Em meados de 1970, sob a vigência da ditadura militar (1964-1985), foram desmanteladas e massacradas as organizações de esquerda que faziam a luta guerrilheira nas áreas rurais e urbanas. A repressão política não poupou nenhuma organização, mesmo as que não participavam da luta armada. Reprimiu de maneira violenta organizações como o conhecido “Partidão”, o PCB – Partido Comunista Brasileiro. Assim é que em 1975, no Brasil, havia militantes políticos que encontravam-se presos, exilados, clandestinos ou em liberdade condicional. A sociedade estava sob o controle da repressão política da ditadura. Dirigentes políticos das diversas organizações de esquerda foram assassinados ou encontravam-se desaparecidos. O terror de estado fazia-se presente, sob o medo, a censura e o grito silenciado. Persistiam as perseguições, os sequestros, as torturas, os estupros, os desaparecimentos forçados e os assassinatos. A estratégia usada pelo então presidente ditador Ernesto Geisel (1974-1978), sob as palavras de ordem distensão, lenta e gradual, encobria os graves crimes cometidos contra a oposição política. As mortes dos opositores do tempo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1973) eram, de um modo geral, estampadas nas páginas dos jornais, com as manchetes de “terroristas mortos em tiroteio”. Este era, portanto, descaradamente um governo sanguinário. O governo Geisel, no entanto, pretendia passar por apenas um presidente autoritário. Mas foi no seu governo que se aplicou, com toda a desfaçatez, a ordem dada pela cúpula das Forças Armadas, em reunião datada de 24 maio de 1973, na qual participaram além do próprio general Ernesto Geisel, o seu irmão general Orlando Geisel, e outros generais como Milton Tavares, Antônio Bandeira e o então Presidente da República, General Emílio Garrastazu Médici, cuja síntese se resumia nas seguintes decisões 3 documentadas em ata: “(…) a utilização de todos os meios para eliminar sem deixar vestígios, as guerrilhas rurais e urbanas, de qualquer jeito, a qualquer preço (…)”.
Organizaram, a partir de então, uma estrutura especial para dinamizar e agilizar as operações repressivas:
(…) dois grupos ultra-secretos – um no CIE (Centro de Informações do Exército) de Brasília e outro no DOI-CODI de São Paulo. Eles estavam autorizados a assassinar e sumir com os corpos e foram responsáveis pelo desaparecimento de cerca de 80 presos políticos entre 1973 e 1975.
Os fatos que se seguiram, confirmaram, lamentavelmente, a aplicação das decisões tomadas. Já no 2º semestre de 1973, desapareceram vários militantes da AP – Ação Popular – e integrantes da Guerrilha do Araguaia, pertencentes ao PCdoB – Partido Comunista do Brasil. No ano inteiro de 1974 até agosto de 1975, todos os assassinatos nas dependências do aparato repressivo sequer foram assumidos oficialmente, encobertos com versões falsas como tiroteios, suicídios, atropelamentos como eram usadas até então. O ano de 1974 deve ainda ser registrado na história brasileira como o ano do “desaparecimento forçado” dos militantes da esquerda. Dois militantes do PCB foram assassinados devido às torturas sofridas no DOI-CODI/SP, nos meses de agosto de 1975. Seus nomes: José Ferreira de Almeida (1911–1975) e José Maximino de Andrade Netto (1913 – 1975). Mas os casos não foram divulgados na época. O assassinato que trouxe comoção nacional naquele momento foi o do jornalista da TV Cultura de São Paulo, Vladimir Herzog (1937–1975), ocorrido no DOI-CODI do 2º. Exército, em São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975. Herzog comparecera na OBAN (DOI-CODI/SP) para atender à intimação do 2º Exército, quando então foi assassinado devido às torturas ali sofridas. De imediato, o Exército deu uma versão totalmente falsa para a morte sob torturas, pois não havia como escondê-la. A nota da repressão que noticiava a morte assim dizia: “(…) foi encontrado morto, enforcado, tendo para tanto se utilizado de uma tira de pano (…)”.
Desse modo, o Exército pretendeu esconder a verdade sobre o ocorrido e alegou que sua morte teria sido por suicídio.
Enquanto isso, os presos políticos, familiares e advogados procuravam formas de denunciar a violência da repressão política.
No mundo, a ONU – Organização das Nações Unidas – promulgou o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher. O Movimento do Custo de Vida, como ficou conhecido o movimento contra a carestia de vida, protagonizado pelas mulheres da periferia, começou a aparecer em público. Conquistava espaço e desmascarava a farsa tão apregoada do “milagre econômico” realizado pela ditadura militar.
Na rua, mulheres e homens cantavam baixinho: “(…) apesar de você, amanhã há de ser outro dia” 4. Em janeiro de 1975, familiares de presos políticos mortos e desaparecidos foram a Brasília para pedir a criação de uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – para investigar as violações de direitos humanos no país 5. CPI que nunca chegou a acontecer devido às pressões dos militares. Nessa época, também foi criado o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini que, nos anos seguintes, iria mobilizar cada vez mais a sociedade.
Ao lado do terror praticado pelo estado ditatorial, setores democráticos e populares esforçavam-se para abrir brechas que tornassem possível prosseguir a luta contra a ditadura.
Em outubro de 1975, foi lançado o jornal Brasil Mulher para divulgar a bandeira da Anistia e as mulheres ligadas ao PCB organizaram o Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista, realizado na Câmara Municipal de São Paulo. Algumas das organizadoras foram presas e levadas para o DOI-CODI, onde foram torturadas.
Nesse momento da luta, os presos políticos de São Paulo foram os primeiros a fazer uma carta/documento com denúncias de prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos. Organizaram uma lista de militantes mortos e/ou desaparecidos e outra dos torturadores.
Dois dias antes do assassinato de Herzog, dia 23 de outubro de 1975, os presos do Barro Branco6, um dos presídios políticos em São Paulo, concluíram a carta coletiva, que em seguida foi enviada ao então Presidente do Conselho Federal da OAB, Dr. Caio Mário da Silva Pereira, contendo as gravíssimas denúncias sobre as torturas sofridas. Eles descreveram os vários métodos adotados pela repressão, inclusive violência sexual, assassinatos sob tortura testemunhados por eles e a primeira lista com os nomes e/ou codinomes de 233 agentes públicos ligados aos órgãos da repressão política de diversos pontos do país. Denunciaram torturadores, assassinos, estupradores e ocultadores de cadáveres, sendo o primeiro da lista: o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/SP. Com isso, os presos conseguiram desmascarar a farsa dos “atropelamentos”, “suicídios” e “tentativas de fuga”, que eram as justificativas comumente usadas pela repressão para explicar os assassinatos de opositores políticos.
Os presos, ao tomarem conhecimento da morte de Herzog, acrescentaram mais esta denúncia na carta e se posicionaram contra a versão oficial de “suicídio”, acusando o médico Harry Shibata 7, de omissão e conivência com o aparato repressivo ao confirmar as versões mentirosas das mortes dos presos políticos nos órgãos de repressão:
Com o objetivo de corroborar essa versão (“suicídio”), aquele organismo divulgou ainda laudo pericial de “causa mortis” assinado pelos médicos Arildo Viana e Harry Shibata. Esclareça-se que este último, verdadeiro Mengele do Brasil de hoje, é quem sistematicamente firma os atestados de óbito de presos políticos assassinados pela OBAN. (Último parágrafo da carta)
Não é difícil imaginar o clima de terror em que se vivia naquele momento. Os 35 presos políticos signatários da carta 8, que tinham sido condenados pela Justiça Militar a penas altíssimas, que chegavam até 82 anos, sabiam que poderiam sofrer retaliações mas não vacilaram em denunciar, de forma audaciosa, os nomes e/ou codinomes de 233 torturadores do aparato repressivo da ditadura. Esta atitude pioneira abriu possibilidades para denúncias de presos políticos que cumpriam pena em outros estados, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco.
Apesar da vigência da censura prévia e das várias formas de repressão, a carta foi bastante distribuída, com cópias feitas quase clandestinamente, entregues muitas em mãos para a imprensa, órgãos internacionais e nacionais de direitos humanos. A carta chegou a ser publicada pela Editora Maria da Fonte, em Portugal e em muitos outros países da Europa, América do Norte entre outros locais. O trabalho de divulgação feito de forma anônima por familiares, advogados, religiosos, artistas e intelectuais tornou o documento uma das principais ferramentas das campanhas de divulgação das torturas e assassinatos que foram fundamentais para impor desgaste político à ditadura. A reação da repressão foi imediata. Passaram a intimidar familiares e amigos dos presos políticos, com cartas de ameaças de morte, via correio, assinadas com pincel atômico, em letras pretas, com a sigla A.A.B. que significava Associação Anticomunista Brasileira uma grotesca imitação da Associação Anticomunista Argentina, conhecida como a Triple A. As ameaças e provocações se intensificaram aos próprios presos políticos.
Em 1978, o jornal da imprensa alternativa Em Tempo foi o primeiro e único a publicar na íntegra a lista dos 233 torturadores. Esse jornal publicou ainda mais duas listas de agentes públicos acusados de tortura, feitas por presos políticos de outros estados. A edição do Em Tempo tinha uma tiragem de vinte mil exemplares que se esgotou tão logo o jornal foi para as bancas, o que fez com que batesse recorde de vendas. O jornal sofreu, em represália, na mesma semana que divulgou os nomes dos torturadores, dois atentados. Um na sucursal de Curitiba (PR) que teve sua sede invadida e pichada de spray: “233”. O outro atentado ocorreu em Belo Horizonte, quando colocaram ácido nas máquinas de escrever. Esses fatos chegaram a ser publicados pelo próprio jornal Em Tempo. Depois disso, o jornal não teve mais como existir, foi fechado 9.
A carta, elaborada no calor dos fatos e, quando os presos ainda estavam sob o controle absoluto do aparato repressivo, tem um valor político que se estende até os dias atuais. Entretanto, as denúncias não foram ainda apuradas pelos órgãos competentes do atual estado democrático de direito, em especial no que se refere à responsabilização criminal dos agentes públicos mencionados naquele documento. A carta pode ser tratada como um marco histórico da construção da memória coletiva a partir dos testemunhos oculares desses fatos. A carta significa um não categórico ao esquecimento, escrita por um coletivo, num tempo em que o ato de se reunir, organizar e lembrar era proibido. A carta e sua trajetória indicam que a punição dos torturadores é uma necessidade histórica para que alcancemos verdade e justiça.
Cabe ao Estado brasileiro, com urgência e sem nenhum adiamento, tomar medidas concretas no sentido de apurar as denúncias contidas neste documento e punir os responsáveis por tais crimes.
1 Esta carta ficou conhecida como “Bagulhão” entre presos políticos da época, familiares e advogados. 2 “Pavão Misterioso”, canção de autoria de Ednardo, composta em 1974. 3 Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil – 1964-1985. Comissão de Familiares de mortos e Desaparecidos Políticos. São Paulo, Imprensa Oficial, 2009, p.22. 4 “Apesar de Você”, música e letra de Chico Buarque feita em 1970. Num momento primeiro a música foi aceita pela aparato censor da ditadura e depois foi totalmente censurada. 5 TELES, Janaína de Almeida.“Os Trabalhos da Memória: Os Testemunhos dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil”. In Psicologia, Violência e Direitos Humanos. Conselho Regional de Psicologia SP. São Paulo, 2012, p.114. 6 Em 1975 e anos seguintes, um conjunto de presos políticos encontravam-se no Presídio do Barro Branco como era conhecido o presídio Romão Gomes que está localizado no bairro do Barro Branco, em São Paulo. 7 Em 1987, Harry Shibata recebeu a pena de censura pública pela infração do artigo do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico atestar falsamente sanidade ou enfermidade, ou firmar atestado sem ter praticado os atos profissionais que o justifiquem” (Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos, 1964-1985. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Imprensa Oficial, São Paulo, 2009, p.30). 8 Os presos políticos, signatários da carta são os seguintes: 1. Alberto Henrique Becker; 2. Altino Rodrigues Dantas Júnior; 3. André Tsutomu Ota; 4. Antonio André Camargo Guerra; 5. Antonio Neto Barbosa (falecido); 6. Antonio Pinheiro Sales; 7. Ariston Oliveira Lucena (falecido); 8. Artur Machado Scavone; 9. Aton Fon Filho; 10. Carlos Victor Alves Delamônica; 11. Celso Antunes Horta; 12.César Augusto Teles; 13. Diógenes Sobrosa de Souza (falecido); 14. Élio Cabral de Souza; 15. Fábio Oscar Marenco dos Santos (falecido);16. Francisco Carlos de Andrade; 17. Francisco Gomes da Silva (falecido); 18. Gilberto Luciano Beloque; 19. Gregório Mendonça; 20. Hamilton Pereira da Silva; 21. Jair Borin (falecido); 22. Jesus Paredes Soto; 23. José Carlos Giannini; 24. José Genoíno Neto; 25. Luis Vergatti (falecido); 26. Manoel Cyrillo de Oliveira Neto; 27. Manoel Porfírio de Souza (falecido); 28. Ney Jansen Ferreira Filho (falecido); 29. Oswaldo Rocha; 30. Ozéas Duarte de Oliveira; 31. Paulo de Tarso Vannuchi; 32. Paulo Walter Radtke; 33.Pedro Rocha Filho; 34. Reinaldo Morano Filho; e 35. Roberto Ribeiro Martins. 9 Depoimento de Tibério Canuto e Paecu na Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, no dia 2 out. 2013.