1. A ditadura militar e a esfera pública: o abuso como política, a sistemática legal da ilegalidade
Esta carta de 1975, que não estava mais disponível em livro desde sua publicação em 1982 pelo Congresso Nacional como um dos anexos dos debates da Lei de Anistia, é um notável documento histórico. Escrito no espaço mais representativo de uma ditadura – o presídio –, revela por dentro as entranhas do poder. Como desmistificação do regime autoritário, pode ser considerada um antecessor do Nunca más argentino, porém com importantes diferenças.
O célebre informe argentino foi fruto do trabalho da Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas estabelecida por Raúl Alfonsin, o primeiro presidente civil após o golpe militar de 1976, e precedeu o Brasil: Nunca Mais. Tratou-se de importante medida de justiça de transição, apoiada pelo governo nacional, que resultou em extenso levantamento dos crimes dessa última ditadura naquele país.
Em condições muito diversas foi escrita esta carta (apelidada pelos militantes de “bagulhão”) para o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Caio Mário da Silva Pereira, em 23 de outubro de 1975. Em primeiro lugar, seus autores foram os próprios presos políticos do Presídio da Justiça Militar de São Paulo, que acabaram por constituir algo como um antecedente das comissões da verdade. Em segundo, eles o fizeram em plena vigência da ditadura, que durava mais de uma década e só daria lugar a um governo civil nove anos depois. Em terceiro, se se trata de um trabalho que não pode ser comparado ao Nunca más em extensão e alcance, tendo em vista as condições adversas em que foi elaborado, essas mesmas condições tornam ainda mais surpreendente que ele exista, pois teve que ser feito em segredo 1 e, naturalmente, sem nenhum apoio oficial e sem poderes ou recursos para investigação.
Antes da carta, houve outras denúncias de tortura de presos políticos, que logo a ditadura militar 2 buscou silenciar. Elas começaram pouco depois do golpe de 1964, e o primeiro livro dedicado ao assunto foi Torturas e Torturados (Rio de Janeiro: Idade Nova, 1966), de Márcio Moreira Alves, censurado e recolhido pelo governo federal no próprio ano da publicação. Ele foi liberado judicialmente em 1967, mas por pouco tempo; o então deputado federal pelo MDB logo teve que partir para o exílio em razão do AI-5 3.
Márcio Moreira Alves contou que, para escrever a obra, penetrou incógnito na Penitenciária do Recife, participou de redes clandestinas de militantes políticos e recolheu depoimentos de cerca de cem torturados, e assim foi “descobrindo a sistemática da tortura, vendo que ela não era uma aberração praticada por elementos incontrolados da polícia e do Exército mas sim uma necessidade do regime, ditada pela sua política econômica” 4.
Com efeito, a tortura, assim como outros abusos contra os direitos humanos eram uma necessidade, e não um acidente do regime, que nisso revelava sua natureza evidentemente autoritária. Como, simultaneamente, o governo federal queria preservar aparências democráticas (e um dos discursos de legitimação do regime, repetido por Castelo Branco em sua posse na presidência, era justamente o de que o golpe de 1964 havia sido dado para “preservar” a democracia), tais abusos contra os direitos humanos nunca foram permitidos juridicamente de forma aberta.
Embora, nesta última ditadura no Brasil, tenha-se adotado uma sistemática jurídica de fazer a Constituição 5 conviver com um direito de exceção que dava ampla margem de discricionariedade ao governo de agir contra as garantias constitucionais, nem mesmo os Atos Institucionais, o instrumento maior desse direito de exceção, permitiram a tortura, as execuções e os desaparecimentos forçados. Fazê-lo teria sido o equivalente a uma confissão pública, que a ditadura militar jamais desejou.
Contudo, o direito de exceção, ao transformar a arbitrariedade em regra, impedindo a apreciação judicial dos atos praticados com base nos atos institucionais e nos complementares, e ao abolir, pelo AI-5, o habeas-corpus para os crimes políticos, fez com que a defesa contra esses abusos se tornasse mais difícil; não apenas, note-se, a defesa judicial, mas também a de caráter político, que se viu cerceada pela ampliação dos poderes de censura, de cassação e suspensão dos direitos políticos, interditando fortemente o debate.
Tratava-se de uma forma hipócrita de produzir legalmente a ilegalidade: os crimes cometidos pela repressão não eram permitidos, porém se tornava mais difícil combatê-los legalmente.
Como esses crimes foram sistematizados informalmente, para mantê-los nessa meia-luz (ilegais, porém institucionalizados, para que não fossem iluminados pelo debate e pela denúncia no espaço público, a censura e o segredo eram fundamentais para o regime.
Outras necessidades da ditadura militar, para evitar as apurações dos próprios crimes, foram as de afastar a Justiça Comum dos crimes contra a segurança nacional, o que foi realizado já no segundo Ato Institucional, em 1965, e de intervir no Judiciário e no Ministério Público, afastando quem fosse mais comprometido com a defesa dos direitos humanos do que com a defesa do regime autoritário. A ditadura necessitou da cumplicidade da Justiça Militar e do Ministério Público que atuava junto a essa Justiça para que fossem ignoradas, em grande parte dos casos, as sistemáticas ilegalidades dos inquéritos penais militares e dos processos, bem como as denúncias, feitas pelos presos políticos, de torturas e de execuções pelas forças da repressão.
Após o AI-5, com o endurecimento da repressão política e da censura, cresceu a importância, para as denúncias dos abusos contra os presos políticos, de instituições estrangeiras, da imprensa internacional e de redes de exilados brasileiros no exterior. Tiveram um papel nessas denúncias a Igreja Católica, a Anistia Internacional, a Associação Internacional dos Juristas Democratas, a Frente Brasileira de Informações, entre outras instituições e redes.
A interdição do debate no Brasil (com exceções como o do assassinato de Olavo Hanssen em 1970, que foi noticiado com cautela pela imprensa) facilitou à ditadura lançar-se ao genocídio indígena e ao massacre dos combatentes da Guerrilha do Araguaia na primeira metade dos anos 1970. Ademais, a própria denúncia configuraria um crime contra a segurança nacional, como pretexto da “difamação” da imagem do Brasil.
2. A carta de 1975: a denúncia feita no próprio coração da repressão
Após o AI-5, a denúncia dos abusos contra os presos políticos tornou-se mais difícil no Brasil. Redes no Brasil, como o Comitê de Defesa dos Presos Políticos, levavam informações à imprensa, que muitas vezes preferia nada publicar 6.
A esfera internacional, apesar dos esforços do Ministério das Relações Exteriores, certamente não poderia ser controlada da mesma forma. James Green, em livro recente, explica como a imprensa dos EUA, depois do apoio ao golpe de 1964, passou a criticar a repressão política da ditadura brasileira nos anos 1970 7. Também incomodaram as autoridades militares, entre outros acontecimentos, o grande fluxo de cartas da Anistia Internacional desde 1972 e a decisão do Tribunal Bertrand Russell, em Bruxelas, de julgar e condenar a tortura no Brasil em 1974.
Tais iniciativas eram tipificadas pelo governo federal como medidas de “guerra psicológica”, estágio da “guerra revolucionária”, para difamar a imagem do país no exterior. Por sinal, no Minimanual do Guerrilheiro Urbano, Marighella classifica da mesma forma (medidas da “guerra de nervos ou guerra psicológica”) as denúncias de violência a embaixadas estrangeiras, à ONU, à Igreja Católica e às comissões internacionais de juristas.
Essas denúncias internacionais contra a ditadura militar ocorreram em um contexto, a partir de 1975, em que a “comunidade de segurança” passou a ter “medo” de ser julgada “pelos seus atos” 8. No início desse ano, em 20 de janeiro, Geisel havia feito a Segunda Reunião do Comando das Forças Armadas, em que expressou sua preocupação com o problema:
Nós continuamos a ter um grande fator negativo, sobretudo no âmbito interno, que são alguns setores internos que nos acusam de arbitrariedade, de torturas, de procedimentos ilegais. Isto é extremamente negativo para o Governo, e nós temos que examinar, e ver até onde nós podemos ir para atender a este problema que se apresenta aí, dos direitos da pessoa humana. Eu não sou um fetichista nesta matéria, mas também acho que nós temos que ter cuidado para que isso não vire um “bumerangue” contra nós 9.
Por conta dessa preocupação, vinculada ao controle da abertura política (que encontrou resistências dentro das próprias Forças Armadas), Geisel pediu à OAB que informasse o Ministro da Justiça, Armando Falcão, casos de prisões ilegais. O então presidente do Conselho Federal da OAB, o civilista Caio Mário da Silva Pereira, afirmou que não tinha conhecimento de denúncias concretas de prisões irregulares e de arbitrariedades policiais, o que foi publicado pela Folha de S.Paulo em 1º de agosto de 1975.
A embaixada dos EUA no Brasil comentou, por meio de telegrama confidencial (desclassificado em 2006 pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos) que embora não visse nenhum franco progresso em matéria de direitos humanos, era positiva essa notícia envolvendo a OAB: “Uma mensagem como essa tem a função potencial, como tiveram os esforços do governo em parecer sensível às listas de “pessoas desaparecidas”, de alertar o aparelho de segurança que práticas irregulares correm algum risco de exposição e (presumivelmente, no mínimo) de ação disciplinar. Continua possível que, em longo prazo, essa tática possa ter um efeito significativo” 10.
A embaixada dos EUA (em momento político diverso de 1964, quando apoiou e participou da conspiração para derrubar o presidente João Goulart por meio da operação Brother Sam) não via melhoras em curto prazo no tocante ao sistema de repressão política.
Nesse contexto autoritário, com as resistências do aparelho da repressão à nascente abertura política, foi notável que, em outubro de 1975, os presos políticos do Presídio da Justiça Militar Federal lograssem escrever e enviar uma longa carta ao presidente do Conselho Federal da OAB.
Este texto, publicado neste livro, não analisará o percurso político dos signatários da carta 11, antes ou depois de 1975, o que exigiria um estudo específico. Note-se apenas que, após o fim da ditadura, alguns deles mantiveram um papel político muito relevante, como, por exemplo, José Genoíno Neto, por longo período deputado no Congresso Nacional; Paulo Vanucchi, que chegou a Ministro de Direitos Humanos no governo do Presidente Lula e é hoje membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e Aton Fon Filho, com sua atuação junto ao Movimento dos Sem Terra.
Ademais, tendo em vista a impressionante vocação da esquerda clandestina da época para o fracionamento, foi notável que esses militantes tenham sabido unir forças naquele momento.
A partir da denúncia da adoção da prática dos desaparecimentos forçados pelo governo, e citando o compromisso com os direitos humanos assumido por outro jurista, Seabra Fagundes, os signatários assumiram explicitamente seu lugar de sobreviventes e testemunhas não só dos crimes da ditadura militar, como também da impunidade dos torturadores, inobstante as denúncias feitas desde 1964. Em seguida, recordaram o uso da greve de fome como forma de protesto dos presos políticos contra as indignas condições do encarceramento e apresentaram a divisão temática da carta: descrição dos modelos e técnicas de tortura (assunto em que o Brasil destacava-se, acertaram os militantes ao escrevê-lo, “no plano internacional”); “apresentação das irregularidades jurídicas”, pois nem mesmo o direito de exceção da ditadura era cumprido pelas autoridades; “narração dos casos de presos políticos assassinados ou mutilados em virtude de torturas”.
No final da primeira parte, lê-se a impressionante (e incompleta) lista de 233 acusados de torturar. A segunda distingue as fases policial-militar, judicial e o cumprimento da pena. O minucioso levantamento das ilegalidades, a cada passo dos inquéritos e dos processos, é exemplar, desde o momento da prisão, que, em regra, descumpria os requisitos constitucionais e do Código de Processo Penal Militar (o CPPM era aplicável aos civis nos crimes contra a segurança nacional). Na prática, o que as autoridades realizavam eram sequestros.
O CPPM previa um prazo de dez dias de regime de incomunicabilidade para o preso que era, em geral, desrespeitado, o que gerou situações como a dos “presos enrustidos”, cuja prisão não estava legalizada. O então vigente Estatuto da Advocacia previa que o advogado deveria ter acesso ao cliente mesmo quando estava incomunicável. Essa previsão também era, em regra, violada. A própria comunicação da prisão às autoridades judiciais não era realizada na maior parte dos casos, o que levou à prática, como bem apontaram os presos políticos no documento, do “habeas corpus de localização”: como as prisões eram feitas clandestinamente, os advogados propunham a medida para tentar descobrir onde o preso político estava ou se ainda vivia.
Deve-se acrescentar a essas considerações que, na medida em que a prisão ainda era clandestina, não era possível configurar a proibição do habeas corpus pelo AI-5, pois o caráter político do crime não havia sido formalizado.
No tocante às condições carcerárias, os presos testemunharam que a própria caracterização da natureza política do crime era violada pelas autoridades, porquanto o Decreto-lei nº 898 de 1969, então a “Lei” vigente de segurança nacional, previa que as penas deveriam ser cumpridas “sem rigor penitenciário”. Denunciaram as condições desumanas de várias prisões (problema que continua, hoje, longe de ser resolvido no Brasil) bem como o tratamento sofrido pelos presos comuns, alguns submetidos a trabalhos forçados, e outros assassinados por meio de torturas.
A terceira divisão temática foi iniciada com um número de vítimas da ditadura militar (“quase três centenas”) que, hoje, sabe-se bastante subestimado tendo em vista o genocídio indígena, sofrido pelos povos que resistiram às políticas da ditadura para a Amazônia. Essas mortes ainda estão sendo apuradas, entre outras instituições, pela Comissão Nacional da Verdade; já se tem conhecimento que certamente alcançam mais de dez vezes a estimativa apresentada pelos presos políticos em 1975, que não tinham como saber desses massacres sigilosamente realizados na região norte do país.
A amostra da carta destaca dezesseis casos “presenciados ou acompanhados de perto” pelos signatários, entre eles o de Olavo Hanssen, assassinado em maio de 1970, cujo sobrenome foi escrito incorretamente, apenas com um “s”, pois desta forma foi grafado à época pelo governo e pela imprensa. O erro foi revelado apenas recentemente, o que é mais um sinal da necessidade das diversas Comissões da Verdade existentes hoje no Brasil: mesmo no caso de Hanssen, que alcançou repercussão internacional, desconhecíamos ainda há pouco até mesmo o nome correto da vítima da repressão.
Em seguida, os presos políticos retomam a lista dos nomes de dezenove desaparecidos, a que somaram mais vinte, que havia sido enviada em 10 de fevereiro de 1975 ao Superior Tribunal Militar em resposta à farsa do pronunciamento, no início daquele ano, do Ministro da Justiça, Armando Falcão. A seção encerra-se com casos de quem sobreviveu à tortura, mas com danos e sequelas (abortos, cegueira, loucura, mutilação), ou acabou por suicidar-se em decorrência dos traumas (tal qual ocorreu com Frei Tito).
A carta foi assinada em 23 de outubro de 1975; em dramático post-scriptum, sob o título “em tempo”, é acrescentada a notícia do “suicídio” (que é grafado entre aspas; a própria experiência dos presos não lhes permitiria acreditar na farsa oficial) de Vladimir Herzog. Os presos mencionaram os dois médicos, Arildo de Toledo Viana e Harry Shibata, que haviam assinado o laudo, e qualificaram o último como “Mengele”: “Esclareça-se que este último, verdadeiro Mengele do Brasil de hoje, é quem sistematicamente firma os atestados de óbito de presos políticos assassinados pela OBAN”. Shibata atestou a morte como suicídio sem nem mesmo ter visto o corpo de Herzog 12. Justiça seja feita aos médicos brasileiros, ele acabou por perder o registro profissional. Nada de parecido aconteceu no Judiciário brasileiro, cuja ativa colaboração com a ditadura militar jamais foi revista institucionalmente – tal foi, e continua sendo, a transição incompleta para a democracia no Brasil.
Além da denúncia abrangente da estrutura do sistema de repressão, que abarcava as autoridades policiais e militares, bem como o Ministério Público e o Judiciário, a carta acaba por ser um sinal notável da paulatina transformação da atitude da esquerda revolucionária em relação aos direitos humanos: do menosprezo, na maior parte dos casos 13, até a preocupação com o assunto. Lemos, em seu final, esta afirmação: “Face a toda essa situação de extrema violência política dirigida contra os opositores do regime, mais uma vez reafirmamos nossa convicção de que ela só terá fim quando forem eliminadas as causas de sua existência. Assim, firmemente, apoiamos a luta pelos direitos da pessoa humana em nosso país, dela participando”.
A própria força política da carta é ressaltada quando lida dentro desse contexto de luta pelos direitos humanos, especialmente na campanha pela anistia, que tomava fôlego nessa época. Com efeito, ela foi publicada integralmente no livro de 1982, em dois volumes, publicado pelo Congresso Nacional, que documenta os debates parlamentares de 1979 sobre a lei de anistia.
O Presidente da Comissão Mista sobre Anistia do Congresso Nacional, Senador Teotônio Vilela (ARENA-AL), havia visitado as prisões e coligido o material que lhe foi entregue, do qual fez cópia aos outros parlamentares, com a documentação dos presos políticos, pareceres da OAB e documentos da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e outras organizações. Todo esse material foi publicado como anexo dos debates, que tiveram como um de seus tópicos mais sensíveis exatamente a situação dos presos políticos, Durante os trabalhos no Congresso, muitos desses presos estavam em greve de fome justamente em reivindicação da anistia ampla e irrestrita, e que acabou por não ser atendida pela lei aprovada 14.
3. Repercussão da carta e as reações oficiais e oficiosas às denúncias
O SNI, chefiado pelo futuro sucessor de Geisel, o general João Figueiredo, como reação à carta buscou verificar sua autenticidade, já no fim de 1975, por meio de exames grafotécnicos das assinaturas e de interrogatórios dos presos; como era de se esperar, não se interessou em apurar o mérito das denúncias 15.
O Estado de S.Paulo publicou trecho da carta sobre as modalidades de tortura, mas a lista dos acusados de tortura não foi divulgada abertamente no Brasil antes de 1978. Em círculos mais fechados de oposicionistas, ela foi conhecida. Podemos vê-la no final do Relatório da IV Reunião do Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos no Brasil, de fevereiro de 1976.
O Comitê havia se reunido pela primeira vez em 1973, denunciando então o assassinato de 28 presos políticos no Brasil. Em 1976, poucos meses depois do documento dos presos políticos, preparou este documento:
Nas últimas reuniões do Comitê de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil dedicamos particular atenção ao trabalho de identificação das pessoas responsáveis direta ou indiretamente pela aplicação de tortura aos presos políticos, cônscios de que a divulgação de seus nomes, cargos e patentes é tarefa importante na luta de oposição ao fascismo brasileiro, com vistas à sua destruição.
Neste ano, por ocasião da 4ª Reunião de nosso Comitê nos limitaremos a transcrever extensa relação de torturadores denunciados por presos políticos da cidade de São Paulo, através de importante documento dirigido, em meados do ano ao Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, e que obteve significativa divulgação nacional e internacional. São coligidos, nesse documento, 233 nomes […] 16
A lista foi publicada, já no ano seguinte, em Portugal 17 e, traduzida parcialmente, com 151 nomes (não foram incluídos os que eram acusados de colaborar com a tortura sem a praticar diretamente) para o francês, na França. Neste país, assinalou-se que “a existência – mas não o texto – desse documento foi apontada à opinião pública do Brasil em um artigo publicado pelo jornal ‘O Estado de São Paulo’ [sic] de 20 de janeiro de 1976” 18.
Na verdade, a matéria de O Estado de S.Paulo, “Relatório aponta violências”, chegou a citar trechos da carta e descreveu algumas das formas de tortura. O jornal revelou que a carta foi levada pelo Conselho Federal da OAB às “principais autoridades do País, no final do ano passado” e que ela mencionava “os nomes e funções dos torturadores”. A avaliação do documento me parece bem exata: “De forma geral, trata-se de um documento redigido com bastante frieza e que se limita a fatos. Nem por isso sua leitura deixa de ser impressionante pelas revelações de brutalidade”. Essa matéria jornalística foi republicada em 1979 no Dossiê Herzog 19.
A notícia foi dada como parte de uma reportagem maior, “Exército anuncia morte de preso”, em que foi reproduzida e comentada a nota do Comando do II Exército sobre a morte do operário Manoel Fiel Filho, apresentada como um suicídio, mas que ocorreu em virtude de torturas no DOI em São Paulo, e a exoneração do general Ednardo D’Avila Mello, que estava à frente do Comando mencionado, por Geisel. O assassinato, poucos meses após o de Herzog, levara o presidente a agir dessa forma, em razão, como ressalta Gaspari, da “disciplina militar” (sua autoridade estava sendo desafiada), e não dos “direitos humanos”; afinal, “Aceitara a tortura e os assassinatos porque vira neles recursos lógicos para a defesa do Estado” 20.
Provavelmente reflete o clima de medo que o jornal somente tenha noticiado a carta de 1975 depois da exoneração do general. Muito oportunamente, pouco depois o Instituto Gallup fez uma pesquisa sobre “o medo nas grandes cidades”, revelando que 67% dos paulistanos temiam ser presos.
O Comando do II Exército, muito incomodado com a pesquisa, que foi explorada na imprensa contra a ditadura militar, chamou o diretor do Instituto, Carlos Eduardo Meirelles Matheus, para prestar explicações. No documento confidencial de 6 de fevereiro de 1976 que difundiu o caso para órgãos da comunidade de informações, chegou-se praticamente a admitir as torturas denunciadas na carta dos presos políticos: “A difusão do dado coincidiu, logo após a mudança do novo Comandante do II Exército, com a exploração do depoimento-KONDER, memorial dos jornalistas levantando dúvidas sobre a lisura do IPM-HERZOG, torturas de presos políticos exploradas pela OAB e intervenções do jornalista ALBERTO DINES na coluna Jornais dos Jornais da Folha de São Paulo [sic], agredindo a Revolução […]” 21.
No mesmo dia, ficou pronta outra informação confidencial do II Comando, com o “resumo da vida criminosa dos terroristas signatários do Manifesto enviado à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e transcrito parcialmente na Imprensa de São Paulo”; sua elaboração foi uma tentativa de desqualificar as denúncias: “Para se ter a ideia da periculosidade de tais elementos e, por conseguinte, suas denúncias não são dignas de fé […]” 22.
O SNI, em informação de 1976, também preocupado com a repercussão do documento, atacou a OAB:
Esta entidade está atuando dentro do esquema subversivo, programado pelo MCI, e executado pelos seus sequazes no BRASIL. Este órgão, já infiltrado pelos comuno-esquerdistas, fugindo à ética que alega na sua representação, divulgou ao mesmo tempo e através do seu presidente, à imprensa estrangeira – objetivando a agitação e a desmoralização dos órgãos de segurança do País, no exterior – o documento que estava enviando ao GAB CIV DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA.
O jornal “THE MIAMI RERALD/EUA” [sic], na sua edição de 04 Dez 75, publicou o artigo “PRESOS FALAM DE TORTURA NO BRASIL”, onde acrescenta que o Presidente da OAB havia liberado o documento citado e que também o estava remetendo ao Presidente ERNESTO GEISEL e ao Congresso Nacional […]
Esta má fé caracteriza a posição do seu presidente CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, elemento esquerdista e anti-revolucionário, bem como de seu vice-presidente HELENO FRAGOSO, militante comunista e notório defensor de presos subversivos, […] 23
No entanto, a lista só viria à luz no Brasil com a matéria “Presos denunciam torturadores”, publicada na edição de 26 de junho a 2 de julho de 1978, que trazia o retrato de quatro dos agentes apontados. Na própria publicação, o jornal comentava que:
A denúncia foi formulada há quase três anos. Mas continua inédita nos jornais do país, pois não encontrou quem publicasse, aguardando talvez “dias melhores”. 35 presos políticos fizeram uma relação dos nomes daqueles que foram seus algozes entre 1969 e 1975. EM TEMPO publica a acusação, na semana em que entra em julgamento o processo que a família de Wladimir [sic] Herzog move contra o governo, por conta da sua morte nas dependências do II Exército, quando lá se encontrava detido, em outubro de 1975 24.
A publicação no jornal Em Tempo teve imediata repercussão no Exército, como vemos em documento confidencial difundido ao DOI do II Exército 25, com a queixa da falta de providências do Ministério da Justiça em processar o jornal com base na Lei de Imprensa:
O Exmº Sr. Ministro do Exército, pelo Aviso nº 97/3, de 27 de julho de 1978, solicitou ao Exmº Sr. Ministro da Justiça providências no sentido de que o referido semanário fosse processado.
Pela Informação 1031/S-112-A11-CIE, de 21 Ago 78, o CIE remeteu ao CMP/11ª RM, cópia dos pareceres da Divisão de Pareceres e Estudos e do Consultor Jurídico do Ministério da Justiça, relativos ao caso.
A Diretora da Divisão anteriormente referida, Doutora THEREZA HELENA SOUZA DE MIRANDA LIMA, após extensas considerações de ordem legal, julga necessário “uma cuidadosa e profícua investigação preliminar, na qual se verifiquem a existência do documento (que, segundo o periódico, teria servido de base à notícia em tela) seu teor, as colocações nele feitas passíveis de apuração” (o grifo é do CMP/11ª RM). Ressalta a Doutora THEREZA “que, para a condenação por delito previsto no Decreto Lei 898/69 (Lei de Segurança Nacional), há que estar provado o dolo específico, isto é, a vontade determinada de atingir a segurança nacional tal como conceituada, ela, no seu Art 3º”. Com isso, parece-nos, a jurista em tela ainda põe em dúvida o caráter doloso do artigo.
É claro, no documento, que a jurista incomodou as autoridades do Exército ao apontar a verdadeira questão (o que, certamente, levou ao grifo assinalado): dever-se-ia investigar se o documento e suas alegações (ou seja, as torturas, os desaparecimentos, as execuções) eram verdadeiros. Ela ainda considerou que seria necessário verificar o público e a penetração do Em Tempo, bem como descobrir como ele era financiado, uma vez que recebia escassa publicidade.
Essas diligências impediriam, perceberam as autoridades militares no mesmo documento, que se observasse o prazo de três meses da data de publicação para oferecer queixa contra o jornal, previsto na então vigente Lei de Imprensa:
Em seu Artigo 41, a Lei 5250/67 (Lei de Imprensa) estabelece que “o direito de queixa ou representação prescreverá, se não for exercido dentro de 3 meses da data de publicação”. No caso, o prazo acima referido terminará em 26 de Setembro de 1978.
Com as informações disponíveis até o momento, parece a este Comando que as “cuidadosas investigações e levantamentos sugeridos”, e aprovados pelo Consultor Jurídico do Ministério da Justiça, Dr RONALDO REBELLO DE BRITTO POLETTI, redundarão no esgotamento do prazo legal, necessário para a medida punitiva solicitada, e na consequente impunidade do semanário “EM TEMPO”.
Não poderia ter havido “impunidade”, pois não ocorrera delito. De qualquer forma, ocorreu uma pronta resposta, na forma de vingança: pouco depois da publicação, o jornal foi alvo de atentados terroristas. A seção São Paulo do Comitê Brasileiro pela Anistia, em 31 de julho de 1978, fez uma vigília na Câmara Municipal de São Paulo em razão da invasão da sede e prisão de jornalistas do jornal Versus, em Brasília, e dos atentados ao jornal Em Tempo nas cidades de Curitiba e Belo Horizonte, relatada por policiais 26. A seção de Minas Gerais também manifestou seu apoio: “É público e notório que o Jornal ‘Em Tempo’ passou a ser vítima de bombas e ameaças a partir da publicação de uma lista de 233 torturadores e de denúncias sobre torturas” 27.
No ano seguinte, em extensa matéria sobre os órgãos de segurança no Brasil, a revista Veja mencionou a carta com um protesto de delegado, que não se identificou e alegou que viu “coisas de arrepiar”, mas não teria praticado a tortura. No entanto, outro delegado, Firmiano Pacheco Neto, confessou abertamente a violência e fez este pedido à revista: “Olha, se você for publicar a lista de torturadores, não tira meu nome, não: isso pode prejudicar a minha carreira” 28. O mérito administrativo era medido em sangue.
4. Para não concluir: justiça e verdade na escrita do ácido
Outras denúncias por presos políticos foram feitas após esta carta de 1975, embora nenhuma viesse a ter o mesmo alcance.
Pode-se destacar outra missiva ao presidente do Conselho Federal da OAB, escrita por encarcerados no Presídio Político do Rio de Janeiro em 24 de novembro de 1976. Embora com praticamente a mesma extensão da anterior, era muito diferente por não fazer muita análise de casos concretos, não apresentar uma lista de acusados de tortura e concentrar-se em oferecer uma crítica ideológica à ditadura militar, até mesmo com recurso a Hegel para contestar a Justiça Militar 29.
Em 18 de abril de 1979, os presos políticos do Rio de Janeiro enviaram outra carta à OAB e a outras organizações, como o Comitê Brasileiro de Anistia e o Movimento Feminino pela Anistia com uma relação de 251 torturadores, alguns deles, como na lista de 1975, sem identificação completa. Ela também foi incluída no anexo do livro do Congresso Nacional que documentou os debates sobre a Lei de Anistia (Anistia: Documentário Organizado por determinação do Presidente da Comissão Mista do Congresso Senador Teotônio Vilela).
Porém, no tocante às medidas relativas ao direito à justiça, à memória e à verdade, a carta de 1975 é a mais interessante do período, e foi importantíssima para a identificação dos agentes da repressão:
Depois desta lista, o “Em Tempo” publicou mais duas relações de militares acusados de cometerem tortura. Na época, a tiragem do semanário era de 20 mil exemplares, rapidamente esgotada nas bancas, batendo o recorde do jornal. A publicação fechou o tempo para o jornal, que sofreu naquela semana dois atentados. A sucursal de Curitiba foi invadida e pichada. Na parede, os vândalos deixaram a marca em spray “Os 233”.
O outro atentado aconteceu na sucursal de Belo Horizonte: colocaram ácido nas máquinas de escrever. Na capital mineira, a repercussão foi maior porque os militantes de esquerda saíram em protesto a favor do jornal 30.
Essa reação do terror da direita, já referida na seção anterior deste texto, jamais recebeu punição dos órgãos oficiais. A impunidade (denunciada na carta de 1975) era tão garantida que alguns agentes do DOPS/SP nem mesmo consideravam que o uso de pau de arara configurasse tortura, de tão naturalizada se tornou a violência do Estado 31.
Por conseguinte, as múltiplas iniciativas em prol da justiça de transição, que vêm surgindo em vários setores da sociedade, de antigos presos políticos até a geração do Levante Popular da Juventude, em várias regiões do país, iniciativas que partem dos meios acadêmicos, sindicais, da política institucionalizada, devem agir contra essa naturalização da violência, que permanece nas instituições de segurança pública.
Nesse sentido, lutar contra a impunidade do passado pode gerar um efeito político sobre a impunidade de hoje. E, no tocante às investigações sobre os agentes da repressão política, a carta de 1975 oferece uma lista que pode ser de grande utilidade para entender e desvelar a estrutura das cadeias de comando.
Com as atuais demandas sociais pela justiça de transição, felizmente já não se pode mais dizer “que, passados tantos anos, os torturadores não foram sequer indiciados judicialmente” 32, como já escreveu Janaína Teles. Em processo movido por ela mesma e sua família, o coronel reformado Brilhante Ustra, o primeiro nome entre os torturadores na lista feita pelos presos políticos, e antigo chefe do DOI-CODI de São Paulo, foi decla- rado torturador, unanimemente, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2012.
No mesmo ano, ele foi condenado a indenizar a família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, jornalista assassinado em 1971. Além disso, membros do Ministério Público Federal têm proposto ações criminais contra antigos torturadores, apesar de, em 2010, o Supremo Tribunal Federal ter considerado válida a lei de anistia. Eles o fazem com base em jurisprudência do próprio STF que trata os desaparecimentos como crimes continuados e, portanto, ainda não prescritos e, tampouco, anistiados.
A criação de diversas comissões da verdade, além da Nacional (como é exemplo esta Comissão do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”) mostra que continua em jogo a realização da justiça de transição no Brasil, bem como o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros. Ela condenou, no fim de 2010, o Estado brasileiro a localizar os mortos da Guerrilha do Araguaia e a investigar e punir os responsáveis pelas mortes e pelo desaparecimento dos cadáveres.
De certa forma, os terroristas de direita que jogaram ácido nas máquinas de escrever do Em Tempo tinham razão: para as autoridades, aquelas denúncias e esta carta haviam sido escritas com ácido, por revelarem a ilegalidade dos métodos das instituições de segurança e de justiça, e por desvelarem que o segredo e a censura eram necessários, tanto quanto a ilegalidade e o terror, para manter o regime.
A carta descrevia algumas das táticas do que chamo de produção legal da ilegalidade, por meio de que as próprias instituições de garantia da ordem jurídica produzem decisões contrárias ao ordenamento legal (inclusive violando o próprio direito de exceção produzido pela ditadura, como os próprios presos políticos bem assinalaram). Trata-se de uma relação paradoxal entre legalidade e ilegalidade, mais complexa do que a simples ideia de uma “suspensão” da legalidade nos “porões” da ditadura, o que falseia dois dados essenciais: as normas jurídicas não eram simplesmente suspensas nas prisões da ditadura (além de propiciarem paradoxalmente a ilegalidade, não se podia falar de suspensão do ordenamento: o direito administrativo, por exemplo, para vários efeitos continuava vivo nos esquemas de repressão, como, na organização hierárquica); em segundo lugar, as torturas não vinham dos “porões”, não correspondiam a meros “acidentes”, e sim originavam-se dos próprios palácios do poder, e eram da “substância” do regime.
Nesse regime autoritário, não é de admirar que os defensores da legalidade – penso aqui nos advogados de presos políticos – fossem perseguidos. Retomo, neste momento, a informação do SNI de 1976 que caracteriza o jurista conservador Caio Mário da Silva Pereira (que não advogou para esses presos, ao contrário de Heleno Fragoso, também mencionado no documento) de “elemento esquerdista e antirrevolucionário”. Trata-se de mais do que manifestação histérica do anticomunismo inerente à doutrina de segurança nacional. Pilar Calveiro, ao que me parece, viu bem a questão, que também estava presente na Argentina: “toda acción legal, como la presentación de habeas corpus, denuncias, búsqueda de personas, juicios, era considerada ‘subversiva’” 33.
Nesse sentido, o legalismo era uma ameaça às instituições…
Creio que as reações dos setores conservadores contra as atuais iniciativas de justiça de transição, as resistências contra a responsabilização pelos crimes contra a humanidade praticados pelos agentes da ditadura, alguns dos quais apontados nesta carta, sejam ainda uma herança dessa cultura cínica em relação ao Direito, presente na ditadura militar, e evidenciam o caráter incompleto da transição democrática no Brasil. Espero que a nova publicação desta carta sirva para que essas iniciativas continuem e se realizem.
1 O segredo também marcou a elaboração do Brasil: Nunca Mais, o que marca uma das diferenças entre os processos de transição democrática no Brasil e na Argentina; neste país, os militares não lograram manter o controle político que seus pares conservaram no Brasil, o que é um dos fatores que explica por que é na Argentina, e não no Brasil, que as demandas de justiça contra os crimes dos agentes da ditadura estão sendo satisfeitas.
2 Adoto esta denominação, em vez de “ditadura civil-militar”, por concordar com a análise de Carlos Fico de que, se a preparação do golpe foi civil-militar, tanto no golpe como nas etapas posteriores do regime, assistiu-se a uma militarização progressiva, tanto na solução das crises políticas, quanto na ocupação de cargos na administração pública direta e indireta, no papel direto das Forças Armadas na polícia política, na agenda econômica intervencionista e estatizante (FICO, Carlos. Além do golpe: Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 38).
3 Sobre a produção bibliográfica a respeito da tortura durante a ditadura militar, ver MAUÉS, Flamarion. Os Livros de Denúncia da Tortura após o Golpe de 1964. Cadernos Cedem, vol. 2, n. 1, 2011, p. 47-59.
4 Depoimento recolhido em CAVALCANTI, Pedro Celso Uchôa; RAMOS, Jovelino (org.). Memórias do Exílio: Brasil 1964-19?? 1: De muitos Caminhos. Lisboa: Arcádia, 1976, p. 228.
5 A Constituição de 1946 foi mantida até o projeto governista que foi chancelado por um Congresso Nacional enfraquecido em 1967. Após o endurecimento do regime, marcado pela edição do AI-5, esse texto foi alterado por meio de uma emenda constitucional gigantesca em 1969 que consistiu na prática, em outra Constituição. Nos dois casos, não houve assembleia constituinte e a ditadura militar impôs o texto que projetou. Note-se que, mesmo com os direitos humanos constitucionais reduzidos em relação a 1946, os militares ainda precisaram fazer uso dos instrumentos de direito de exceção para suspender garantias que já haviam sido diminuídas.
6 Por exemplo, o DOPS de São Paulo recebeu em 25 de julho de 1974 que os jornais de Araraquara O Diário e O Imparcial “receberam, por via postal, panfletos de caráter subversivo com a sigla CDPP-Comitê de Defesa aos Presos Políticos, versando sobre ‘prisões e torturas praticadas pela polícia política de São Paulo’.” (Pasta 5312, fl. 274. Carta Mensal do departamento Estadual de Ordem Política e Social – SP. Julho 1974. Arquivo Público Mineiro).
7 GREEN, James N. Apesar de Vocês: Oposição à Ditadura Brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Trad. S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
8 FICO, Carlos. Como eles Agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 200.
9 Segunda Reunião do Alto Comando das Forças Armadas. 20 de janeiro de 1975. Arquivos da Ditadura: documentos reunidos por Elio Gaspari. Acesso em http://arquivosdaditadura.com.br (10 jan. 2014).
10 “Such a message has the potential function, as did the government’s efforts to appear responsive to the ‘missing persons’ lists, of putting the security apparatus on notice that irregular practicces [sic] run some risk of exposure and (presumably, at least) disciplinary action. It remains conceivable that over the long term this tactic may have some meaningful effect […]” (Document 1975Brazil07941. Human Rights Report: Recent developments suggest no net change. 11 September 1975)
11 Eles foram Alberto Henrique Becker, Altino Souza Dantas Júnior, André Tsutomu Ota, Antonio André Camargo Guerra, Antonio Neto Barbosa, Antonio Pinheiro Salles, Artur Machado Scavone, Ariston de Oliveira Lucena, Aton Fon Filho, Carlos Victor Alves Delamonica, Celso Antunes Horta, César Augusto Teles, Diógenes Sobrosa, Elio Cabral de Souza, Fabio Oscar Marenco dos Santos, Francisco Carlos de Andrade, Francisco Gomes da Silva, Gilberto Luciano Belloque, Gregório Mendonça, Hamilton Pereira da Silva, Jair Borin, Jesus Paredes Soto, José Carlos Giannini, José Genoino Neto, Luiz Vergatti, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto, Manoel Porfírio de Souza, Nei Jansen Ferreira Jr., Osvaldo Rocha, Ozeas Duarte de Oliveira, Paulo Radke, Paulo de Tarso Vannucchi, Pedro Rocha Filho, Reinaldo Morano Filho e Roberto Ribeiro Martins.
12 Na ação em que Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, com os filhos, então menores, Ivo e André, processaram a União Federal pelo homicídio do jornalista, o perito revelou não ter examinado o corpo. Isso tornou o laudo inválido e fortaleceu a tese de que o jornalista teria sido realmente assassinado. É possível que a sentença do juiz federal Márcio José de Moraes, que julgou a demanda procedente em outubro de 1978 (ou seja, ainda durante o governo Geisel), tenha sido um dos fatores que alertou as Forças Armadas a preparar um projeto de anistia, no ano seguinte, que protegesse os torturadores de futuros processos.
13 Para Serbin, a derrubada de Allende foi o principal fator para essa esquerda abraçar, no início taticamente, a defesa dos direitos humanos (SERBIN, Kenneth. Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, Tortura e Justiça Social na Ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 179).
14 Congresso Nacional. Comissão Mista Sobre Anistia. Anistia: Documentário organizado por determinação do Presidente da Comissão Mista do Congresso Senador Teotônio Vilela. Brasília, 1982, vol. II, p. 500-514.
15 “A culpa é do torturado: Figueiredo e Nini sabiam de tudo”. Veja, 25 de novembro de 1987, p. 8.
16 O documento, presente no acervo de Luís Carlos Prestes, foi doado pela viúva, Maria Prestes, ao Arquivo Nacional e pode ser consultado na internet: http://www.estadao.com.br/especiais/2012/01/Prestes_AN_200.pdf.
17 Comité Pró-anistia Geral dos Presos Políticos no Brasil. Dos presos políticos brasileiros: acerca da repressão fascista no Brasil. Introd. Fernando Piteira Santos; apresentação Comité de Solidariedade aos Revolucionários do Brasil. Lisboa: Edições Maria da Fonte, 1976.
18 “L’existence – mais non le texte – de ce document a été signalée à l’opinion publique du Brésil dans un article publié par le journal ‘O Estado de São Paulo’ du 20 janvier 1976 […]”. (Brésil: les 151 tortionnaires de prisonniers politiques. DIAL: Diffusion de l’information sur l’Amérique Latine. Paris, n 287, 4 mars 1976. Acesso em http://www.alterinfos.org). A DIAL havia divulgado, em abril de 1975, a carta do mesmo grupo de presos políticos, de 18 de fevereiro do mesmo ano, com a denúncia sobre dezenove presos políticos desaparecidos, ao Superior Tribunal Militar (Brésil: La disparition de 19 prisonniers politiques. DIAL : Diffusion de l’information sur l’Amérique Latine. Paris, n 215, 3 avril 1975. Acesso em http://www.alterinfos.org).
19 JORDÃO, Fernando. Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil. 4ª. ed. São Paulo, Global, 1980, p.147-149.
20 GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 220.
21 Documento 50-Z-08-1942. Confidencial. Ministério do Exército. Informação nº 252/76-C2. 6 fevereiro 1976. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
22 Documento 50-Z-08-1951. Confidencial. Ministério do Exército. Informação nº 253/76-C2. 6 fevereiro 1976. APESP.
23 Trata-se da Informação confidencial nº 022/16/AC/76, da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Estado ditatorial militar: coesão interna a qualquer custo. s/d).
24 A matéria está disponível na internet em http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=1129:documento-histórico-revela-lista-identificando-233-torturadores-brasileiros.
25 Documento 50-Z-09-42753; 42752. Confidencial. Ministério do Exército. Informação nº 684-E2/73. 21 agosto 1978. APESP.
26 Documento 50-Z-627-923. Estado de São Paulo – Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública. Divisão de Informações – SE/DOPS. 31 julho 1978. APESP.
27 Documento 50-Z-130-5006. Comitê Brasileiro pela Anistia – Minas Gerais. Subsídios para discussão sobre quem são os terroristas no Brasil. Novembro de 1978. APESP.
28 Descendo aos porões. Veja, 21 de fevereiro de 1979, p. 61.
29 Documento 50-Z-0-14856. Carta dos presos políticos no Presídio do Rio de Janeiro ao Conselho Federal da PAB. 24 novembro 1976. APESP.
30 A lista dos acusados de tortura. Revista de História da Biblioteca Nacional. Alice Melo e Vivi Fernandes de Lima. 29 dez. 2011. Acesso em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/na-rhbn/a-lista-de-prestes.
31 Foi o que candidamente revelou o ex-delegado José Paulo Bonchristiano, em matéria feita pela jornalista Marina Amaral (Conversas com Mr. DOPS, Agência Pública. 9 fev. 2012. Acesso em http://www.apublica.org/2012/02/conversas-mr-dops/).
32 TELES, Janaína de Almeida. “Entre o luto e a melancolia: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil”. In: SANTOS, C. Macdowell; TELES, E.; TELES, J. de Almeida. Desarquivando a Ditadura: Memória e Justiça no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2009, vol. I, p.163.
33 CALVEIRO, Pilar. Poder y Desaparición: Los Campos de Concentración em Argentina. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 2008, p. 78.