Quase quarenta anos após sua elaboração, a Carta ao Presidente do Conselho Federal da OAB é finalmente editada com o cuidado que lhe era devido. Em sua origem, o documento propunha-se a responder a uma solicitação pública do então Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Caio Mário da Silva Pereira, que alegava não possuir fatos concretos e respostas objetivas provindas de pessoas vítimas de prisão irregular e de arbitrariedades policiais; e terminou como a mais contundente denúncia de torturas e torturadores formulada e assinada por presos políticos brasileiros – no caso, o coletivo de presos encarcerados no Barro Branco, o Presídio Político de São Paulo, nos idos de outubro de 1975.

Reinaldo Morano Filho, foi preso político em São Paulo, de agosto de 1970 a março de 1977, advogado, médico, trabalha como psicanalista

É difícil retratar, especialmente para as novas gerações que cresceram no pós-ditadura, o quão pesado era o clima de terror vigente naqueles anos, que pareciam intermináveis. E o que dizer da situação nas cadeias, onde a Carta – uma denúncia assinada por presos – foi feita!

p04-02Na verdade, a história do documento começa bem antes, na transição dos anos 1960 para os 1970, quando centenas de combatentes contra a ditadura foram arrastados às prisões de todo o Brasil; e quando, em São Paulo, constituiu-se um grupo de militantes que entendia a prisão como um novo momento de sua luta, dentro da melhor tradição do movimento revolucionário internacional. Importa frisar que, naqueles anos, os presos que assim pensavam não eram maioria entre os encarcerados. Entretanto, inspirados pelo exemplo de heróis como Julius Fuchik, do Testamento sob a forca, e de combatentes como Henri Alleg, de A Tortura, definiram a coleta de informações sobre a ditadura, e seu registro sistemático, como uma das tarefas de seu cotidiano – sem descuidar do estudo, das discussões políticas e sem abrir mão da resistência permanente aos insultos e às tentativas de subjugação dos presos por meio de sua desmoralização ideológica e pela quebra de sua combatividade.

Já em 1969, essa parcela dos presos políticos detidos no Presídio Tiradentes participou da denúncia do Esquadrão da Morte, um grupo de extermínio de presos “correcionais” (chamados de “presos comuns”, em contraposição aos “presos políticos”). A partir do contato com os correcionais ali confinados, elaboraram-se listas de nomes dos “condenados” pelo Esquadrão, a seguir encaminhadas clandestinamente à Cúria Metropolitana de São Paulo. Lamentavelmente, os presos vieram a ser assassinados. E o Esquadrão da Morte, integrado por policiais violentos, agindo na franja do submundo das drogas, foi logo aproveitado pela máquina de repressão da ditadura para a perseguição de militantes políticos.

Daquela minuciosa coleta, brotaram textos clandestinos de denúncia que correram o mundo:

• O documento Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil, de fevereiro de 1973, com 26 páginas, que teve grande impacto na XIII Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil—CNBB, muito pelo empenho de Frei Giorgio Callegari, que fora preso político em São Paulo nos anos 1969-70. Este documento viria a denominar-se Relatório da Primeira Reunião do Comitê;

• O Relatório da Segunda Reunião do mesmo Comitê, de fevereiro de 1974, que avançou muito, quantitativa e qualitativamente, na consistência da narrativa apresentada;

• A Repressão Policial-Militar no Brasil, de janeiro de 1975, um longo ensaio de 267 páginas, que discutia os antecedentes históricos do golpe de 1964 e dissecava toda a política repressiva da ditadura que, havia mais de uma década, oprimia os trabalhadores, os estudantes, os artistas e intelectuais, enfim, a maioria do povo brasileiro; e que representou uma espécie de inspiração e fonte de muitos capítulos do importantíssimo trabalho do Brasil Nunca Mais;

• O Relatório da Terceira Reunião do Comitê, de fevereiro de 1975, voltado principalmente à questão dos “desaparecidos” e dedicado às suas famílias;

• O Relatório da Quarta Reunião, de fevereiro de 1976, dedicado à memória do jornalista Vladimir Herzog;

• E a Carta ao Presidente do Conselho Federal da OAB, que, diferentemente dos documentos anteriores, teve uma trajetória intencionalmente aberta. Mas todos com o mesmo DNA.

De nossa parte, portanto, tínhamos como atender à demanda do Presidente do Conselho Federal da OAB, até porque, naquela quadra da história dos presos políticos, a postura de resistência como tarefa dos militantes encarcerados havia se tornado majoritária. Desta forma, o coletivo dos presos do Presídio Político de São Paulo pôde tomar a iniciativa e entregar-lhe um conjunto de fatos – com datas, locais, nomes, cargos e patentes – que resultou numa denúncia muito consistente: afinal, éramos vítimas e sobreviventes da ação da máquina de tortura e assassinato da ditadura – tortura e assassinato erigidos à condição de política de Estado do país desde 1964 – e, naquele momento, mais que tudo, testemunhas indesmentíveis do que ocorria no Brasil.

Datada de 23 out. 1975, dia em que sua redação foi encerrada, a Carta ganhou um post-scriptum para incluir a notícia da morte sob tortura, dois dias depois, do jornalista Vladimir Herzog, e para fazer a denúncia da farsa montada visando a encobrir mais esse assassinato perpetrado pelo regime militar.

Como sobreviventes e testemunhas, ao descrever os métodos e instrumentos de tortura comumente utilizados nos órgãos repressivos, deixamos claro que iríamos começar “por aqueles que experimentamos em nossa própria carne”.

Ao falar das câmaras de tortura, identificamos os locais em que nós havíamos sido torturados e onde eles se situavam, não em supostos porões, à revelia de generais comandantes e que tais, mas em quartéis e unidades militares das três armas, sobejamente conhecidos de toda a hierarquia, e em delegacias e departamentos de polícia, civil e militar.

Sobre os torturadores, apresentamos uma lista de 233, frisando que todos os nomeados nós os havíamos conhecido pessoalmente; e, se fosse o caso, de torturadores espalhados pelo Brasil, tínhamos uma lista de nomes bem maior.

Ao falar do Poder Judiciário, esmiuçamos as inúmeras irregularidades jurídicas cometidas contra os prisioneiros políticos e verificadas desde o ato da prisão até a soltura, demonstrando que nem as próprias leis de exceção do regime – de natureza discricionária, violentando os mais comezinhos direitos do homem em pleno século XX, eram cumpridas. Ao descrevermos a farsa do “reconhecimento dos acusados” para o forjamento de testemunhas de acusação, assim como todas as outras arbitrariedades, o relato era muito vivo, porque sempre apoiado na experiência de cada um e de todos os signatários do documento. Afinal, estávamos todos condenados, com base nesses inquéritos e processos, a penas que iam a 82 anos de reclusão – a média aritmética era superior a dezoito –, e todos com os direitos políticos suspensos.

Ainda sobre a Carta ao Presidente do Conselho Federal da OAB, vale contar que seu apelido entre nós era “bagulhão”, assim mesmo, no aumentativo, por causa do volume que ele foi ganhando; e porque “bagulho”, na linguagem das cadeias, é um substantivo que pode designar tanto alguma coisa sem valor como algo perigoso. Foi neste segundo sentido que escolhemos o nome de guerra para o nosso documento-denúncia.

Vale contar também como o documento original, um calhamaço com as assinaturas dos 35 presos, saiu sigilosamente do presídio e chegou ao destinatário em segurança. A operação incluiu a montagem de um compartimento no interior de uma singela garrafa térmica – no qual as 28 folhas tamanho ofício foram alojadas – usada para servir café aos advogados em visita a seus clientes. Daí, pelas mãos do Dr. Luiz Eduardo Greenhalgh, o documento chegou ao Dr. Caio Mário.

Na história da Carta, há um fato decididamente muito significativo: um texto com denúncias tão fortes, com nomes de autoridades, agentes e funcionários do Estado, militares de altas patentes etc., apontados como mandantes, executores ou no mínimo cúmplices dos graves crimes relatados, tornado público em pleno 1975, não ensejou uma única ação legal, um único pedido de abertura de inquérito, por injúria, calúnia ou difamação, contra os denunciantes – todos identificados (as assinaturas foram propositadamente legíveis) e de “endereço” conhecido. Este fato é de uma força simbólica muito grande. Basta lembrar que, na mesma época, por uma xilogravura feita no Barro Branco e reproduzida num jornal estudantil da Universidade de São Paulo, de nome “Dois Pontos”, alguns de nós ficaram mais seis meses na cadeia por conta de inquérito aberto pelo promotor junto às Auditorias Militares.

Cautelosos, advertíamos sobre a possibilidade de, apesar de todo o cuidado na elaboração do texto, incorrermos em imprecisões. Dizíamos acreditar que, ocorrendo alguma, não seria suficiente para prejudicar a essência de nosso depoimento.

Reafirmando nossa confiança na exatidão dos fatos narrados, dispúnhamo-nos a testemunhar, perante comissão ou tribunal idôneos, a respeito de todas as denúncias ali apresentadas. Deste modo, estávamos assumindo conscientemente, como prisioneiros políticos e com mais aquela atitude, nossas responsabilidades frente à situação que imperava no Brasil, causa de tanta desgraça e tanto luto para as famílias brasileiras.

Hoje, com a perspectiva do tempo decorrido, está muito claro: tudo o que veio à luz nas décadas seguintes – e esse “tudo” é ainda pouco diante da importância do que falta esclarecer – só fez confirmar a exatidão das centenas de denúncias contidas no documento.

Há muito a ser feito. A verdade clama por ser desvendada.

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