nomes em uma denúncia pública da violação de direitos fundamentais então em curso.

Nem é preciso frisar as enormes dificuldades que tiveram de enfrentar para levar a cabo tal tarefa. Sob vigilância e controle permanentes, em um sistema penitenciário de condições desumanas, tiveram de buscar formas de organização e de comunicação que os permitissem construir, conjuntamente, esse relato que impressiona pela riqueza dos detalhes.

p02-02Das adversidades vividas na prisão, com ajuda de alguns familiares e poucos advogados engajados, os presos buscaram a força para, mais uma vez, resistir à repressão e transgredir as normas autoritárias, agora dentro das grades. Confirmaram, com ousadia, aquela máxima do filósofo francês Michel Foucault segundo a qual, mesmo sob as condições mais adversas, onde há poder, também há resistência.

Interessante notar que esses presos já tinham plena consciência da dupla condição que possuem, pois falam de dois lugares de grande sofrimento: são, ao mesmo tempo, sobreviventes e testemunhas.

Carregam, por isso, a necessidade de narrar não apenas as próprias dores, mas também aquelas vividas pelos mortos e desaparecidos que não poderiam mais falar.

Sem dúvida, deve-se lembrar que outras tentativas de publicizar os horrores da ditadura foram empreendidas desde o início do regime em 1964. Os próprios autores deixam claro, em diversas passagens, que denúncias de tal natureza já vinham sendo feitas por parte da imprensa, por abaixo-assinados, por advogados, por greves de fome de presos políticos etc.

No entanto, o maior mérito desse documento é que se trata da primeira grande tentativa de denúncia coletiva dos próprios presos, em primeira pessoa, com todas as informações sistematizadas, cobrando providências do presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. Caio Mário da Silva Pereira, que alegava não ter acesso às informações necessárias para proceder a ações concretas quanto às violações de direitos.

No que se refere ao conteúdo do texto que ora se apresenta ao leitor, percebe-se as informações sendo estruturadas em três eixos principais. O primeiro traz a descrição dos métodos e instrumentos de torturas utilizados e uma transcrição dos nomes dos torturadores identificados. O segundo apresenta as diversas irregularidades jurídicas cometidas na condução dos inquéritos e processos contra presos políticos (fase policial-militar, judicial e condições carcerárias). Por fim, narram casos de dezesseis presos políticos assassinados ou mutilados em virtude de torturas e, ainda, dezenove casos de desaparecidos políticos. Ainda que tais números tenham se revelado bem maiores, já havia o conhecimento e a certeza sobre o paradeiro desses militantes que foram atingidos pela violência da ditadura.

Contrariando uma ideia equivocada e ainda hoje difundida, que atribui “aquelas práticas [de torturas] a alguma autoridade policial subalterna que lhe escapa ao controle”, os presos signatários da carta apontam, com vigor, que se trata “de órgãos repressivos de existência perfeitamente oficializada pelo regime e são muitas as mortes e mutilações produzidas pelas torturas que constituem o dia-a-dia daqueles órgãos”, caracterizando aquilo que denominaram de “tentacular máquina repressiva” no país. Nomeiam diversos centros de inteligência, repressão, detenção e de execução de opositores políticos.

O “Bagulhão” ainda arrola 233 nomes de torturadores, com a ressalva de que estes são “tão-somente aqueles agentes que conhecemos pessoal- mente, já que a relação de torturadores dos quais sabemos o nome – mas que não conhecemos pessoalmente- é bem mais extensa”. Assim, ainda no calor dos acontecimentos, consegue compilar informações sobre identidade, função e patente de diversos agentes públicos envolvidos com as práticas de torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados.

Não há dúvida de que o “Bagulhão” vem a público em boa hora. Mais do que oportuna, a divulgação desse documento é urgente e necessária neste ano em que se completa meio século do golpe militar de 1964.

Este momento é também privilegiado devido à existência de dezenas de Comissões da Verdade espalhadas por todo o país apurando, precisamente, a violação aos direitos humanos cometidas pela ditadura e identificando os agentes públicos envolvidos. Mas não só: este ano é crucial para a luta por verdade e justiça porque a Justiça Federal está apreciando as ações penais que o Ministério Público Federal ajuizou contra os acusados de torturas nos centros de detenção da ditadura brasileira. Finalmente, temos torturadores da ditadura militar sentados nos bancos dos réus aguardando julgamento.

Triste é constatar, no entanto, que apesar de todos esses avanços as condições carcerárias denunciadas há quase quarenta anos pelos autores do “Bagulhão” permanecem praticamente as mesmas até hoje. E o pior: não é só o nosso sistema prisional que continua arcaico e incompatível com os princípios democráticos de respeito aos direitos humanos. A repressão e a violência policial que se abatem sobre a juventude pobre e negra nas periferias lembram, em muito, as violações de direitos cometidas durante a ditadura e denunciadas pelos presos políticos no documento que segue.

Que a lembrança desse passado doloroso e da resistência exemplar desses ex-presos políticos nos sirva de inspiração para lutar pela democracia e pelos direitos humanos hoje.

One thought on ““Bagulhão”: A voz dos presos políticos contra os torturadores

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